7. A China de Mao: de Stalin a Nixon
Os fantasmas dos Ming e dos Manchu no Palácio Proibido devem estar dando risadas de familiaridade com a trama de seu herdeiro desleal contra o imperador. Eles sem dúvida acreditam que uma nova dinastia reina em Pequim, uma dinastia como a sua própria. Entretanto, os marxistas tem vantagem sobre esses antigos espectros, ao reconhecer que as intrigas na corte de Mao são, em última análise, geradas e moldadas pelas pressões do mundo imperialista em uma nação isolada e atrasada, que rompeu com o sistema capitalista. As lutas internas dentro da burocracia maoísta, mesmo em suas manifestações mais bizarras e personalistas, são inextrincavelmente entrelaçadas com o destino da revolução chinesa e do futuro socialista da humanidade.
Tendo chegado ao poder através de um massivo levante camponês, que destruiu o capitalismo na China e estabeleceu um Estado proletário deformado, a elite nacionalista pequeno-burguesa liderada por Mao estava determinada a restaurar o status da China como uma grande potência. Durante os anos 1950, a pressão do imperialismo forçou a burocracia maoísta a permanecer no campo liderado pela URSS. Entretanto, conforme se tornou cada vez mais claro que os dirigentes do Kremlin estavam determinados a impedir a China de conseguir o seu lugar ao Sol, a burocracia chinesa rompeu com o bloco soviético. Uma vez que a China havia se livrado das amarras que a prendiam à União Soviética, o conflito entre o atraso material da China e as aspirações de grande potência dos seus dirigentes produziu uma luta fracional convulsiva no fim dos anos 1960 (a Revolução Cultural). O resultado dessa luta foi a transformação da China de Mao, desde uma aliada da União Soviética contra o imperialismo norte-americano, a uma semialiada da diplomacia imperialista contra a URSS.
A política econômica do aventureirismo burocrático
A Revolução Cultural esteve diretamente relacionada ao fracasso do Grande Salto Adiante (1958-60) e de seu impacto na posição de Mao dentro do partido. O Grande Salto Adiante, por sua vez, surgiu da impossibilidade de impor políticas stalinistas ortodoxas de industrialização durante o Primeiro Plano Quinquenal da China (1953-56). O modelo stalinista de industrialização consistia em devotar a maior parte do excedente econômico para grandes e modernos complexos da indústria pesada. A comida para a crescente classe trabalhadora urbana e a matéria prima agrícola são extraídos do campesinato através da coletivização forçada. Isso necessariamente envolve sacrificar o rendimento final da agricultura e o consumo de comida no campo para aumentar o excedente agrícola disponível para a população urbana em crescimento. Durante os anos 1930, o consumo de comida na Rússia caiu 15 por cento e houve fome generalizada entre os camponeses, sobretudo na Ucrânia.
Entretanto, a China era simplesmente pobre demais para aplicar o método soviético e obter um crescimento econômico rápido. Comparada com a União Soviética de 1929, a China de 1953 produzia por volta de metade da quantidade de comida per capta. Uma redução na produção de alimentos comparável à que acontecera na Rússia durante os anos 1930 iria literalmente ter produzido inanição em massa na China. O conflito entre a pobreza da China e a industrialização stalinista-soviética ortodoxa veio em 1956, quando um aumento repentino no investimento criou escassez de bens de consumo e matérias primas, levando à inflação. Diferente de insistir, como Stalin havia feito, a burocracia chinesa abandonou o Primeiro Plano Quinquenal e recuou. Em 1957, o investimento acabou reduzido e trabalhadores foram dispensados e embarcados de volta para o campo.
Como frequentemente ocorre em regimes stalinistas, uma desaceleração econômica esteve associada com certa abertura política (nesse caso, o Desabrochar de Cem Flores). Entretanto, o aroma das flores desabrochando acabou não sendo do gosto da burocracia. O alcance e profundidade do descontentamento que o Desabrocahr de Cem Flores revelou alarmou o regime maoísta. A burocracia sentiu necessário reassegurar sua autoridade e impor uma maior disciplina e uma sensação forçada de propósito nacional entre as massas.
Outra importante causa da política do Grande Salto Adiante adveio do estado contraditório da coletivização do campo. Ao contrário da Rússia de Stalin, a coletivização da produção agrícola até 1956 tinha um grande componente de voluntarismo. Isso foi possível porque o Partido Comunista Chinês possuía uma considerável autoridade moral entre os camponeses, em razão da sua vitória contra os latifundiários e a distribuição igualitária da terra. Os camponeses não tinham influência real sobre a escala e padrão da produção nas cooperativas. Entretanto, os quadros regionais do partido, que administravam as cooperativas, eram incumbidos de maximizar o excedente, o que significava reduzir uma grande parte da renda e aumentar o tempo de trabalho além do que os camponeses iriam concordar voluntariamente. Assim, os quadros rurais do partido receberam a incumbência de expandir a produção agrícola sem ter o poder para fazê-lo. Consequentemente, houve pressão da base do partido para transformar as cooperativas em fazendas estatais de facto, onde os camponeses receberiam ordens.
Essas pressões culminaram no Grande Salto Adiante de 1958. O coração da política do Grande Salto era o amálgama das cooperativas em unidades produtivas gigantescas e autossuficientes (as comunas) de muitos milhares de famílias. Esperava-se que o sistema de comuna liberasse enormes quantidades de força de trabalho, que seriam utilizadas para expandir a indústria através de métodos artesanais, fabricar produtos industriais pesados com técnicas primitivas (os fornalhas de ferro de fundo de quintal, por exemplo) e realizar os grandes projetos de conservação de água. Os membros das comunas seriam pagos apenas na base de frutos do trabalho, na prática transformando os camponeses em trabalhadores assalariados sem direito a propriedade, fosse a sua terra ou seus produtos diretos. O Grande Salto também foi apresentado ao campesinato de uma forma que se aproximava do discurso religioso. A China iria alcançar o Ocidente em alguns anos e atingir o comunismo completamente dentro de 15 anos. Em suma, os camponeses foram informados de que depois de alguns poucos anos de heroico sacrifício, eles estariam vivendo em um paraíso na Terra.
Quaisquer que tenham sido os seus efeitos práticos em acelerar o crescimento econômico, a “visão comunista” por trás do Grande Salto Adiante era utopismo reacionário. Ao invés de o comunismo resultar de uma divisão internacional do trabalho entre vários Estados proletários avançados (e da eliminação da escassez), o “comunismo” estilo chinês chegaria através do trabalho primitivo de milhões de camponeses (ou seja, a distribuição igualitária da pobreza). Mas, enquanto houver pobreza em massas, a base econômica para a criação de uma burocracia parasita – e, em última instância, um retorno à exploração capitalista através da contrarrevolução – permanecerá. Os líderes chineses estão cientes desse fato já que, apesar da sua absurda afirmação de que a China é um Estado socialista, cada nova “panelinha antipartido de traidores mal-intencionados cobertos de crimes” que é expulsa, é acusada também de andar preparando o caminho para o retorno ao capitalismo. Socialismo significa a abolição das classes através da abolição da base material para a exploração de classe – a escassez econômica. Para os marxistas, o proletariado é o vetor do socialismo não apenas porque é vítima da privação e opressão, mas também porque incorpora os mais altos avanços técnicos da humanidade, a base material para uma verdadeira revolução cultural. Para os marxistas, comunismo significa a troca do trabalho de cem camponeses pelo de um trator moderno; para os maoístas, por outro lado, comunismo significa a substituição do trabalho de um trator (indisponível) pelo de cem camponeses.
Na prática, o Grande Salto Adiante foi uma tentativa sem precedentes de militarizar o trabalho. A burocracia levou os camponeses aos limites da resistência física. As condições infernais criadas pelo sistema de produção forçada podem ser vistas no fato de que foi necessário para o Comitê Central emitir a seguinte diretiva para os quadros do partido nas comunas:
“Mas em qualquer momento, oito horas de sono e quatro horas para refeições e recreação, no total 12 horas, devem ser garantidas e isto não pode ser reduzido”.
― Peking Review, 3 de dezembro de 1958
Hoje é universalmente reconhecido que o Grande Salto Adiante levou a um colapso econômico único na história dos Estados sino-soviéticos. A magnitude exata do declínio na produção permanece desconhecida, porque o regime jamais publicou nenhuma estatística econômica nos anos 1960-63, o que por si só dá uma ideia da catástrofe econômica. Entretanto, uma estimativa razoável é de que a produção alimentar caiu entre 15 e 20 por cento entre 1958-60 (Current Scene, janeiro de 1964), enquanto a produção industrial teria caído entre 30 e 40 por cento entre 1959-62 (China Quarterly, abril-junho de 1970).
As razões precisas para a catástrofe causada pelo Grande Salto são numerosas. Condições climáticas foram um fator real, embora os maoístas tenham-no tornado um álibi completo. O regime, acreditando em suas próprias estatísticas terrivelmente infladas, chegou a reduzir a área para semeio de grãos em 1959. Os administradores das comunas desviavam o trabalho para os glamorosos trabalhos de fundição e irrigação de aço, devotando muito pouco ao trabalho agrícola básico. Na histeria de produzir resultados estatísticos, o controle de qualidade foi completamente abandonado. A maior parte do aço produzido nas comunas era inutilizável e mais da metade da supostamente nova área de terra irrigável não era arável. O estímulo a autossuficiência nas comunas resultou em tentativas de fazer crescer culturas (o algodão, por exemplo) em condições geográficas impossíveis. O abrupto corte na ajuda soviética em 1960 foi também um importante fator que causou um declínio na produção da indústria pesada.
Entretanto, a verdade avassaladora é que foram a grosseira violação dos interesses proprietários do campesinato e uma rígida militarização do trabalho as causas fundamentais da catástrofe econômica. Os camponeses se rebelaram contra o sistema de comunas da única forma que podiam – se recusando a produzir. Que a indisposição do campesinato estava no coração do fracasso do Grande Salto é atestado pela própria burocracia chinesa. Em seu recuo, o regime foi forçado a fazer grandes concessões a apetites camponeses individualistas. Nesse aspecto, o Grande Salto Adiante teve um significado decisivo. Ele dissipou o capital moral que o Partido Comunista tinha alcançado na guerra civil e com a distribuição igualitária da terra. Depois de 1960, os camponeses não podiam mais ser motivados por ideais sociais ou promessas de abundância futura, apenas com base em dinheiro vivo.
O rebaixamento de Mao e o Grande Tropeço Atrás
Mao foi especialmente responsável pelo Grande Salto Adiante. E de todos os líderes do partido, ele sozinho continuou a defendê-lo. Ele até mesmo defendeu as fornalhas de fundo de quintal, ao mesmo tempo em que observava que a ausência de ferrovias na China tornava difícil usar os lingotes produzidos para qualquer propósito útil. Enquanto o restante da liderança do partido percebeu que o Grande Salto tinha falhado porque ele atacava brutalmente o interesse próprio dos camponeses, Mao afirmava que a falha havia sido causada por “erros” e “excessos” dos representantes regionais do partido. Assim, Mao nunca rejeitou os princípios que constituíam o Grande Salto.
Já que ele continuava defendendo a política que levara a China à beira da inanição em massa, era previsível que Mao sofreria ataques de outras seções da burocracia. Em 1959, o Ministro da Defesa Peng Teh-huai, um stalinista ortodoxo pró-russo, lançou um ataque direto contra Mao por alienar as massas, produzir um caos econômico e causar fricção desnecessária com a União Soviética. Enquanto o ataque frontal do marechal Peng falhou e este tenha sido perseguido, isso enfraqueceu a estatura de Mao.
Durante 1959-61, conforme os resultados desastrosos do Grande Salto ficavam cada vez mais aparentes, Mao perdeu muito da sua autoridade entre os quadros dirigentes. Ele foi escorraçado da liderança central e substituído por um agrupamento liderado por Liu Shao-chi (o braço direito de longa data de Mao), Chou En-lai, Teng Hsiao-ping (o secretário geral do PC chinês) e Peng Chen. Mao e seus apoiadores (Lin Piao e Chen Po-ta) foram reduzidos a uma tendência crítica à esquerda dentro da liderança mais ampla do partido. As mudanças na liderança central do partido foram escondidas do público, embora dois dos apoiadores de Peng Chen (Wu Han e Teng To) tenham publicado pequenos ataques velados contra Mao, que depois serviram como pretexto para lançar a Revolução Cultural.
Para se recuperar do Grande Salto, o regime de Liu adotou uma política econômica bukharinista com respeito à produção agrícola e também industrial. As comunas foram desmontadas e substituídas pelo mais baixo nível de coletivização, a “brigada produtiva”, de cerca de vinte famílias. O livre mercado foi encorajado, assim como o foram a propriedade privada da terra e do gado. Em1962, a colheita de grãos privada em Yunan foi maior do que a colheita coletiva. Em 1964, já havia mais lavouras privadas do que coletivas em Kweichow e em Szechuan.
Em 1961, o governo proibiu totalmente novas construções industriais. O ritmo da expansão industrial seria determinado pelo excedente de livre mercado, vindo dos camponeses e das brigadas produtivas. Sob as condições chinesas, permitir o desenvolvimento industrial ser determinado pelo crescimento do mercado camponês é profundamente antiproletário no sentido mais elementar. Em 1964, o principal projetista econômico chinês, Po I-po disse a Anna Louise Strong que o regime pretendia reduzir a população urbana a cerca de 20 milhões (Strong, Letters from China).
O retorno a uma economia de mercado, combinado com um agudo declínio na autoridade popular do PC, criou poderosas tendências desintegradorasdentro da própria burocracia. Ganância pessoal, carreirismo, a defesa de interesses estreitos e coronelismo regional se tornaram frequentes. Durante a Revolução Cultural, houve relatos de que, em 1962, o partido de Shangai e de outras regiões requisitou grãos de Chekiang, uma das poucas regiões onde havia excedente. O Primeiro Secretário do partido em Chekiang parece ter respondido: “Chekiang não é uma colônia de Shangai… Eu tenho porcos para alimentar” (China Quarterly, outubro-dezembro de 1972). Essa resposta exemplifica as relações entre diferentes setores da burocracia nesse período.
Mao representava a ala nacional-messiânica e utópica da burocracia. Ele ficou, portanto profundamente perturbado pela crescente queda na disciplina, na unidade e na sensação de propósito nacional dentro do partido. Em 1962 ele estabeleceu um grupo de pressão, o Comitê de Educação Socialista, com o duplo propósito de restauras a noção de iniciativa nos quadros do partido e de limitar a tendência rumo ao individualismo camponês na política econômica. Os esforços do Comitê de Educação Socialista se mostraram impotentes contra a força do rotineirismo burocrático.
Em vista da Revolução Cultural, é necessário enfatizar a considerável diferença entre as políticas de Mao e aquelas da liderança partidária liderada por Liu entre 1961-65. Enquanto Mao era a favor de uma maior coletivização agrícola, ele apoiava firmemente as políticas que fortaleceram o peso social do campesinato contra a classe trabalhadora, tal como transferir população urbana para o campo. Mao sempre tentou liquidar o proletariado chinês enquanto um grupo social distinto e dissolvê-lo nas massas rurais.
Não havia diferença entre Mao e Liu a respeito da sua atitude com relação ao proletariado. Isso foi demonstrado pela defesa feita por Mao do sistema “proletário-camponês” durante a Revolução Cultural, apesar da sua enorme impopularidade e das suas consequências econômicas negativas. Essa perversa política antiproletária (instituída por Liu em 1963) exigia que os camponeses realizassem trabalho industrial durante a temporada de folga. Eles recebiam menos que os trabalhadores efetivos, não recebiam benefícios sociais completos disponíveis aos trabalhadores regulares e não tinham permissão de entrar nos sindicatos. Por sua vez, os trabalhadores efetivos sindicalizados eram substituídos por “proletários-camponeses” e logo despachados forçosamente para o campo! O sistema “proletário-camponês” conforma bem o “ideal” de Mao de uma sociedade comunista e é um mecanismo efetivo para diminuir os salários e aumentar a acumulação estatal. O sistema foi a causa mais importante do levante operário durante a Revolução Cultural. Os maoístas não apenas defenderam o sistema, mas também suprimiram as organizações de contrato de trabalho que haviam surgido espontaneamente para defender os “proletários-camponeses”.
Não há nem mesmo há qualquer evidência de que havia diferenças significativas entre Mao e o resto da liderança do PC chinês sobre a política externa antes de 1965. Foram Liu e Teng, não Mao, que organizaram a campanha contra o “revisionismo Kruschevista”. Muitos dos maoístas de hoje deveriam considerar que eles foram ganhos para a linha chinesa pela campanha “anti-revisionista” de Liu, Teng e companhia, depois de estes terem escorraçado Mao da liderança central.
Indonésia e Vietnã na Estrada para Washington
Durante uma plenária do partido em 1962, Mao revelou que Stalin não confiava no PC chinês desde o fim dos anos 1940, suspeitando de um potencial titoísmo. Mao relatou ainda que, enquanto ele buscava ganhar a confiança de Stalin, o PC chinês nunca sacrificou a sua independência. Entretanto, a polarização da guerra fria, particularmente a Guerra da Coréia, não deixou à China outra opção se não a de se tornar parte do bloco liderado pelos soviéticos. Durante meados dos anos 1950, o PC chinês buscou desenvolver a sua própria tendência dentro do bloco soviético, manobrando ativamente entre os partidos do Leste Europeu com uma linha mais independente de Moscou. Como um importante subproduto dessas atividades, o regime de Mao desempenhou um papel chave em incentivar os russos a esmagar o levante húngaro de 1956, e depois em justifica-lo internacionalmente.
Parte do “espírito de Camp David” (a coexistência pacífica entre Eisenhower e Kruschev) foi a compreensão de que o Kremlin iria policiar a expansão da potência nacional chinesa. Os principais aspectos disso, que foram também os eventos que levaram ao rompimento sino-soviético, foram a tentativa de Kruschev de fazer a China abandonar a sua pressão militar contra as ilhas do Estreito de Taiwan em 1958; a recusa soviética de cumprir a promessa de fornecer à China recursos para produzir armas nucleares; e a “neutralidade” pró-Índia da URSS durante a guerra de fronteira sino-indiana em 1960. O ataque político cada vez mais estridente da China aos soviéticos levou-os a reagir cortando totalmente a ajuda econômica em 1960. Essa pode ser considerada a data oficial do rompimento.
Seguido ao racha no campo soviético, a política externa chinesa consistiu de uma tentativa de se alinhar com o “Terceiro Mundo” – um termo remodelado para incluir a França de De Gaulle! – contra as duas superpotências. Nesse período, a política externa chinesa registrou alguns episódicos ganhos diplomáticos. Entretanto, em 1965, o Terceiro Mundo de repente ficou fora do alcance dos diplomatas chineses. Vários “amigos da China” foram derrubados por golpes militares, notadamente Nkrumah, que apropriadamente estava visitando a China na época. Em vista desses golpes de direita, a Segunda Conferência Afro-asiática, que os Chineses esperavam que se tornasse um fórum antissoviético, foi cancelada. Entretanto, um verdadeiro choque foi a derrubada de Sukarno na Indonésia, que resultou na sangrenta liquidação física do PKI pró-China, na época o maior partido stalinista que não tinha poder de Estado.
Os golpes de direita que varreram a Ásia e a África em 1965 demonstraram que a força do imperialismo dos EUA não está somente no seu poder militar direto, mas também nos seus laços orgânicos com as classes possuidoras ao redor do mundo. Onde quer que a luta de classes atinja uma certa intensidade, a burguesia colonial rompe o seu flerte com Pequim ou Moscou e abraça a classe dominante norte-americana como a principal defensora da ordem capitalista em nossa época.
Com a estratégia terceiro-mundista da China enterrada sob os corpos decapitados dos trabalhadores e camponeses indonésios, um novo perigo ameaçava a China – o avanço dos EUA no Vietnã. A manifesta impotência do “Terceiro Mundo” em proteger a China, combinada com os bombardeios do imperialismo dos EUA na sua vizinhança, causou profundas diferenças dentro da burocracia. Um grupo ao redor de Liu, Peng Chen e o Chefe do Exército de Liberação Popular, Lo Jui-ching, queriam evitar a deterioração das relações com a União Soviética e arranjar um tipo de frente única militar com o Kremlin em cima do Vietnã. O grupo de Mao e Lin queria continuar a escalar o rompimento com a URSS e, acima de tudo, impedir outra situação como a da Guerra da Coréia.
Em certo sentido, a primeira batalha da Revolução Cultural foi travada no alto comando do ELP. Sob o pretexto de “profissionalismo” contra “politica”, ela foi, na realidade, uma luta em cima da política para o Vietnã e uma aliança militar soviética. Lo Jui-ching queria se preparar ativamente para uma possível intervenção massiva por terra no Vietnã. Do outro lado, um chamado pela “guerra popular” foi na verdade um chamado para um retrocesso da guerra do Vietnã de volta ao nível de guerra de guerrilhas, para evitar o perigo de que a China fosse mergulhada em outra situação como a da Coréia. A vitória de Lin sobre o chefe do Estado-maior foi a primeira vitória do isolamento militar da China.
O ponto decisivo veio no início de 1966, quando o Partido Comunista Japonês pró-China tentou organizar uma frente única militar das potências comunistas na questão do Vietnã. Uma declaração conjunta dos PCs japonês e chinês sobre o Vietnã foi acordado sem atacar os russos de “revisionismo”, e dessa forma abrindo a porta para colaboração sino-soviética. Na última hora, Mao sabotou o acordo e atacou abertamente os líderes do partido, sobretudo Peng Chen, que eram responsáveis por ele. Mao estava determinado a não provocar a suspeita dos norte-americanos através de uma mostra de solidariedade com a Rússia. Sob o pretexto de combater o “revisionismo”, Mao informou em seguida ao imperialismo dos EUA que, enquanto a China não fosse diretamente atacada, ela não iria intervir mesmo diante dos ataques mais assassinos contra os trabalhadores e camponeses de outros países. Assim, a détente com os EUA não era apenas um giro à direita marcando um recuo da Revolução Cultural. O apetite de Mao para uma aliança com o imperialismo dos EUA, para melhor travar a luta com a sua “contradição principal” na forma do “social-imperialismo soviético”, foi de fato um dos eixos centrais da “Revolução Cultural”.
Havia uma conexão clara entre as divisões fracionais acerca da política interna e externa. Como o grupo liderado por Liu estava pronto a deixar a burocracia afundar no carreirismo rotineiro e nos privilégios extravagantes, e a deixar a economia expandir no ritmo da vontade dos camponeses, esse grupo só podia conceber a defesa da China estando dentro da esfera militar soviética. Já que Mao e Lin estavam determinados a fazer da China uma superpotência sem concorrência, eles estavam prontos a mobilizar e disciplinar a burocracia e as massas para superar o atraso social da China tão rapidamente quanto possível.
A Antiproletária Revolução Anticultural
Em uma frase, a Revolução Cultural era uma tentativa de mobilizar as massas para criar as condições materiais para a política de grande potência da China, na base de um grande fervor nacional messiânico. Para fazer isso, os maoístas tinham que expurgar uma burocracia administrativa cada vez mais conservadora e interessada no próprio umbigo. Para essa tarefa, Mao buscou os oficiais do ELP e a juventude estudantil de origem pobre. Uma vez tendo sido expurgado das tendências conciliacionistas pró-russas, era natural que o corpo de oficiais se encontrasse no campo maoísta. A posição social dos oficiais os levou a ficarem mais preocupados com a força em longo prazo do Estado chinês do que com estreitos interesses locais. Além disso, eles foram removidos da pressão direta das massas chinesas e naturalmente foram a favor de extrair um excedente maior para a produção de armas. A juventude estudantil chinesa era, na maior parte das vezes, a burocracia de amanhã. Eles eram os herdeiros do governo chinês e queriam que esse governo fosse grande e poderoso e os seus indivíduos fossem dedicados e sérios. Os interesses restritos de uma juventude pequeno-burguesa ambiciosa e estudada são futuramente aqueles das camadas pequeno-burguesas. Por essa razão, eles facilmente adotaram os ideais utópicos e atacaram aqueles cujos problemas cotidianos impediam esses ideais de serem realizados.
Com o apoio de Lin e do comando do ELP, Mao facilmente se livrou de seus principais oponentes fracionais – Liu, Teng e Peng – em 1966, antes de a Revolução Cultural ser levada para as ruas. O expurgo completo da burocracia provou-se mais difícil. No fim, acabou se provando impossível. Para entender como os entrincheirados burocratas resistiram à Revolução Cultural, é necessário ver o que aconteceu quando os “revolucionários proletários” do Exército Vermelho confrontaram o proletariado chinês – do outro lado das barricadas!
Quaisquer fossem as ilusões das massas chinesas sobre a Grande Revolução Cultural Proletária, rapidamente ficou claro que ela não significava mais para o proletariado. Sob o slogan de combater o “economicismo”, os maoístas radicais deixaram claro que eles tinham a intenção de baixar os salários e intensificar o ritmo de trabalho. Durante 1966, houve uma onda de lutas operárias culminando na greve geral de Shangai e na greve nacional dos ferroviários em janeiro de 1967, o maior embate entre o proletariado chinês e o governo stalinista até hoje.
Os trabalhadores ferroviários eram uma das seções mais conscientizadas do proletariado na sociedade chinesa, com as suas próprias sedes e escolas. A Revolução Cultural foi particularmente dura com os ferroviários porque, além do tráfego normal, eles tinham de transportar enormes exércitos de Guardas Vermelhos ao redor do país. Em adição, era-lhes exigido estudar o Pensamento do Presidente Mao depois de um longo dia de trabalho. Em razão do tráfego extra, os regulamentos de segurança existentes foram violados. Quando os trabalhadores reclamaram, os Guardas Vermelhos atacaram o “velho regulamento [de segurança] que não está conforme o pensamento de Mao Tse-tung” (Current Scene, 19 de maio de 1967). Sem dúvida os Guardas Vermelhos acreditavam que o pensamento de Mao era mais poderoso do que as leis da Física! O sindicato das ferrovias em Shangai organizou outros trabalhadores em negociações centrando em reduzir as longas horas de trabalho ou em receber por elas. Em dezembro, as autoridades locais garantiram um aumento geral nos salários. Quando a direção central maoísta em Pequim reverteu o aumento salarial, as ferrovias de Shangai e de toda a China pararam de funcionar.
Os Guardas Vermelhos e o ELP derrubaram o governo local de Shangai e seguiram para esmagar a greve. A famosa “Carta a Todo o Povo de Shangai” (Shangai Liberation Daily, 5 de janeiro de 1967) começava com a ordem: “Contenham a Revolução, Estimulem a Produção”. A “Carta” seguia culpando os elementos antipartido por incitar os trabalhadores a deixar seus postos e chamava a convergir com Pequim. Essa era uma propaganda curiosa vinda de supostos líderes de uma revolução “proletária” contra aqueles que detinham o poder político. A greve dos ferroviários demorou a ser suprimida e os estudantes universitários tiveram que ser usados como fura-greves sem qualificação.
Depois dos eventos de janeiro de 1967, aqueles burocratas sob ataque dos Guardas Vermelhos tiveram poucos problemas para organizar os seus próprios “Guardas Vermelhos”, compostos de trabalhadores, para defendê-los. Os trabalhadores sentiram que, se os Guardas Vermelhos tomassem o poder, eles iriam trabalhar doze horas por dia, sete dias por semana e estudar o Pensamento de Mao por mais oito horas. E nas batalhas de rua que aconteceram pelas cidades da China, os maoístas radicais não estavam ganhando.
Apesar da “participação” das massas, a Revolução Cultural permaneceu uma luta entrea burocracia. Era uma batalha entre a fração Mao-Lin e o aparato conservador, atomizado do partido. Em geral, os estudantes e trabalhadores foram organizados e cinicamente manipulados pelas tendências da burocracia. Os marxistas revolucionários não poderiam apoiar qualquer dos lados, fosse o nacionalismo utópico-militarista da fração de Mao ou os vários carreiristas lutando para manter seus postos.
Do ponto de vista dos comunistas, a Revolução Cultural polarizou a sociedade chinesa ao longo das linhas erras, ao colocar uma juventude estudantil subjetivamente revolucionária, que acreditava estar combatendo o burocratismo, contra trabalhadores defendendo as suas condições de vida. Houvesse uma organização trotskista na China capaz de intervir, a sua tarefa teria sido romper com essas falsas linhas de divisão e construir uma oposição comunista genuína à burocracia como um todo.
Para os Guardas Vermelhos, os comunistas teriam dito o seguinte: Primeiro, a consciência comunista entre os trabalhadores não pode ser criada por meio de métodos de misticismo religioso (o espírito de Mao dominou sua alma?), mas apenas quando os trabalhadores forem realmente responsáveis por governar a sociedade chinesa através de instituições democráticas. Segundo, o conceito de socialismo deve ser extirpado do ascetismo de quartéis militares. Comunistas se preocupam genuinamente com o bem-estar material das massas e não glorificam a pobreza e o trabalho sem fim. E, talvez mais importante, uma sociedade comunista não pode ser construída na China simplesmente através da vontade e dos sacrifícios do povo Chinês. Isso exige o apoio de revoluções proletárias vitoriosas nos países capitalistas avançados – revoluções que são impedidas pela política externa da China stalinista. Uma tarefa central para os comunistas chineses é usar o poder e a autoridade do Estado chinês para avançar a revolução socialista mundial. Isso significa não apenas um rompimento com o apoio dado a regimes nacionalistas burgueses antiproletários, mas também exigindo imediatamente um bloco militar com a União Soviética, mais urgentemente na Indochina, mesmo enquanto a URSS permanece sob domínio burocrático.
Para aqueles trabalhadores que tiveram o impulso de defender os burocratas no poder contra os maoístas radicais, os trotskistas teriam dito o seguinte: os interesses materiais dos trabalhadores não podem ser avançados apoiando os elementos “moderados” da burocracia. Esses interesses materiais só podem ser atendidos quando um governo dos trabalhadores controlar a economia chinesa, substituindo o controle destrutivo da burocracia conservadora. Para manter o poder político, o governo dos trabalhadores teria realmente que controlar o aumento dos salários para poder gerar excedente necessário para propósitos militares e para absorver o campesinato à força de trabalho industrial. A ditadura do proletariado não pode sobreviver com uma classe trabalhadora pequena e aristocrática cercada por um mar de camponeses empobrecidos. Entretanto, uma melhoria fundamental nas condições materiais da população chinesa só pode vir através de recursos obtidos de Estados proletários mais avançados. Ajuda econômica à China através da revolução internacional não precisa ser uma perspectiva de longo prazo. Uma revolução proletária na China daria um enorme ímpeto para a revolução socialista no Japão, a potência industrial da Ásia, com um proletariado altamente consciente e uma estrutura social frágil. O desenvolvimento complementar, planejado, do Japão e da China iria avançar muito rumo à superação da pobreza da população chinesa. Essa era a política que o movimento trotskista deveria ter apresentado aos trabalhadores e estudantes chineses se digladiando durante a Revolução Cultural.
Quem foram os vencedores?
Com os burocratas no poder conseguindo mobilizar grupos de trabalhadores para lutar contra os Guardas Vermelhos, os maoístas radicais ficaram num beco sem saída. O centro maoísta tomou então uma ação que mudou fundamentalmente o curso da Revolução Cultural e acabou por levá-la ao fim. Em fevereiro de 1967, o exército foi chamado para ajudar os Guardas Vermelhos a “tomar o poder”. Mas o corpo de oficiais do ELP é carne e sangue da burocracia, ligado ao resto da oficialidade da China por inúmeros laços sociais e pessoais. Como uma condição para apoiar os Guardas Vermelhos, o comando do ELP exigiu que não houvesse expurgos grandes nos administradores no poder, que lhes permitissem se reabilitarem. Isso foi a assim chamada “política dos quadros moderados”. O papel do ELP ao preservar a burocracia foi codificado através de uma mudança no programa formal da Revolução Cultural. Quando lançado em 1966, a Revolução Cultural iria supostamente produzir um sistema político modelado na Comuna da Paris. No começo de 1967, isso foi modificado para a assim chamada “tripla aliança” de “rebeldes revolucionários” (Guardas Vermelhos), o ELP e os “quadros revolucionários” (os burocratas no poder). Claramente o corpo de oficiais estava no comando.
A verdadeira relação entre o ELP e os Guardas Vermelhos foi revelada pelo famoso incidente de Wuhan em agosto de 1967, embora o comandante do exército tenha ido longe demais. Em uma luta fracional entre dois grupos de Guardas Vermelhos, o comandante do exército naturalmente apoiou o mais direitista. Quando dois emissários maoístas vieram de Pequim para apoiar a fração mais radical, o comandante mandou prendê-los. Por esse ato de quase motim, ele foi demitido. Entretanto, o destino dos principais envolvidos no incidente de Wuhan é bastante significativo. O comandante rebelado, Chen Tsai-tao, está hoje de volta ao poder, enquanto os dois emissários maoístas foram expurgados como “ultra-esquerdistas”.
O incidente de Wuhan colocou temporariamente o centro maoísta contra o comando do ELP e a Revolução Cultural atingiu o seu pico de violência anárquica, incluindo o incêndio da chancelaria britânica. Por volta do fim de 1967, a pressão do comando do ELP para acabar com os Guardas Vermelhos se tornou irresistível.
A edição de 28 de janeiro de 1968 de Liberation Army Daily anunciou queo ELP iria “apoiar a esquerda, mas nenhuma facção em particular” ― uma ameaça não tão velada de esmagar os Guardas Vermelhos. O artigo seguia atacando o “fracionalismo pequeno-burguês”. Por volta da mesma época, Chou En-lai afirmou que a liderança da Revolução Cultural tinha passado dos estudantes e juventude para os trabalhadores, os camponeses e os soldados. Ao longo de 1968, ataques contra o “fracionalismo pequeno-burguês”, o “anarquismo” e o “sectarismo” abafaram os ataques contra a “tomada de rumo capitalista” e o “revisionismo”.
E tudo terminou em mangas. A cortina caiu sobre a Revolução Cultural em agosto de 1968, quando Mao interviu pessoalmente para resolver uma luta fracional entre Guardas Vermelhos estudantes na Universidade Tsinghua em Pequim, onde havia se formado o primeiro grupo de Guardas Vermelhos. Tendo falhado em resolver a disputa a seu gosto, Mao supostamente teria dito: “Vocês me deixaram triste, e ainda pior, vocês desapontaram os trabalhadores, camponeses e soldados da China.” (Far Eastern Economic Review, 29 de agosto de 1968). Dentro de 48 horas, o primeiro “Time de Propaganda do Pensamento Operário-Camponês de Mao Tse-tung”, comandado pelos oficiais do ELP, chegou na Universidade de Tsinghua e dissolveu os Guardas Vermelhos. Por este serviço, o Presidente enviou pessoalmente ao grupo um carregamento de mangas como presente. Os Guardas Vermelhos fora suprimidos por meios similares pelo país. Os ativistas mais resistentes foram enviados para o interior para “remodelar” o seu pensamento através do trabalho com os camponeses, o destino usual daqueles que “despontam” Mao.
A fração de Mao não ganhou a Revolução Cultural. Mao claramente esperava substituir a burocracia administradora por quadros inequivocamente leais a ele, intercalados com jovens “clones” seus, e gerando entusiasmo de massa enquanto fazia isso. Ao invés disso, a reação popular contra a Revolução Cultural fortaleceu a resistência da burocracia que detinha o poder. Uma vez que o exército foi chamado indiretamente, Mao foi forçado a desempenhar um papel bonapartista entre os oficiais do ELP, que representavam o conservadorismo burocrático, e a juventude estudantil radical.
Que a burocracia foi largamente mantida se demonstra pela composição do Comitê Central eleito no Nono Congresso do PC chinês em 1969 – o assim chamado “Congresso dos Vencedores”. A média de idade do CC era de 61 anos e o tempo médio de partido de 25 anos. Dois terços do CC eleito em 1945 (que não haviam morrido e nem sido expurgados antes da Revolução Cultural) foram reeleitos para o Comitê Central de 1969! Na verdade, o CC de 1969 mostrou um aumento na proporção de oficiais do ELP (45 por cento). Dificilmente o que um ingênuo entusiasta maoísta poderia esperar do posteriori de uma suposta “revolução” antiburocrática!
A liquidação final da Revolução Cultural veio com a queda da fração de Lin. Lin Piao estava associado com uma série de políticas manifestamente fracassadas. No campo da economia nacional, ele foi acusado de querer lançar um impulso na produção em 1969 e de “permitir que os camponeses pudessem ser privados de sua renda legítima” (Far Eastern Economic Review, 1973 Yearbook). Claramente, Lin estava pressionando por outro Grande Salto Adiante. Entretanto, a Revolução Cultural havia demonstrado enorme descontentamento econômico e a disposição dos trabalhadores em combater o regime para preservar as suas condições de vida. A campanha por um Grande Salto Adiante em 1969 poderia ter sido suicida. De fato, desde a Revolução Cultural, a economia chinesa tem estado mais orientada para o mercado, mais desigual, e mais localizada do que ela era em 1965. O regime de Mao/Chou parece ansioso para garantir às massas que grandes sacrifícios econômicos não lhes serão exigidos. Quase todo pronunciamento oficial sobre política econômica afirma o direito do campesinato a um terreno privado.
Na política externa, o homem que anunciou que “o campo do mundo conquistará as cidades do mundo” foi igualmente derrotado. No fim dos anos 1960, somente um idiota político poderia acreditar que a China estava liderando de forma bem sucedida o “Terceiro Mundo” contra os EUA e a Rússia. A Revolução Cultural deixou a China diplomaticamente isolada. Apesar da Guerra do Vietnã, a política externa dos EUA ao longo de 1968 continuou a se orientar para um bloco com a Rússia contra a China. Com as condições objetivas favoráveis para ganhos diplomáticos e econômicos, um giro à direita na política externa era inevitável. É provável que Lin tenha rompido em oposição à reaproximação com Nixon.
Com sua base no exército, Lin sem dúvida lançou uma luta fracional contra o eixo emergente de Mao/Chou. Ele perdeu. É bem possível que ele tenha planejado um golpe militar como os maoístas afirmam. Entretanto, qualquer mal que Lin possa ter desejado a Mao e Chou enquanto estava vivo, o seu cadáver foi mais do que compensado por isso. Ele é o bode-expiatório perfeito para tudo que deu errado em razão da Revolução Cultural. Toda vez que um “defensor do rumo capitalista” expurgado é reconduzido ao poder, foi Lin que conspirou contra ele. Quando Chou pediu desculpas aos britânicos pelo incêndio na sua chancelaria, ele pôs a culpa em Lin.
A cada dia que passa, as vítimas da Revolução Cultural parecem substituir os vencedores. Mesmo o “número dois no comando para tomar o rumo capitalista”, Teng Hsiao-ping, está de volta à estrada com Mao. E ainda assim a Revolução Cultural deixou claramente um partido bastante dividido. O segredo e a extrema rapidez do Décimo Congresso do Partido aponta uma situação interna tensa. É como se a menor concessão formal à democracia intrapartidária fosse produzir um fracionalismo mortífero. A elevação do desconhecido Wang Hungwen a número três é provavelmente colher-de-chá aos maoístas radicais que compreensivamente não confiam em Chou En-lai ― o homem que nunca está do lado derrotado de uma luta fracional. Entretanto, Wang é provavelmente uma figurinha sem base real nos quadros do partido. Quando Mao morrer, o PC chinês deve ter uma crise de sucessão que vai fazer a Revolução Cultural parecer uma conversa educada. É claro, o proletariado chinês deve tirar da agenda a questão de qual burocrata aspirante vai tomar o lugar de Mao, estabelecendo o seu próprio domínio democrático de classe.
Abaixo Mao e Brezhnev! Por Unidade Comunista Sino-soviética!
O desenvolvimento mais importante desde a Revolução Cultural foi nas relações externas da China. As relações do país com a União Soviética pioraram drasticamente, chegando a sinalizar um conflito armado em 1970. A fronteira sino-soviética tornou-se uma das fronteiras mais militarizadas do mundo. O novo caso de amor do regime de Mao/Chou com Richard Nixon é claramente considerado como um contraponto ao que ela vê como o seu inimigo principal – a União Soviética. No ano passado, a tentativa chinesa para alinhar o imperialismo ocidental contra a União Soviética atingiu um novo pico. A China está fazendo campanha para fortalecer a OTAN para desviar o exército russo da Sibéria. Por exemplo, em 3 de agosto, a publicação oficial Peking Review cita de forma aprovadora a carta do Lord Chalfont para o London Times chamando pela expansão da OTAN:
“Chalfont tem recentemente publicado uma série de artigos no The Times para expor a ameaça soviética contra a segurança da Europa, e feito um apelo pelo fortalecimento de uma cooperação defensiva dos países da Europa Ocidental.”
Qualquer que sejam as mudanças episódicas que ocorram nos humores diplomáticos, a relação objetiva do imperialismo dos EUA para com a União Soviética é fundamentalmente diferente daquele com relação à China. A União Soviética é economicamente e militarmente superior à China, e rival militar dos EUA. Portanto, a União Soviética é que é o centro dos regimes anticapitalistas do mundo e o principal obstáculo objetivo ao imperialismo dos EUA (Poderia a China ter sustentado os cubanos sob o embargo dos EUA?). A União Soviética poderia derrotar a China em uma grande guerra sem a intervenção imperialista, enquanto a China só poderia esperar a vitória em aliança com outra potência. Assim, a lógica do triângulo de grandes potências é de uma aliança EUA-China contra a União Soviética. Entretanto, a política das grandes potências não é historicamente racional, e um ataque dos EUA e da União Soviética contra a China permanece uma possibilidade.
Sob quaisquer circunstâncias, uma guerra entre a Rússia e a China seria um enorme retrocesso para a causa do socialismo. Se eclodir uma guerra sino-soviética independente da intervenção direta do imperialismo, tal como uma versão expandida do conflito de fronteira de 1970, os trotskistas devem chamar por derrotismo revolucionário para ambos os lados. Entretanto, se os EUA se aliarem a um dos lados em uma guerra sino-soviética de forma que o resultado significaque restauração do capitalismo através da vitória imperialista, os trotskistas devem chamar pela defesa militar incondicional do Estado proletário deformado ou degenerado diretamente sob o ataque do imperialismo dos EUA.
O foco do conflito russo-chinês é a fronteira siberiana. Significativamente, a base legal para as reivindicações conflitantes é um tratado do século dezoito assinado pela dinastia Romanov e pelos Manchu ― que, como todos sabemos, tinham escrúpulos em sua preocupação com os direitos nacionais! Aqueles que são novos no movimento socialista podem achar difícil compreender porque a liderança de um Estado proletário deformado está disposta a ir à guerra contra outro Estado proletário degenerado por uma fatia de território vagamente habitada e conviver com potências capitalistas para fazê-lo. Isso significa que Estados proletários podem ser imperialistas, assim como potências capitalistas? Existe um impulso econômico tornando inevitável a guerra entre esses dois países comandados por stalinistas? Não mesmo.
Na verdade, os regimes de Moscou e Pequim são politicamente ameaçados pela própria existência de um e de outro, já que ambas potências afirmam representar os interesses dos trabalhadores mas são na verdade instrumentos de uma burocracia isolada que só pode se manter no poder suprimindo forçosamente qualquer vida política do proletariado. Kruschev e Brezhnev lidaram com Liu e Mao da mesma forma com a qual Stalin lidou com Tito (contra o qual ele tinha reclames territoriais) e cada oposição interna, desde Trotsky pela esquerda até Bukharin pela direita, e mesmo com membros potencialmente independentes das suas próprias frações também. Uma tendência competidora afirmando representar os trabalhadores e com os recursos de poder de Estado para propagar as suas visões é duplamente ameaçador para a precária estabilidade desses regimes antiproletários.
Como Trotsky apontou, as origens da degeneração burocrática da União Soviética podem ser traçadas desde a limitação nacional e isolamento da Revolução Russa em um país atrasado. Isso levou à elaboração da ideologia nacionalista do “socialismo em um só país” – uma necessária falsa consciência para uma camada burocrática dominante. Assim, esses supostos “comunistas” falam da boca para fora de internacionalismo proletário, mas ao mesmo tempo acreditam que é seu dever sagrado expandir a sua pátria-mãe. E o que é verdade para Moscou é igualmente verdade para Pequim ou para as burocracias nacionalistas de segunda ordem, como a de Sofia (Bulgária), Tirana (Albânia), etc.
No conflito a respeito da Sibéria, os russos agora tem uma vantagem esmagadora. Em adição a uma absoluta superioridade nuclear, o exército soviético teria uma vantagem em guerra convencional, apesar das maiores reservas populacionais da China. O lado russo da fronteira é muito mais densamente povoado. E os povos de fala turca que habitam a fronteira norte da China tem rancor pelos séculos de chauvinismo Han, e podem muito bem ser simpáticos aos russos. O Kremlin também está dando duro, por sua parte, para conseguir apoio de potências capitalistas. Para além de considerações puramente financeiras, uma grande razão para que Brezhnev esteja tão ansioso para ter capital estrangeiro nos campos de óleo e gás siberianos é para dar aos EUA e ao Japão um bom motivo para querer que a Sibéria permaneça sendo russa.
Entretanto, a vantagem militar do exército soviético está sendo rapidamente diminuída pelo desenvolvimento da capacidade militar chinesa. Assim, existe agora pressão no regime de Brezhnev para realizar um ataque nuclear preventivo contra a China antes que os chineses desenvolvam uma capacidade de retaliação maior. As autoridades soviéticas estão atualmente criando um grande temor de guerra, particularmente entre os residentes da Sibéria, baseado no pior tipo de racismo do “perigo amarelo”. Um correspondente do Economist de Londres (25-31 de agosto) citou um professor escolar na Sibéria declarando que:
“A rádio chinesa, transmitindo em russo, ameaçou que os chineses iriam ocupar o sul da Sibéria, matar todos os homens russos e raptar as mulheres russas para casarem.”
Se governos proletários revolucionários estivessem no poder em Moscou e Pequim, o conflito a respeito da Sibéria seria facilmente resolvido nos interesses dos trabalhadores russos e chineses. A Sibéria seria aberta para a imigração chinesa e administrada conjuntamente para garantir um rápido desenvolvimento econômico. Além disso, a existência dos Estados proletários revolucionários unificados da Rússia e da China poderia lançar a faísca para a revolução socialista japonesa, liberando os recursos econômicos do Japão para o desenvolvimento da Sibéria, assim como o da China.
Os trotskistas entendem que as burocracias stalinistas estão presas em uma posição fundamentalmente contraditória. Por um lado, elas buscam se defender do ataque imperialista, enquanto por outro elas lutam por uma convivência impossível com as potências capitalistas e temem acima de tudo o espalhar da revolução pelo mundo, que iria inevitavelmente derrubar os seus regimes parasitários. Em longo prazo, os Estados proletários deformados (Estados baseados em formas de propriedade coletivizada comandados burocraticamente) podem sobreviver apenas através da extensão internacional do poder dos trabalhadores. Ao defenderem políticas nacionalistas, as burocracias stalinistas da Rússia e da China enfraquecem a ditadura do proletariado e abrem o caminho para a sua derrubada por uma contrarrevolução interna ou conquista imperialista. A revolução chinesa (a mais importante derrota para o imperialismo desde a Revolução de Outubro na Rússia) está agora mortalmente ameaçada por uma guerra nuclear. Uma guerra não com uma potência imperialista, mas com outro poderoso Estado proletário burocratizado – a União Soviética.
Apenas derrubando os governos reacionários de Mao e Brezhnev podem as massas trabalhadoras russas e chinesas impedir uma guerra uma contra a outra e, ao invés disso, trazer a unificação política, militar e econômica dos Estados sino-soviéticos contra o capitalismo mundial.
Por Unidade Comunista Contra o Imperialismo Através de Revoluções Políticas Proletárias nos Estados Sino-Soviéticos!
Pela Defesa das Revoluções Russa e Chinesa Através da Revolução Proletária Internacional!