O movimento proletário marxista teve seu auge no século 20 com a organização da Internacional Comunista em 1919. Até o Quarto Congresso, em 1922, ela buscou levar uma estratégia revolucionária consistente, além de apoio material, para os movimentos dos trabalhadores de todo o mundo. Em 1924, no Quinto Congresso, foram feitas concessões ao nacionalismo burguês, com a entrada do partido Kuomintang como seção simpatizante e de Jiang Jieshi, futuro carrasco dos comunistas chineses, como membro honorário. A IC reuniu-se então apenas com espaços de vários anos, enquanto antes, mesmo durante época de guerra civil, tinha mantido congressos anuais. Seus dois últimos congressos foram marcados por giros debilitantes para o movimento dos trabalhadores. O sexto (1928) defendeu um curso esquerdista que abortava a possibilidade de unidade de ação no movimento dos trabalhadores contra a reação fascista; e o sétimo (1935), a dissolução da independência dos trabalhadores em coalizões de colaboração com a burguesia “democrática”. A dissolução formal da Internacional por Stálin, em 1943, foi apenas o último ato num processo de adaptação da organização à convivência com a burguesia.
Vários movimentos emergiram da Internacional Comunista. Reivindicamos as críticas e apontamentos da Oposição de Esquerda Internacional, liderada por Leon Trotsky, e da Quarta Internacional dela derivada, que foi fundada oficialmente em 1938. Ela foi construída retomando as melhores elaborações da Internacional Comunista, crítica ao rumo a partir do V Congresso e elaborando de forma criativa sobre os desenvolvimentos mais importantes das lutas de classe nos anos 1930, e os seus documentos e análises são até hoje relevantes para compreensão do método marxista. Apesar disso, com exceção das seções norte-americana (SWP), boliviana (POR) e cingalesa (LSSP), não conseguiu um enraizamento significativo na classe trabalhadora; sofreu duramente com a calúnia e perseguição stalinista, tanto no movimento operário quanto durante a Segunda Guerra Mundial, tendo inúmeros de seus quadros mais importantes na Europa e na Ásia assassinados por fascistas ou por agentes stalinistas (destino que teve o próprio Trotsky em seu exílio no México).
A Quarta Internacional foi parcialmente reconstruída no pós-guerra, mas com uma liderança que, embora hábil em trabalho clandestino, combinava uma série de fragilidades, uma vez que os antigos quadros morreram durante a guerra e os quadros do SWP se abstiveram de desempenhar um papel mais ativo, deixando a maior parte do trabalho para os grupos europeus. Em primeiro lugar, essa nova liderança juntava figuras que não tinham desempenhado papel de destaque no trotskismo pré-guerra (como Michel Pablo e Sal Santen) ou ainda que eram muito jovens e parcialmente inexperientes (quando do Segundo Congresso Mundial, realizado em 1948, Ernest Mandel e Livio Maitan tinham apenas 25 anos). Ela ainda cometeu o erro de reintroduzir diretamente nos círculos dirigentes do movimento figuras que haviam rompido anos antes, sem nenhum balanço sério das divergências passadas (caso de Pierre Frank). Frente a divergências surgidas da própria complexidade dos eventos que estavam se desenrolando no imediato pós-guerra, essa liderança, ainda por cima, recorreu a medidas burocráticas para suprimir as vozes dissidentes. Esses fatores, combinados, levaram a vários ziguezagues entre meados dos anos 1940 e o início dos anos 1950.
Em 1951, após um período de intensos debates, a nova liderança internacional adotou um curso abertamente adaptado ao stalinismo, à esquerda socialdemocrata e ao nacionalismo burguês, segundo o qual os marxistas deveriam cumprir um papel de alavanca de pressão para que tais direções mais consolidadas do movimento dos trabalhadores funcionassem como “instrumentos desafinados”, mas que seriam capazes de desempenhar as tarefas centrais da revolução socialista. Abandonou em grande parte o papel de crítica a tais tendências políticas e escondeu o programa marxista para adaptar-se a elas. Combinado a isso, havia a perspectiva de liquidação organizativa parcial ou total das seções da Internacional em um “entrismo profundo” nessas organizações. Houve muita aquiescência e pouca resistência efetiva a tal curso, em grande medida devido à fraqueza das seções nacionais e à postura de pouco interesse internacional da seção norte-americana (a mais numerosa).
A adoção de métodos stalinistas contra as vozes divergentes e de explicações grotescamente antimarxistas para justificar o oportunismo político levou a expulsões nas seções britânica (RCP) e francesa (PCI), que foram as principais a se levantarem contra esse curso num primeiro momento. Nós reivindicamos as análises e críticas apresentadas pelos setores majoritários desses dois grupos como um importante elo de continuidade com o programa original da Quarta Internacional. Uma contribuição semelhante veio da Tendência Vern-Ryan, do setorial de Los Angeles do SWP norte-americano. Tais contribuições apresentaram uma análise mais coerente do processo de transformação social do Leste Europeu e da China (similar ao que apresentamos acima) do que aquele apresentado por Pablo-Mandel (para os quais havia ocorrido uma transformação gradual, através de uma “assimilação estrutural” à URSS). Esses grupos denunciaram o curso liquidacionista contido na reavaliação do papel do stalinismo e na proposta de “entrismo profundo” dos trotskistas nos partidos socialdemocratas, nacionalistas e stalinistas. Por encararmos que tais contribuições são parte central da continuidade revolucionária, temos feito um esforço sistemático de traduzir e disponibilizar em nosso Arquivo Histórico documentos desses grupos, para serem usados na formação de nossos membros e contatos.
O curso formulado pela liderança internacional na segunda metade dos anos 1940 e começo dos anos 1950 pavimentou a adaptação da Quarta Internacional à posição traiçoeira da seção boliviana (POR) de orientar-se por um governo de conciliação de classe com a esquerda do partido nacionalista MNR nos eventos revolucionários na Bolívia em 1952-53, em vez de uma postura de independência de classe e pelo estabelecimento da ditadura do proletariado. O fracasso da revolução boliviana, onde o POR poderia ter cumprido um papel central, marcou a adaptação da Quarta Internacional a uma política inconsistente e vacilante (centrista). Poucos criticaram a política adotada pelo POR e endossada plenamente pela liderança internacional. Os documentos da Tendência Vern-Ryan no SWP são uma importante exceção e referência para essa questão. Por fim, diante da manipulação interna da direção europeia para se livrar da liderança histórica da seção norte-americana, o SWP lançou, ainda que tardiamente, uma luta contra o “pablismo”, em 1953. Identificou na figura do principal dirigente europeu, o grego Michel Raptis (Pablo) a causa da degeneração da Quarta Internacional, que já estava bastante consolidada.
O SWP dos Estados Unidos realizou um rompimento com a Quarta Internacional, organizando o “Comitê Internacional” com algumas seções importantes, e apesar de críticas corretíssimas, com as quais temos acordo, essa reação foi não apenas muito atrasada, mas inconsistente. O Comitê Internacional não se organizou como um polo opositor interessado na construção do movimento marxista, mas foi principalmente um conjunto de retalhos de todos aqueles que quiseram ficar fora da organização e ainda associar-se ao legado do trotskismo, nem sempre por bons motivos. Ademais, os grupos envolvidos no Comitê Internacional, apesar de rejeitarem a capitulação liquidacionista às lideranças não-revolucionárias, não fizeram um balanço das posições desenvolvidas nos anos 1940 para explicar a transformação do Leste Europeu, Iugoslávia e China, que deram base a tal capitulação – as quais eram baseadas numa compreensão incorreta do que era o stalinismo e concluíam ser possível uma transição gradual à ditadura do proletariado, através de um regime intermediário nomeado “governo operário e camponês”.
Em 1963, em parte como fruto dessa ausência de um balanço sério, em parte como fruto de desgastes dos grupos autoproclamados “ortodoxos” e “antipablistas” ao longo dos anos, ocorreu uma reunificação parcial do movimento, que originou o chamado “Secretariado Unificado”. Este manteve as posições-chave desenvolvidas por Pablo e Mandel no período anterior, e que haviam sido parcialmente abraçadas pelo SWP norte-americano e outros setores do Comitê Internacional, como o grupo de Nahuel Moreno na América Latina, frente ao impacto da Revolução Cubana.
O rompimento de 1953 significou o fim da Quarta Internacional como organização política coerente. Ainda assim, reivindicamos que o Comitê Internacional, apesar das suas muitas limitações e contradições, conseguiu produzir contribuições importantes à manutenção e desenvolvimento do programa revolucionário. Para nós a “continuidade revolucionária” do trotskismo é muito frágil, e não está relacionado a uma só tendência que foi capaz de salvaguardar e desenvolver o programa revolucionário ao longo dos anos de crise do movimento. Em vez disso, vemos a continuidade revolucionária como a soma de contribuições realizadas em diferentes momentos, por diferentes grupos, que contribuíram para manter, desenvolver e passar adiante as ideias e as práticas do trotskismo. Essas contribuições são para nós um ponto de partida fundamental para a reconstrução do movimento socialista revolucionário.
Ao longo da segunda metade do século XX, o “movimento trotskista” se envolveu em cada vez mais rompimentos, muitos causados por eventos políticos relevantes, mas também envoltos em burocratismo e desonestidade organizativa, além de confusão política. Criou-se uma cultura de marginalização com relação ao proletariado, que foi também reforçada pelo pequeno tamanho das organizações nacionais. Hoje não se pode falar mais em trotskismo como um movimento com uma visão política coerente. Há várias correntes que podem eventualmente ter acordos, mas que não partem dos mesmos princípios teóricos ou políticos e por vezes chegam a conclusões e ações diametralmente opostas. Como mostrado por vários eventos da segunda metade do século 20 e do início do século 21, algumas correntes “trotskistas” pouco deixam a desejar em comparação com a socialdemocracia reformista ou o colaboracionismo de classe stalinista em suas perspectivas, salvo o fato de que são numericamente insignificantes. Em outros casos, capitulam descaradamente a movimentos pró-imperialistas.
A Spartacist League dos EUA (SL), apesar de suas limitações e imperfeições, foi uma exceção positiva à falta completa de princípios do restante das correntes “trotskistas” nas décadas de 1960 e 1970, sendo mais um elo de continuidade revolucionária que reivindicamos. Diferente do RCP, do PCI e da Tendência Vern-Ryan, a SL conseguiu se desenvolver por alguns anos, inserindo-se na classe trabalhadora e participando de algumas experiências importantes de luta. Ela também conseguiu romper o isolamento internacional e lançar o embrião de uma nova organização internacional revolucionária, com presença em alguns países da Europa, América Latina e Oceania. Contudo, pela pressão acumulada do isolamento e das derrotas da classe trabalhadora, ela também se degenerou, tornando-se a partir dos anos 1980 uma seita burocrática com posições erráticas. Com o aprofundamento dessa degeneração ao longo dos anos 1990-2000, ela é hoje uma caricatura grotesca do que foi no passado. Ainda assim, encaramos como fundamentais suas contribuições dos anos 1960-70, motivo pelo qual também fazemos um esforço sistemático de traduzir e publicar materiais dessa época em nosso Arquivo Histórico.
De forma semelhante, reivindicamos o esforço feito por parte dos quadros que romperam com essa organização nos anos 1970-80 em reconstruir seu legado, o que culminou na Tendência Bolchevique Internacional (IBT). A IBT, contudo, nunca conseguiu atingir o mesmo nível de solidez e inserção na classe trabalhadora que a SL, inclusive, em parte, por ter se formado num período de derrotas muito mais profundas. Apesar de importantes análises, a IBT jamais foi capaz de construir qualquer tipo de trabalho político duradouro no proletariado ou realizar um reagrupamento significativo dos marxistas, o que culminou em uma perda gradual de membros e na sua transformação em uma seita burocrática sem nenhuma presença na luta de classes. Mais recentemente, o que restava da IBT ainda rachou em três minúsculos grupos concorrentes.
Um núcleo marxista proletário internacional (embrião de uma nova Internacional proletária revolucionária) só pode se forjar em torno de fusões com outros agrupamentos que estejam se voltando para o mesmo objetivo, e fundindo-se com frações do movimento dos trabalhadores em etapas de avanço das lutas, tendo clareza, a cada momento, de seus objetivos. As lições das gerações anteriores serão importantes, mas tal núcleo também terá muito a descobrir por conta própria num cenário histórico novo. Nós queremos intervir para mudar a história, para participar de um reagrupamento que nos aproxime de trazer a vanguarda da classe trabalhadora para as posições, ações e estratégia marxistas consistentes, tão necessárias à nossa época. Esse é o passo mais importante na preparação da revolução socialista. Não devemos nos furtar da ousadia para buscar aproximação e fusão com outras correntes em torno das ideias aqui presentes, assim como também não devemos escondê-las para conseguir uma “unidade” que seria falsa e instável.
O marxismo não é um dogma, mas um guia para a ação! O futuro apresenta oportunidades enormes para o desenvolvimento de uma corrente política que saiba seu lugar – junto aos trabalhadores – e como intervir a partir dele. O futuro da humanidade sem a perspectiva socialista é obscuro. A classe trabalhadora não pode alcançar o socialismo sem a revolução e a transição socialista, tarefas para as quais a sua vanguarda precisa ser confiante, consciente e abnegada. Forjar essa tradição, essa cultura de teoria e militância marxista revolucionária entre a classe trabalhadora é o nosso objetivo.