Um regime burocrático antiproletário
Originalmente publicado pela então revolucionária Spartacist League (SL, EUA) em Workers Vanguard (WV), n. 102, 25 de março de 1976.
Como parte de um esforço mais amplo para “institucionalizar” seu regime, o recente congresso do Partido Comunista de Cuba (PCC) aprovou uma nova constituição “socialista” para que o país substitua a “Lei Fundamental” burguesa de 1940 (ver “Castro Holds First CP Congress”, WV n. 100, 12 de março de 1976). O primeiro-ministro Fidel Castro aproveitou também a ocasião para apresentar a “versão padrão revisada” da história da revolução cubana.
A visão geral foi duplamente significativa no contexto da nova constituição, uma vez que uma das principais demandas originais de Castro – do ataque ao Moncada em 26 de julho de 1953 até assumir o poder do ditador Batista em 1 de janeiro de 1959 – foi precisamente para um retorno à constituição de 1940. Isso levanta as questões cruciais do caráter de classe do movimento guerrilheiro, da natureza da revolução que realizou e das causas e significado da mudança de um programa burguês “democrático” para a expropriação da burguesia.
Essas questões são de tremendo significado para os comunistas, pois dizem respeito às questões mais fundamentais da estratégia revolucionária nos países capitalistas atrasados. A pequena burguesia – tradicionalmente considerada pelos marxistas como um grupo vacilante, incapaz de fornecer uma liderança de classe independente – pode realizar uma revolução socialista, como afirma o revisionista “Secretariado Unificado”? Ou Cuba permaneceu em todo um Estado capitalista, como afirmam os maoístas e o falsamente trotsksita “Comitê Internacional” de Gerry Healy? Por outro lado, se, como sugerido exclusivamente pela tendência Espartaquista internacional [atualmente, a degenerada International Communist League / ICL, grupo internacional da SL], o regime de Castro desde 1960 é um Estado operário deformado, como ele foi formado e quais as implicações disso para a teoria trotskista da revolução permanente?
Um comunista no armário?
Em seu discurso de abertura ao congresso do PCC, o “Comandante” Castro repetidamente elogiou as políticas dos líderes stalinistas da União Soviética. Há muito preso à órbita soviética, Castro agora procura projetar suas políticas atuais de volta no jovem militante que invadiu o quartel do exército em Santiago em 1953 e no núcleo do Exército Rebelde que iniciou a luta de guerrilha na Sierra Maestra três anos mais tarde.
Castro inclui entre os “pilares sólidos” em que os líderes do Movimento 26 de Julho se basearam “os princípios do marxismo-leninismo”. Ele prossegue, “embora não fosse a maneira de pensar de todos os que embarcaram no caminho da luta armada revolucionária em nosso país, foi o de seus principais líderes” (Granma, 28 de dezembro de 1975). Castro também afirmou que, entre os jovens combatentes, havia “um profundo respeito e admiração pelos antigos comunistas” do Partido Socialista Popular (PSP) pró-Moscou, que “manteve com firmeza as nobres bandeiras do Marxismo-leninismo”.
A realidade era consideravelmente diferente. O discurso de Castro fez silêncio sobre o programa do movimento anti-Batista, mas por um lado oblíquo, para o benefício daqueles que conhecem alguma coisa da luta da década de 1950, ele acrescentou: “… não só a ação mais resoluta era necessária, mas também astúcia e flexibilidade por parte dos revolucionários …. A proclamação do socialismo durante o período da luta insurrecional não teria sido entendida pelo povo e o imperialismo teria intervido diretamente em nosso país com suas tropas”.
Um tema semelhante pode ser encontrado em muitos ataques de direita contra Castro, que o acusam de ter “traído a revolução” contra Batista e enganado o povo. Certos apologistas de esquerda do regime de Havana também apresentaram o mito de Castro como sendo um “marxista-leninista no armário”, que “deu uma rasteira” nos imperialistas. “Os líderes da Revolução tinham que conhecer as pessoas e conversar com elas em termos que estivessem prontas para entender”, escreveu Edward Boorstein em The Economic Transformation of Cuba (1968). Outros, como o ex-maoísta Progressive Labor Party (Partido Trabalhista Progressista, PL, EUA), que tenta criticar Castro pela esquerda, foram inicialmente cativados pelo “jeito malandro do Che [Guevara] de mover Cuba para o socialismo por trás das costas de todos” (Jake Rosen, “Is Cuba Socialist?” , PL, novembro de 1969). Mas dizendo que eles “não acreditam mais nestes truques astutos”, o PL concluiu que Cuba ainda era capitalista. A verdade é mais complexa – mais dialética – do que esse papo simplista de Castro e Guevara como enganadores.
Um democrata radical jacobino
Todas essas “explicações” chegam a uma teoria da conspiração sobre a história e ignoram o verdadeiro caráter social do movimento de Castro. Para começar, o próprio Castro nem sequer fingiu fazer parte do movimento operário durante a luta contra a ditadura apoiada nos EUA. Em vez disso, ele era um democrata pequeno-burguês jacobino radical, seguindo os passos do “apóstolo” da independência cubana, José Marti. Seu passado político foi como um líder estudantil liberal e advogado constitucionalista. Ele foi durante algum tempo chefe da entidade estudantil da Universidade de Havana, e em 1948 votou em Eduardo Chíbas, candidato do Partido Ortodoxo, que estava concorrendo a presidente do país sob um programa anticorrupção. Em 1952, Castro foi candidato ao Congresso cubano na chapa ortodoxa, mas um golpe de Estado do ex-homem forte das forças armandas, Fulgencio Batista, obstruiu as eleições.
Após o golpe de 10 de março, a primeira ação do jovem advogado contra o ditador não foi fazer agitação entre os trabalhadores e os camponeses, mas sim apelar para um tribunal de emergência na capital para prender Batista por violar o Código de Defesa Social! As apologias simplistas de Leo Huberman e Paul Sweezy para Castro (Cuba: Anatomy of a Revolution, 1960) comentaram: “Quando a petição para a prisão de Batsita foi rejeitada pelo tribunal, Fidel decidiu que havia apenas uma maneira pela qual o usurpador poderia ser derrubado – a revolução”. Seus objetivos eram listados como um “governo honesto” e uma “Cuba verdadeiramente soberana”.
Os métodos aos quais o jovem advogado então recorreu estavam bem enquadrados à política burguesa tradicional latino-americana. Vários pseudo-marxistas – do próprio Castro aos seguidores do falso-trotskista Ernest Mandel – fingem hoje que a “estratégia” da guerrilha cubana esteve de alguma forma à esquerda do reformismo stalinista tradicional porque se envolveu em “luta armada”. Eles “esquecem” que, nas condições instáveis da América Latina, quase todas as tendências políticas têm, uma vez ou outra, “pego em armas”. A primeira tentativa de ação revolucionária de Castro, por exemplo, não era mais que um pronunciamento de estilo antigo.
O plano para assalto ao quartel Moncada foi para surpreender os 1.000 soldados alocados lá, tomar suas armas, assumir a estação de rádio e transmitir o último discurso de Eduardo Chíbas (que se suicidou em 1951), seguido de um apelo às armas convidando o povo cubano a se levantar contra o ditador. Ações similares foram realizadas várias vezes no México, Bolívia, Peru ou Argentina. No entanto, neste caso, falhou, em parte devido ao mau planejamento, e a maioria dos 200 atacantes foram mortos durante o ataque, ou brutalmente assassinados pelos torturadores de Batista na operação de limpeza que se seguiu.
O programa do Movimento 26 de Julho
Em seu julgamento no mês de setembro seguinte, Castro (que havia sido pego escondido nas colinas ao redor da capital do leste da província) foi capaz de virar as mesas sobre o governo com um discurso dramático, acusando o regime de oprimir o povo. Nesse discurso, depois editado em um panfleto intitulado “A História Me Absolverá”, Castro apresentou cinco “leis revolucionárias” que teriam sido imediatamente proclamadas após a captura do quartel de Moncada.
Estes decretos projetados mostram claramente o conteúdo social da revolução que os rebeldes do 26 de Julho estavam planejando. O primeiro seria retornar à constituição de 1940; o segundo, conceder títulos de terra aos inquilinos e aos ocupantes (com o Estado indenizando os antigos proprietários com base nos valores de aluguel que teriam recebido nos próximos dez anos); a terceira providenciaria a participação nos lucros; a quarta, que os plantadores de cana obtivessem 55% da produção de açúcar (em vez da maior parte ir para as usinas); e o último confiscaria “ganhos mal adquiridos de todos os que haviam cometido fraudes durante o período dos regimes anteriores”.
Conforme escreveu o jornalista acadêmico Theodore Draper, partidário da Guerra Fria: “Não há praticamente nada no programa social e econômico de ‘A História me Absolverá’ que não possa ser rastreado pelo menos até… o programa de 1935 do Partido Autêntico, do Dr. Grau San Martins, muito menos à posterior propaganda de Chíbas” (Castroism: Theory and Practice, 1965).
A luta anti-Batista de Castro, após o desembarque catastrófico do iate Granma na província de Oriente, em dezembro de 1956, geralmente é pensada exclusivamente em termos de uma pequena guerrilha, ganhando gradualmente o apoio dos jibaros (camponeses). Mas o líder do minúsculo Movimento 26 de Julho estava negociando simultaneamente com vários políticos burgueses proeminentes. Assim, o “Manifesto da Sierra Maestra”, datado de julho de 1957, e o mais divulgado dos documentos rebeldes, foi assinado por Castro, Raul Chíbas (irmão de Eduardo) e Felipe Pazos, ex-presidente do Banco Nacional de Cuba. O manifesto de Castro-Chíbas-Pazos pedia “eleições democráticas e imparciais” organizadas por um “governo provisório neutro”; “dissociação do exército da política”; “liberdade de imprensa”; “política financeira sólida” e “industrialização”; e uma reforma agrária baseada na concessão de permissões para ocupantes e inquilinos (com indenização prévia aos proprietários). O programa de dez pontos deveria ser realizado por uma Frente Revolucionária Civil, composta por representantes de todos os grupos da oposição.
A declaração programática final da Sierra Maestra, publicada em outubro de 1958, à medida que o regime de Batista estava desmoronando, foi a “Lei n. 3”, sobre a reforma agrária. Com base no princípio da “terra para os agricultores”, não mencionava cooperativas ou fazendas estatais.
Quando Fidel e Raul Castro abriram caminho para fora da Sierra Maestra, para se ligar com as tropas de Ernesto “Che” Guevara e Camilo Cienfuegos nas planícies da província de Camaguey e depois marchar para Havana, o Exército Rebelde estava longe de ser uma organização de massa, contando apenas 1.100 soldados, a maioria deles camponeses.
O governo provisório, instalado com a aprovação de Castro, não foi dominado por ministros do 26 de Julho. O presidente era Manuel Urrutía, ex-juiz; o primeiro-ministro era José Miró Cardona, ex-chefe da Ordem dos Advogados de Havana; o ministro das Relações Exteriores era Roberto Agramonte, o candidato presidencial ortodoxo em 1952; e Felipe Pazos foi novamente chefe do Banco Nacional. Nas novas forças armadas, o chefe da Força Aérea Revolucionária era Pedro Díaz Lanz. Ao final do ano, todos esses homens haviam desertado para os Estados Unidos, juntando-se aos ex-batistianos em Miami. Miró seria mais tarde o fantoche de um “Conselho Revolucionário” criado pela CIA para servir de frente para a invasão da Baía de Porcos, em abril de 1961.
As políticas adotadas pelo novo regime durante seus primeiros meses foram, certamente, uma saída radical da falta de liberdade e da corrupção maciça do “governo” de Batista, que era algo parecido com ter Al Capone na Casa Branca. No entanto, as ações do governo revolucionário não excederam os limites do regime capitalista.
Entre os primeiros passos foram reduzidas as taxas de eletricidade pela metade nas áreas rurais, até 50% de cortes nos aluguéis para os pobres, e a implementação da lei de reforma agrária da Sierra Maestra, juntamente com a apreensão das propriedades dos capangas de Batista. Nos Estados Unidos, a imprensa burguesa, liderada pela revista Time, desencadeou uma campanha de publicidade reacionária contra os julgamentos de crimes de guerra dos açougueiros manchados de sangue do regime de Batista (de cujas bestialidades a mídia imperialista não havia relatado nada). Ao final, apenas 550 dos criminosos mais notórios foram executados, com ampla aprovação de praticamente todas as classes da população cubana.
Mas enquanto este primeiro governo pós-Batista era liderado por autênticos políticos burgueses liberais, o poder real estava nas mãos do Exército Rebelde, razão pela qual os líderes abertamente contrarrevolucionários fugiram sem travar qualquer tipo de luta. As guerrilhas nas colinas foram militarmente marginais, mas conseguiram cristalizar o enorme ódio popular frente ao regime de Batista. Quando os líderes do Movimento 26 de Julho entraram na capital, o exército oficial e o aparelho policial – o núcleo do poder do Estado – desmoronaram. Os castristas passaram a varrer e organizar um novo aparelho repressivo recrutado e organizado em linhas bem diferentes.
O exército de guerrilha era uma formação pequeno-burguesa, politicamente heterogênea, com a liderança recrutada entre ex-estudantes e profissionais liberais, e suas bases entre os camponeses da sierra. [1] Enquanto Castro e o resto da liderança assinaram vários programas, manifestos, etc. com liberais de oposição, suas conexões diretas anteriores com a burguesia foram quebradas. Mais importante ainda, o Exército Rebelde não enfrentou um proletariado combativo e consciente de classe, que teria polarizado os militantes pequeno-burgueses, atraindo alguns para o lado dos trabalhadores e enviando outros diretamente para os braços de Urrutía, Miró & Cia. Consequentemente, o que existia em Havana após o derrube de Batista era um fenômeno intrinsecamente transitório e fundamentalmente instável — um governo pequeno-burguês que não estava comprometido com a defesa da propriedade privada burguesa, nem com as formas de propriedade coletivista do domínio da classe proletária (ver “Cuba and Marxist Theory,” Marxist Bulletin n. 8).
A Consolidação de um Estado operário deformado
Enquanto tal regime era temporariamente autônomo da ordem burguesa — isto é, um Estado capitalista, corpos armados de homens dedicados a defender uma determinada forma de propriedade, não existia no sentido marxista – Castro não podia escapar da luta de classes. Depois de janeiro de 1959, um novo poder estatal burguês poderia ter sido erguido em Cuba, como aconteceu após a partida dos governantes coloniais franceses na Argélia em 1962. No caso argelino, este processo foi auxiliado pela conclusão dos acordos neocoloniais de Evian, protegendo explicitamente a propriedade dos colonos franceses, e o fato de que o poder foi entregue para um exército regular, que desempenhou pouco papel na luta da guerrilha.
No entanto, em Cuba, o imperialismo dos Estados Unidos estava longe de ser acomodado e logo começou uma forte luta econômica contra os novos governantes em Havana, que rapidamente se tornaram ações militares. Esta pressão imperialista, por sua vez, empurrou o núcleo da liderança cubana para a esquerda, enquanto fez outros segmentos do Movimento 26 de Julho se juntarem aos liberais burgueses e aos batistianos exilados.
O primeiro confronto acentuado com a burguesia nativa surgiu na proclamação de uma lei de reforma agrária moderada, em maio. A nova lei expropriou todas as terras acima de 999 acres, a serem pagas com títulos do governo revolucionário que poderiam ser resgatados em 20 anos. A reação era previsível: os proprietários declararam que isso era “pior do que o comunismo” e o Departamento de Estado dos EUA enviou uma nota piedosa, deplorando que os investidores estadunidenses não tinham sido previamente consultados.
O próximo movimento de Castro, que agitou a ira dos capitalistas, foi a remoção de Felipe Pazos do Banco Nacional, onde foi substituído por Guevara. Em fevereiro de 1960, o vice-primeiro-ministro da Rússia, Mikoyan, visitou Cuba e assinou um acordo para comprar anualmente 1 milhão de toneladas de açúcar cubano. Isso aliviou a Cuba de sua confiança até agora quase exclusiva nos EUA para o comércio exterior, e quando, em 29 de junho de 1960, as refinarias de petróleo pertencentes aos EUA se recusaram a aceitar petróleo cru importado da URSS, elas foram nacionalizadas. Em 3 de julho, o Congresso estadunidense aprovou uma redução da quota de açúcar importado de Cuba, e, dois dias depois, Castro apoderou-se das propriedades dos Estados Unidos (principalmente moinhos de açúcar) na ilha.
Enquanto isso, a polarização dentro do heterogêneo movimento castrista tinha prosseguido rapidamente. Já em julho de 1959, o presidente Urrutia provocou uma crise de governo, denunciando o PSP e o comunismo; quase simultaneamente, o chefe da força aérea, Diaz Lanz, convocou o Ministro da Defesa, Raul Castro, a purgar os comunistas das forças armadas. Diaz logo fugiu para os EUA, e Urrutia renunciou e foi substituído por Osvaldo Dorticos. Em outubro, o comandante militar da província de Camaguey, Hubert Matos, tentou lançar uma rebelião regional junto com duas dúzias de seus oficiais, mas foi rapidamente dominado e preso.
Não foi só nas novas forças armadas que a diferenciação ocorreu. O setorial de Havana do Movimento 26 de Julho e seu jornal, Revolución, ao longo de 1959 foram uma fonte de anticomunismo agressivo. A crise entre as alas direita e esquerda veio à tona na batalha dos sindicatos, onde David Salvador havia sido instalado como chefe da Federação Cubana do Trabalho (CTC) para substituir o amiguinho gangster de Batista, Eusebio Mujal. Salvador imediatamente dissolveu a unidade de trabalho entre o PSP e o 26 de Julho no movimento operário, que havia sido estabelecida no final de 1958, e atribuiu todos os assentos do comitê executivo da CTC a não-comunistas. No congresso da CTC de novembro de 1959 houve um confronto, e, depois de uma intervenção pessoal de Fidel Castro, a espinha da ala anti-PSP (que incluía uma série de ex-mujalistas) foi quebrada. Salvador demitiu-se alguns meses depois, e o controle dos sindicatos passou para o stalinista de longa data Lazaro Peña (ver J. P. Morray, The Second Revolution in Cuba, 1962).
O passo culminante nas nacionalizações ocorreu no outono de 1960, com uma série de rápidas apreensões (fábricas de tabaco, bancos estadunidenses e, em 13 de outubro, todos os bancos e 382 empresas). Em meados de outubro, todas as usinas de processamento agrícola; todas as químicas e metalúrgicas; papel; fábricas de têxteis e drogas; todas as ferrovias; portos; gráficas, empresas de construção e lojas de departamento foram nacionalizadas. Juntos, isso fez do Estado o dono de 90% da capacidade industrial de Cuba.
A Revolução Permanente
Com a tomada da propriedade capitalista em Cuba, pela primeira vez no Hemisfério Ocidental – e apenas a 90 milhas da Flórida – o mundo testemunhou a expropriação da burguesia como classe. Isso naturalmente fez da revolução cubana um objeto de ódio dos imperialistas. Também fez de Castro e de Cuba objetos de adoração por revolucionários de todos os tipos e por um grande espectro da opinião pequeno-burguesa radical. A Nova Esquerda, com seu duro antileninismo, agarrou instintivamente uma revolução “do povo”, mas sem um partido leninista ou o protagonismo da classe trabalhadora.
Para os trotskistas, no entanto, a revolução cubana colocou importantes questões programáticas. A teoria da revolução permanente afirmava que, nas regiões capitalistas atrasadas, a burguesia era muito fraca e amarrada por seus laços com os imperialistas e feudalistas para que conseguisse uma revolução agrária, a democracia e a emancipação nacional, objetos das revoluções burguesas clássicas. A análise de Trotsky da revolução russa de 1905 levou-o à sua insistência de que o proletariado deve estabelecer seu próprio domínio de classe, com o apoio do campesinato, para realizar até mesmo as tarefas democráticas da revolução burguesa; e, desde o início, seria forçado a empreender medidas socialistas, tornando a revolução permanente em caráter.
A revolução cubana demonstrou que, mesmo com uma liderança que iniciou sua insurgência sem perspectiva de transcender o radicalismo pequeno-burguês, a verdadeira reforma agrária e a emancipação nacional do jugo do imperialismo ianque revelaram-se impossíveis sem destruir a burguesia como uma classe. Ela confirmou a compreensão marxista de que a pequena-burguesia, composta por elementos altamente voláteis e contraditórios, que não possuem a força social para competir independentemente pelo poder, é incapaz de estabelecer um modo novo e característico de relações de propriedade, sendo obrigada a recair sobre as formas de propriedade de uma das duas classes fundamentalmente contrapostas na sociedade capitalista, a burguesia ou o proletariado.
Assim, a liderança de Castro, em circunstâncias excepcionais, devido ao colapso do regime de Batista e na ausência de uma poderosa classe trabalhadora capaz de lutar pelo poder do Estado por direito próprio, foi empurrada pela pressão da hostilidade frenética do imperialismo dos EUA na criação de um Estado operário deformado, no qual cada vez mais duplicou o modo de governo da degenerada URSS à medida que os castristas consolidavam um aparelho estatal burocrático. A evolução da liderança cubana de radicais pequeno-burgueses para os administradores de um Estado operário deformado (e a incorporação dos comunistas cubanos) confirmou a caracterização de Trotsky dos stalinistas russos como uma casta pequeno-burguesa que se apoiava nas formas de propriedade estabelecidas pela Revolução de Outubro [2]. Além disso, a revolução cubana fornece uma confirmação negativa de que apenas o proletariado consciente de classe, liderado por um partido marxista de vanguarda, pode estabelecer um Estado operário revolucionário e governado democraticamente, e, assim, constituir a base para a extensão internacional da revolução e abrir a estrada ao socialismo.
Ao contrário da Revolução Russa, que exigiu uma contrarrevolução política sob Stalin para se tornar um Estado operário burocraticamente deformado, a revolução cubana foi deformada desde o início. A classe trabalhadora cubana, tendo desempenhado essencialmente nenhuma parte no processo revolucionário [3], nunca teve poder político, e o Estado cubano foi governado pelos caprichos da camarilha castrista em vez de ser administrado por conselhos de trabalhadores democraticamente eleitos (soviets).
A corrente revisionista que emergiu do movimento trotskista no final da década de 1950 viu em Cuba a justificativa perfeita para o abandono da construção de partidos de vanguarda trotskistas. Ao ignorar o índice crucial da democracia dos trabalhadores e, assim, negligenciar acerca da diferença qualitativa entre um Estado operário deformado como a Rússia stalinista ou a Cuba castrista e o Estado operário saudável russo de Lenin e Trotsky, os apoiantes europeus do “Secretariado Internacional” [da Quarta Internacional] (SI-QI) abraçaram a revolução cubana como prova de que as transformações revolucionárias poderiam ter lugar sem a liderança de uma vanguarda proletária. Cuba tornou-se o modelo do “processo revolucionário” sob “novas condições” – e o esquema ao qual os revisionistas se agarravam apesar do fracasso de inúmeras lutas de guerrilha na América Latina para duplicar a “via cubana”.
Para o Socialist Workers Party dos EUA (Partido dos Trabalhadores Socialistas), no entanto, Cuba foi uma linha divisória na degeneração desse partido como um repositório do trotskismo revolucionário. Durante a década de 1950, ele lutou contra a noção de “entrismo profundo” de [Michel] Pablo [então dirigente do SI-QI] nos partidos reformistas de massa. Mas, com a sua fibra revolucionária enfraquecida sob o impacto do macarthismo, os líderes do SWP estavam procurando desesperadamente por uma causa popular que poderia permitir-lhes sair do isolamento.
O líder do SWP, Joseph Hansen, comemorou com entusiasmo:
“Que previsão existe no marxismo para uma revolução, obviamente socialista em tendência, mas alimentada pelo campesinato e liderada por revolucionários que nunca professaram objetivos socialistas … Não está nos livros! …. Se o marxismo não tem disposições para tais fenômenos, talvez seja hora de serem tomadas disposições. Pareceria uma troca bastante justa para uma revolução tão boa quanto essa”. (“Theory of the Cuban Revolution”, 1962).
Tendo declarado a revolução “socialista em tendência” e equiparando-a com a Rússia sob Lenin, Hansen não podia simplesmente ignorar a questão crucial da democracia dos trabalhadores. “É verdade que esse Estado operário não tem, até agora, as formas de democracia proletária”, escreveu ele. Mas ele imediatamente adicionou, “Isso não significa que falta democracia em Cuba”.
Os dirigentes do SWP tomaram a convergência na questão de Cuba como a oportunidade de propor uma reunificação com o SI-QI. Em um documento de 1963, “For Early Reunification of the World Trotskyist Movement” (“Pela unificação antecipada do movimento trotskista mundial”), o SWP escreveu sobre “a aparência de um Estado operário em Cuba – cuja forma exata ainda não foi estabelecida”; a “evolução para o marxismo revolucionário [do] Movimento de 26 de Julho” e concluiu:
“Ao longo da estrada de uma revolução começando com simples demandas democráticas e terminando na ruptura das relações de propriedade capitalistas, a guerra de guerrilha conduzida por forças camponesas sem terra e semiproletárias, sob uma liderança que se empenha em levar a revolução até uma conclusão, pode desempenhar um papel decisivo em minar e precipitar a queda de um poder colonial e semicolonial …. Isso deve ser incorporado conscientemente à estratégia de construir partidos revolucionários marxistas nos países coloniais”.
Em resposta a este revisionismo aberto, Healy e seus seguidores do Comitê Internacional simplesmente enfiaram a cabeça na terra como um avestruz e declararam que Cuba, mesmo após as nacionalizações de 1960, é “um regime bonapartista que se baseia em fundações capitalistas”, não qualitativamente diferente do regime de Batista. Mas dentro do SWP, a “Tendência Revolucionária” (RT, precursora da Spartacist League dos EUA) conseguiu analisar o regime cubano pós-1960 como um Estado operário deformado e apontar o significado dessa caracterização para a teoria marxista.
Em uma resolução que foi submetida como documento contrário ao documento “For Early Reunification …” da liderança do SWP, a RT deixou claro que “os trotskistas são os defensores mais combativos e incondicionais, contra o imperialismo, da Revolução Cubana e do Estado operário deformado que dela emergiu”. Mas acrescentou: “os trotskistas não podem dar confiança e apoio político, mesmo crítico, a um regime hostil aos princípios e práticas mais elementares da democracia operária … ” (“Rumo ao Renascimento da Quarta Internacional”, junho de 1963).
Rejeitando diretamente o apoio do SWP ao guerrilheirismo e ao castrismo, no lugar da perspectiva trotskista da revolução proletária, a resolução da RT resumiu:
“A experiência desde a Segunda Guerra Mundial demonstrou que guerrilhas armadas de base camponesa com lideranças pequeno-burguesas não podem levar a nada além de regimes burocráticos antiproletários. A criação de tais regimes se tornou possível sob as condições combinadas de decadência do imperialismo, desmoralização e desorientação causada pelas traições stalinistas, e a ausência de uma liderança marxista revolucionária na classe trabalhadora. A revolução colonial pode ter um significado inegavelmente progressivo apenas sob a liderança do proletariado revolucionário. Portanto, se os trotskistas incorporassem em sua estratégia um revisionismo sobre a liderança proletária da revolução, isso seria uma profunda negação do marxismo …”.
NOTAS DA TRADUÇÃO
[1] O artigo falha em reconhecer a existência de um razoavelmente influente braço clandestino do Movimento 26 de Julho no interior do movimento operário, sua “Seccíon Obrera”. A falta de atenção às bases proletárias construídas pelo Movimento e seu papel nos rumos anticapitalistas seguidos pelo processo revolucionário, à revelia da sua liderança, é um traço negativo nas análises da Spartacist League sobre a Revolução Cubana (bem como de muitos outros grupos e estudiosos do assunto). Para mais, ver, dentre outros, A Hidden History of the Cuban Revolution: How the Working Class Shaped the Guerrillas’ Victory, de Steven Cushion (Monthly Review Press, 2016) e The Cuban Revolution: Origins, Course, and Legacy, de Marifeli Perez-Stable (Oxford University Press, 1993).
[2] A caracterização da burocracia stalinista como uma “casta pequeno-burguesa” se faz presente apenas muito marginalmente em Trotsky, predominando, ao invés, a caracterização de casta derivada do proletariado (especialmente da aristocracia operária e da burocracia das fábricas e sindicatos). Não obstante, ela tem peso central na explicação da SL de como foi possível que o pequeno-burguês Movimento 26 de Julho conduzisse uma transição a um Estado operário (deformado).
[3] Ver Nota 1.