2. Socialismo em um só país
A história das origens da doutrina stalinista do “socialismo em um só país” é uma de usurpação do poder por uma camada burocrática por cima do primeiro Estado proletário da história. Essa casta privilegiada se consolidou ao redor do aparato de Estado soviético, que foi formado como um meio necessário de defender as conquistas da revolução de outubro em um país atrasado e camponês, arrasado por uma guerra civil e isolado pelo bloqueio imperialista e a tripla derrota da revolução proletária na Alemanha (1919, 1921 e 1923). Essas condições desfavoráveis exigiram uma política de “compromisso” e consolidação ao invés de uma “extensão” da revolução. O recrutamento de especialistas burgueses para ajudar na reconstrução da indústria, as garantias ao médio campesinato para poder acabar com a fome, uma política de frente única com os líderes reformistas do movimento operário nos países capitalistas para poder encontrar o caminho para as massas – essas foram tarefas necessárias do momento. Rejeitar os “compromissos” em princípio, como fizeram os “comunistas de esquerda”, rejeitar o uso dos especialistas burgueses em princípio, e chamar pela substituição da administração estatal da indústria pelo controle sindical, como fez a “Oposição Operária”, só poderia levar à derrota. Ao mesmo tempo, todo compromisso trás consigo perigos.
Lenin estava ciente desses perigos desde o começo e montou a “Inspetoria Operária e Camponesa” (Rabkrin) já em 1919, para poder conter os abusos burocráticos. A Rabkrin, entretanto, foi dirigida por Stalin e se tornou na verdade a sua força policial privada.
No Décimo Primeiro Congresso do partido, em 1922, Lenin foi forçado a observar:
“Se nós tomamos Moscou com os seus 4700 comunistas em posições de responsabilidade e, se nós tomamos aquela gigantesca máquina burocrática, aquela enorme massa, nós devemos nos perguntar: quem está controlando quem? Eu duvido muito que se possa dizer verdadeiramente que os comunistas estejam controlando aquela massa.”
E, no seu último escrito, “Melhor menos, mas melhor” (1923) ele chamou por uma guerra aberta contra o burocratismo, um drástico corte da Rabkrin e do seu envolvimento com o a Comissão de Controle, notando que a primeira “não apresenta hoje a menor autoridade”. Em um pós-escrito ao seu “testamento político”, Lenin pediu a remoção de Stalin do cargo de secretário geral do partido.
O Triunvirato contra Trotsky
Mas simples ações administrativas não podiam abolir um fenômeno criado pela própria história, e não por uma falha individual ou organizativa. O país estava exausto dos cinco anos de fome e guerra civil, cansado de esperar a revolução europeia que nunca chegou. Esse humor e os interesses conservadores da vasta burocracia, que esmagadoramente dominava o próprio Partido Comunista, se refletiram logo após a morte de Lênin, pela consolidação do poder nas mãos do Triunvirato de Stalin, Zinoviev e Kamenev, e a exclusão prática de Trotsky da liderança central.
Uma crise aguda no partido irrompeu no inverno europeu de 1923-1924, em cima das questões combinadas da democracia partidária e da industrialização. A “Nova Política Econômica” de cooperação com o campesinato tinha levado ao surgimento de um poderoso elemento kulak(camponês rico) no campo, que era crescentemente consciente de seus interesses burgueses em oposição ao governo soviético, enquanto a indústria continuava a crescer em “passo de tartaruga”; ao mesmo tempo, Stalin estava dirigindo o partido como um feudo privado, através do sistema de indicação de secretários. Trotsky exigiu um giro rumo ao planejamento centralizado e industrialização, uma ofensiva contra os kulaks e pelo retorno das normas democráticas dentro do partido. O Triunvirato se opôs a isso. (Um ano mais tarde, Bukharin, que apoiou as políticas de Stalin, fez seu famoso discurso sobre “construir o socialismo a passo de tartaruga” e chamou os camponeses a “enriquecei-vos!”). Ainda mais, eles fizeram de tudo para garantir que a sua posição iria prevalecer a todo custo: em fevereiro-março de 1924, nada menos do que 240 mil recrutas despreparados foram postos para dentro do partido na “leva de Lenin” e, logo que foram aceitos, foram organizados como massa de manobra para votar na linha do secretário geral (Stalin). Através dessa e várias outras manobras burocráticas, ele foi capaz de eliminar quase todos os seus oposicionistas na conferência partidária de maio de 1924, que foi transformado em um evento anti-Trotsky.
O segundo round da luta começou com a “polêmica literária” envolvendo as “Lições de Outubro” de Trotsky, que foi escrito como introdução aos seus artigos de 1917, e no qual ele expôs o papel desempenhado pelos então líderes do partido durante a revolução. O fato de que Zinoviev e Kamenev tinham se oposto à insurreição, se retirado dos seus cargos no governo e no partido e exigido uma coalizão com os mencheviques, ou de que Stalin tinha chamado por apoio ao Governo Provisório do Príncipe Lvov em março de 1917, não era amplamente conhecido entre a geração mais jovem e isso tornou-se extremamente embaraçoso para o grupo dominante.
Eles contra-atacaram negando o fato de que algum dia tivesse existido uma ala direita do bolchevismo e afirmaram que Trotsky tinha desempenhado um papel insignificante durante a insurreição, lançaram ainda uma campanha acusando Trotsky, o organizador militar da revolução de outubro e do Exército Vermelho, de nunca ter rompido com suas visões pré-1917 de conciliação com os mencheviques. Eles também o acusaram de ser hostil ao campesinato e continuar a defender a sua teoria da “revolução permanente” contra a fórmula de Lenin de “ditadura democrática revolucionária do campesinato e do proletariado”. A última acusação era verdadeira, mas eles precisavam ignorar o fato de que Lenin entrou em acordo com todos os aspectos essenciais da revolução permanente em suas “Teses de Abril” de 1917, de que ele havia explicitamente abandonado a sua formulação anterior e havia travado uma luta furiosa, particularmente contra Kamenev, em cima desse ponto. De resto, eles só podiam se basear em calúnias.
É verdade que Trotsky erradamente chamou por conciliação com os mencheviques até 1914, mas ele foi convencido pelas traições dos Socialdemocratas reformistas na Primeira Guerra Mundial de que um racha era inevitável e necessário. O próprio Lenin apontou que “Trotsky há muito tempo disse que a unificação é impossível. Trotsky entendeu isso e a partir desse momento não existiu melhor bolchevique” (“Ata do Comitê de Petrogrado do Partido Bolchevique”, 1[14] de novembro de 1917). Stalin, por outro lado, chamou pela unificação com os mencheviques tão tarde quanto abril de 1917, quando a questão foi posta abertamente e Tseretelli (o líder menchevique) estava prestes a entrar no Governo Provisório burguês!
“Ordem do dia: a proposta de Tseretelli por unificação.”
“Stalin: Nós devemos fazê-lo. É necessário definir nossas propostas para os termos da unificação. A unificação é possível ao longo das linhas de Zimmerwald-Kienthal [conferências da socialdemocracia contra a Primeira Guerra Mundial].”
― “Rascunho Protocolar da Conferência de Março de 1917 dos Trabalhadores do Partido de Toda a Rússia”
Quanto a Kamenev-Zinoviev, os outros dois membros do Triunvirato e supostos defensores do leninismo contra Trotsky, estes chamaram pela conciliação durante e depois da insurreição (o chamado por um governo conjunto com os mencheviques) e se opuseram ao levante! Nenhuma ala direita no partido bolchevique? Lenin os apelidou de “fura-greves da revolução” e pediu a sua expulsão se eles não retornassem aos seus cargos.
“Esquecer” tais episódios importantes da luta revolucionária também exigia reescrever deliberadamente a história. Assim, quando as atas das reuniões do Comitê bolchevique de Petrogrado de 1917 foram publicadas, os editores simplesmente cortaram a reunião na qual Lenin comentou que “não existiu melhor bolchevique” que Trotsky! Entretanto, um dos responsáveis pela impressão conseguiu passar a Trotsky uma mostra e ela foi preservada para a posteridade. No que diz respeito ao papel de Trotsky na revolução de outubro, as coisas ficaram um pouco mais pegajosas, já que Os Dez Dias que Abalaram o Mundo, de John Reed, mostrava em detalhe o papel de Trotsky como organizador da insurreição. Então, quando a campanha contra o “trotskismo” começou, Stalin repentinamente anunciou que Reed havia distorcido os fatos, uma descoberta que havia escapado aos olhos de todos nos sete anos anteriores. O “testamento” de Lenin também foi suprimido (embora Kruschev tenha posteriormente admitido a sua validade).
Stalin descobre o “socialismo em um só país”
Mesmo uma receita invariável de mentiras, distorções e calúnias só conseguiria ir tão longe a ponto de assegurar o poder do novo corpo dominante. Stalin-Zinoviev-Kamenev eram particularmente vulneráveis em razão de que no arsenal teórico do bolchevismo pós-1917, nas resoluções da Internacional Comunista ou o programa o Partido Comunista soviético, não havia nada que pudesse “justificar” os apetites cada vez mais conservadores do Triunvirato. Eles precisavam de uma nova teoria que fosse uma alternativa clara à revolução permanente de Trotsky. Isso foi encontrado na doutrina do “socialismo em um só país”.
Na atual série do Guardian sobre o trotskismo, Carl Davidson defende essa teoria stalinista com a afirmação de que ela foi forjada pelo bolchevismo:
“Por outro lado, Trotsky ficou em oposição aos bolcheviques ao defender que o proletariado iria provavelmente entrar numa “coalizão hostil” com as grandes massas de camponeses durante a construção socialista e que sem o apoio direto do proletariado europeu, a classe trabalhadora da Rússia não poderia manter o poder e transformar a sua dominação temporária em uma ditadura socialista durável”.
― Guardian, 11 de abril de 1973
Esse é um mito puramente inventado. Até dezembro de 1924, ninguém no partido bolchevique, nem mesmo Stalin, reivindicava que era possível construir o socialismo em um só país, sem o apoio estatal direto de uma revolução proletária vitoriosa na Europa.
“Socialismo em um só país” é uma completa perversão do marxismo, a serviço de uma casta burocrática parasita que deseja acima de tudo fugir da lógica da história e construir um ninho isolado e confortável, longe da luta de classes. No primeiro rascunho de Engels para o Manifesto Comunista, essa “teoria” é claramente rejeitada. Ele escreveu:
“Questão Dezenove: Pode tal revolução acontecer em apenas um país?”
“Resposta: Não. A grande indústria, pelo fato de ter criado o mercado mundial, levou todos os povos da terra – e, nomeadamente, os civilizados – a tal ligação uns com os outros que cada povo está dependente daquilo que acontece a outro. (…) A revolução comunista não será, portanto, uma revolução simplesmente nacional; será uma revolução que se realizará simultaneamente em todos os países civilizados, isto é, pelo menos na Inglaterra, na América, na França e na Alemanha.”
― F. Engels, “Os Princípios do Comunismo”, 1847
Em certo sentido, essa declaração foi demasiadamente categórica; a história mostrou que é possível que a revolução seja vitoriosa, que a ditadura do proletariado seja estabelecida, em um só Estado. Mas a posição fundamental continua válida, de que o socialismo não pode ser construído em uma só nação.
Lenin reconhecia isso e, ainda em 1906, escreveu:
“A revolução russa tem suficientes forças para triunfar. Mas ela não tem forças o suficiente para reter os frutos dessa vitória… já que em um país com um enorme desenvolvimento da indústria em pequena escala, os produtores de commodityem pequena escala, entre eles os camponeses, irão inevitavelmente se voltar contra o proletário quando ele buscar se virar da simples liberdade em direção ao socialismo… Para poder prevenir a restauração, a revolução russa precisa, não de uma reserva russa, mas de ajuda do exterior. Há tal reserva no mundo? Há: o proletariado socialista do Ocidente.”
Só no começo de 1917 Lenin escreveu sobre a possibilidade de realização da ditadura do proletariado primeiro na atrasada Rússia, mas de forma alguma isso implicava uma sociedade “socialista” isolada e na penúria. Para os bolcheviques, a ditadura do proletariado significava uma ponte para a revolução no ocidente. As condições para a revolução socialista (criar a ditadura revolucionária do proletariado) e para o socialismo (a abolição das classes sociais) não são idênticas. Que a ditadura do proletariado aconteceu primeiro na Rússia, de forma nenhuma significa que ela seria o primeiro lugar a chegar ao socialismo.
Essa distinção era tão clara que o próprio Stalin, no início de 1924, escreveu:
“Mas a derrubada do poder da burguesia e o estabelecimento do poder do proletariado em um país, ainda não significa que a completa vitória do socialismo foi garantida. A principal tarefa do socialismo – a organização da produção socialista – ainda precisa ser cumprida. Pode essa tarefa ser cumprida, pode a vitória final do socialismo ser alcançada em um só país, sem os esforços conjuntos dos proletários de vários países avançados? Não, não pode. Para derrubar a burguesia os esforços de um povo são suficiente; isso é provado pela história da nossa revolução. Para a vitória final do socialismo, para a organização da produção socialista, os esforços de um só país, particularmente um país camponês como a Rússia, são insuficientes; para isso os esforços dos proletários de vários países avançados são necessários.”
― J. V. Stalin, “Fundações do Leninismo”, maio de 1924
Em edições subsequentes, isso foi substituído pela tese oposta, ou seja, de que “nós temos tudo que é necessário para a construção de uma sociedade socialista completa”.
Não poderia ser mais claro que a perspectiva bolchevique era de internacionalismo proletário, completamente e inalteravelmente oposto à doutrina do socialismo em um só país, Os stalinistas procuram nos volumes de escritos de Lenin achar uma citação isolada que “prove” que também Lenin acreditava na doutrina do socialismo em um só país. Mas se isso fosse verdade, mesmo ignorando as muitas vezes que Lenin o negou, porque Stalin iria escrever em maio de 1924 precisamente o oposto? Se o “socialismo em um só país” era bolchevismo ortodoxo, porque ninguém descobriu isso antes de fins de 1924?
A “prova” favorita dos stalinistas, citada por Davidson, é do artigo de Lenin de 1915 “Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da Europa”:
“Como palavra de ordem independente, a palavra de ordem dos Estados Unidos do mundo, todavia, dificilmente seria justa, em primeiro lugar porque ela se confunde com o socialismo; em segundo lugar, porque poderia dar lugar à falsa interpretação da impossibilidade da vitória do socialismo num só país e das relações deste país com os outros.”
“A desigualdade do desenvolvimento econômico e político é uma lei absoluta do capitalismo. Daí decorre que é possível a vitória do socialismo primeiramente em poucos países ou mesmo num só país capitalista tomado por separado. O proletariado vitorioso deste país, depois de expropriar os capitalistas e de organizar a produção socialista no seu país, erguer-se-ia contra o resto do mundo capitalista, atraindo para o seu lado as classes oprimidas dos outros países, levantando neles a insurreição contra os capitalistas, empregando, em caso de necessidade, mesmo a força das armas contra as classes exploradoras e os seus Estados.”
Tomada no contexto de seus outros escritos desse período, é absolutamente claro que Lenin está se referindo aqui não à “sociedade socialista”, mas à ditadura do proletariado. Além disso, ele estava obviamente se referindo à Europa, já que, em 1915, Lenin nem mesmo admitia a possibilidade da ditadura do proletariado na Rússia antes da revolução socialista no Ocidente!
A outra principal “prova” é uma citação de Lenin do artigo de 1923, “Sobre a Cooperação”:
“De fato, o poder do Estado sobre os meios de produção em larga escala, o poder político nas mãos do proletariado, a aliança do proletariado com os muitos milhões de pequenos e muito pequenos camponeses, a segura liderança proletária do campesinato, etc. – não é isso tudo que é necessário para construir uma sociedade socialista completa? (…).”
Esse artigo se limita aos pré-requisitos políticos e legais para o socialismo. Em toda a parte (“Sobre a Nossa Revolução”, 1923) Lenin se referia à declaração de que “a Rússia não atingiu um nível de desenvolvimento das forças produtivas que torne possível o socialismo” como “fato indiscutível”, enquanto polemizava contra os mencheviques que concluíam a partir disso que a revolução não valia a pena.
As forças produtivas
Durante os anos 1930, em um período de alta inflação, de um reino de terror dentro do partido comunista e de uma guerra civil contra os camponeses, causada pelo programa de Stalin de coletivização forçada, a “vitória completa do socialismo” foi anunciada. Uma resolução do sétimo congresso da Internacional Comunista (1935) declarou que, com a nacionalização da indústria, a coletivização e liquidação dos kulaks como classe, “o triunfo final e irrevogável do socialismo e o reforço por todos os lados do Estado da ditadura proletária foi atingido na União Soviética”. Em 1936, o programa da Juventude Comunista declarou: “Toda a economia nacional de nosso país tornou-se socialista”. Um orador defendendo o novo programa argumentou:
“O velho programa contém uma afirmação antileninista profundamente errada de que a Rússia só pode chegar ao socialismo através de uma revolução proletária mundial. Esse ponto do programa está basicamente errado. Ele reflete visões trotskistas.”
O velho programa, escrito em 1921 por Bukharin, foi aprovado pelo Politburo com a participação de Lenin!
Em seu artigo, Davidson tenta manter uma pretensa ortodoxia declarando que “marxistas-leninistas, é claro, nunca defenderam que a vitória final do socialismo – a sociedade sem classes – é possível em apenas um país”. Por seu próprio critério, então, o Partido Comunista russo dos anos 1930, sob Stalin, não era marxista-leninista!
Davidson também acusa Trotsky de defender uma “‘teoria das forças produtivas’ oportunista de direita”, como base da oposição ao slogan de socialismo em um só país. Mas essa “teoria das forças produtivas” é a própria base da análise marxista materialista da história! Foi o próprio Marx quem escreveu que:
“este desenvolvimento das forças produtivas (…) é também uma premissa prática absolutamente necessária [ao socialismo] porque sem ele só a penúria se generaliza, e, portanto, com a miséria também teria de recomeçar a luta pelo necessário e de se produzir de novo toda a velha porcaria, e ainda porque só com este desenvolvimento universal das forças produtivas se estabelece um intercâmbio universal dos homens… Sem isto, (1) o comunismo só poderia existir como fenómeno local, (2) os poderes do intercâmbio não teriam podido eles próprios desenvolver-se como poderes universais, e por isso insuportáveis…, e (3) todo o alargamento do intercâmbio suprimiria o comunismo local. Empiricamente, o comunismo só é possível como o ato dos povos dominantes ‘de repente’ e ao mesmo tempo, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial que com ele se liga”.
― K. Marx e F. Engels, A Ideologia Alemã, 1847
Davidson ridiculariza essas proposições marxistas básicas (atribuindo-as a Kruschev e Liu Shao-chi!), ao escrever:
“A maior parte da construção socialista que se deu no mundo foi em países relativamente atrasados. Mas chamar isso de ‘socialismo’, na visão de Trotsky, iria apenas ‘desacreditar terrivelmente a ideia de socialismo aos olhos das massas trabalhadoras’.”
Essa visão, de acordo com Davidson, é “notoriamente ridícula”.
O quão “socialista” era a União Soviética nos anos 1930? Enquanto a Rússia havia feito grandes avanços na industrialização, definitivamente provando a superioridade da organização socialista da produção mesmo com as terríveis restrições impostas pelo domínio burocrático de Stalin, ela ainda estava muito atrás dos países capitalistas avançados. As mais básicas necessidades – moradia decente, comida e vestuário adequando – ainda eram inalcançáveis para as massas da população. A inflação era feroz e um mercado negro continuava a existir. Enquanto isso a burocracia usava o seu poder para assegurar o seu bem estar, que concretamente significava altos salários, produtos especiais, automóveis, casas de campo e muitos outros privilégios. Lenin tinha dito que o perecimento do Estado iria começar no próprio dia da tomada do poder. O Estado proletário, que ainda era um órgão do poder de classe, deixaria de ser um poder em separado acima da sociedade, mas um instrumento da vasta maioria, carregando a sua vontade e se baseando na sua participação ativa. Na União Soviética de 1935, o Estado não tinha sequer começado a desaparecer, mas tinha crescido e virado um gigantesco aparato de supressão e compulsão.
Isso, camarada Davidson, é socialismo? Mesmo depois da contrarrevolução política de Stalin, a União Soviética ainda era um grande avanço sobre as condições do czarismo e do capitalismo. Ela permaneceu sendo um Estado proletário no sentido de preservar as formas de propriedade socialistas, ainda que muito degeneradas. Mas a sociedade sem classes (anunciada por Stalin na Constituição de 1936 da URSS), ela certamente não era.
Traição da greve geral britânica de 1926
A mais séria prova do significado contrarrevolucionário da doutrina de “socialismo em um só país” foi no campo da política externa de Stalin e do seu sistemático tolhimento, e finalmente abolição (1943), da Internacional Comunista em favor de blocos com as burguesias dos vários países onde uma revolução as ameaçava. Uma ilustração imediata e gráfica do conteúdo real do “internacionalismo” stalinista foi oferecida pela greve geral britânica de 1926.
Em 1925, os administradores das minas de carvão da Grã-Bretanha tentaram encerrar o contrato estabelecido em 1924 e substituí-lo com um novo que iria reduzir os mineiros a uma condição de vida abaixo da subsistência. Depois de uma inspeção oficial na indústria, o governou retornou com um relatório que colocaria os custos da modernização da mineração nas costas dos mineiros. A sua resposta foi uma greve começando em 3 de maio de 1926. No dia seguinte todo o país estava a beira de uma greve geral. Conselhos de ação foram estabelecidos nos distritos operários para manter o moral alto e controlar a emissão de permissões para trabalhos de emergência ou transporte especial. Essa não foi uma simples disputa industrial, mas um ataque contra o Estado dos patrões.
O conselho geral do Congresso dos Sindicatos (TUC, em inglês), que tinha sido encarregado da condução da greve, chamou pelo seu encerramento depois de nove dias, no ápice da sua efetividade, assustado pelas suas implicações revolucionárias. Os homens, voltando ao trabalho, ficaram marcados ou foram aceitos somente em termos que incluíam a redução de salários, perda de estabilidade ou a condição de se retirarem do sindicato. Em 13 de maio, uma segunda greve geral ocorreu contra esses ataques, mas, depois de discursos conciliatórios dos líderes do TUC – e sem ter nenhuma liderança alternativa – os trabalhadores voltaram aos seus postos. Os mineiros permaneceram parados até atingirem uma série de acordos em separado, feitos entre 23 e 29 de dezembro, mas eles foram forçados pela traição dos chefes dos sindicatos a lutar por conta própria. Os proprietários ganharam em todos os aspectos: o contrato nacional foi substituído e os mineiros tiveram que trabalhar mais horas por menores salários.
Durante o temporário recuo na luta de classes europeia entre 1924-25, Stalin decidiu tentar fazer as pazes com os líderes sindicais reformistas, possivelmente abandonando a Internacional Sindical Vermelha. A pedra de toque dessa política era o Comitê Sindical Anglo-Russo, um bloco entre os sindicatos soviéticos e o conselho geral do TUC britânico, formado em maio de 1925. Depois que o conselho geral traiu a greve geral de 1926, Trotsky exigiu uma imediata ruptura com esses traidores. Stalin e Bukharin se recusaram (Zinoviev, nesse momento, havia se unido à Oposição, embora ele fosse capitular a Stalin dois anos depois). Em 1926, o conselho geral apoiou a repressão do imperialismo britânico contra a revolução chinesa. Trotsky novamente demandou que se denunciasse o Comitê Anglo-Russo. Stalin novamente se recusou.
Quando ele finalmente se desfez em 1927, foram os líderes britânicosque deixaram o Comitê. O seu principal objetivo era supostamente opor a intervenção britânica na Rússia. Como uma extensão lógica da doutrina do socialismo em um só país, essa ajuda mística dos traiçoeiros burocratas sindicais era um preço o suficiente para sacrificar a greve geral de 1926.
Stalin manda os comunistas chineses para seus túmulos
Outro exemplo ainda mais horripilante do significado do socialismo em um só país foi a política de Stalin na revolução chinesa de 1925-27. Ainda em 1924, o Partido Comunista Chinês havia entrado no partido populista burguês Kuomintang, de Sun Yat-sen, sob as ordens de Moscou. Trotsky se opôs quando a questão foi discutida no Politburo. A liderança do PC chinês, sob Chen Tu-hsiu, também se opôs repetidamente. Em outubro de 1925, eles propuseram deixar o Kuomintang; o plano foi rejeitado pela executiva da Comintern, sob as instruções de Stalin. A linha de Stalin era de que a revolução deveria se restringir a uma etapa democrático-burguesa, sob a liderança de um “bloco de quatro classes” incluindo a burguesia nacional, a pequeno-burguesia urbana, os trabalhadores e os camponeses. A expressão política desse bloco era o Kuomintang, ao qual os comunistas chineses deveriam se subordinar. Eles eram instruídos a conter a luta de classes contra a “burguesia anti-imperialista” nas cidades e buscar um equilíbrio entre esta e o movimento camponês no interior, acima de tudo mantendo a unidade de todas as forças supostamente anti-imperialistas.
O principal interesse de Stalin na China à época não era preparar a revolução, mas chegar a um loco diplomático com o governo do Kuomintang. No início de 1926, este partido burguês foi admitido na Internacional Comunista como partido associado, e o Comitê executivo da IC, o “Estado-maior da Revolução Mundial”, elegeu o sucessor de Sun Yat-sen, o general Chiang Kai-shek, como seu membro honorário! Apenas algumas semanas depois, em 20 de março, Chiang realizava o seu primeiro golpe anticomunista, barrando os membros do PC de todos os cargos de liderança no Kuomintang e exigindo uma lista de todos os membros do PC que haviam entrado no partido. Sob as ordens dos representantes da IC, a liderança do partido chinês concordou! Em outubro de 1926, Stalin chegou a enviar um telegrama incitando o PC chinês a conter uma revolta camponesa na província de Kuangtung. Trotsky comentou sobre isso:
“A subordinação oficial do Partido Comunista à direção burguesa e a proibição oficial de criar Sovietes (Stalin e Bukharin ensinaram que o Kuomintang “substituía” os Sovietes) constituem uma traição muito mais chocante e mais grosseira ao marxismo do que toda a atividade dos mencheviques de 1905 a 1917.”
― L. D. Trotsky, “A Revolução Permanente”, 1929
Isso já era ruim o bastante, mas depois de desafiado pela Oposição de Esquerda liderada por Trotsky e Zinoviev, e durante os dias cruciais da insurreição de Shangai que começara em março de 1927, Stalin novamente e novamente reafirmou a sua política de capitular aos nacionalistas enquanto os últimos estavam se preparando para liquidar os comunistas. Um editorial de março de 1927 da publicação Internacional Comunista disse que a tarefa principal na China era “o desenvolvimento subsequente do Kuomintang”. Em 5 de abril, Trotsky alertou que Chiang Kai-shek estava preparando um golpe semibonapartista contra os trabalhadores e chamou pela formação de conselhos de trabalhadores para frustrar esse objetivo. Ao mesmo tempo, Stalin se vangloriava em uma reunião do partido em Moscou de que “usaremos a burguesia chinesa e então a jogaremos fora como um limão espremido”. Também nesse momento, a liderança do PC chinês estava apelando a Moscou, tentando impactar a IC com o significado dos eventos de Shangai, o maior levante operário da Ásia, e com a necessidade de romper com o Kuomintang. Mas eles receberam ordens de render Shangai aos exércitos de Chiang e, em 12 de abril, o exército do Kuomintang realizou um massacre que custou a vida de dezenas de milhares de comunistas e trabalhadores combativos que haviam baixado as suas armas conforme as ordens de Stalin. Isso era “socialismo em um só país” na prática!
Mas ainda assim Stalin não abandonaria sua política e, declarando que a aliança com Chiang tinha agora se equivocado (!), ele ordenou um bloco com a ala esquerda do Kuomintang, que tinha estabelecido um governo em Wuhan. Novamente, os comunistas chineses receberam ordens de conter o movimento camponês para não entrar em conflito com a burguesia “anti-imperialista”. E, novamente, os nacionalistas burgueses se voltaram contra o PC. No fim do ano, Stalin mudou sua política para escapar das críticas da Oposição de Esquerda, ordenando o levante de Cantão por telégrafo, em uma situação tática em que ele estava próximo de ser derrotado, o que aconteceu apesar da defesa heróica do “governo soviético” pelos trabalhadores de Cantão.
De acordo com Davidson, “a Comintern reivindicou uma política posta em prática por Mao de forma independente, e ignorada ou oposta por ambos Tu-hsiu [dirigente do partido] e Chang Kuo-tao”. Na verdade Mao não criticou a linha seguida por Chen nesse período. Em determinado ponto (outono de 1924) ele foi expulso do Comitê Central do PC pela sua cooperação próxima demais com os líderes da ala direita do Kuomintang!
Enquanto a linha da Oposição sobre a China havia sido firmemente derrotada no já bastante burocratizado Partido Comunista russo e na Comintern, ainda era perigoso para Stalin ter Trotsky em liberdade na capital soviética. Consequentemente, ele ordenou a prisão do organizador militar da revolução de outubro e fundador do exército vermelho, exilando-o em Alma Ata, na Ásia central, e deportando-o da URSS dois anos depois. O partido bolchevique tinha se transformado desde a força revolucionária principal do mundo, em um mero apêndice da burocracia de Stalin. Quando Davidson e os maoístas hoje apoiam a doutrina do socialismo em um só país, é essa história de traições que eles estão defendendo.