Arquivo Histórico: Dia Internacional da Mulher Trabalhadora

O Mito da Inferioridade da Mulher

[Escrito em 1954 por Evelyn Reed, importante revolucionária norte-americana, ativista em prol dos direitos das mulheres e dirigente do Partido dos Trabalhadores Socialistas (SWP – EUA). Tradução em português disponível em http://www.marxists.org/portugues/reed-evelyn/1954/mes/mito.htm.]


De um modo geral, uma das principais características do capitalismo e da sociedade de classes, é a desigualdade entre os sexos. Na vida econômica, cultural, política e intelectual, os homens são os amos, enquanto as mulheres cumprem um papel de subordinadas e inclusive de submissas. Só muito recentemente a mulher começou a sair da cozinha e dos quartos das crianças para protestar contra o monopólio do homem. Mas a desigualdade inicial permanece.

Esta desigualdade entre os sexos caracterizou a sociedade de classes desde o seu início já há cerca de dois mil anos, permanecendo através de seus três períodos mais importantes: escravagismo, feudalismo e capitalismo. Por esta razão, a sociedade de classes se caracteriza essencialmente pela dominação masculina, e esta dominação foi difundida e perpetuada pelo sistema da propriedade privada, pelo Estado, pela Igreja e pelas instituições familiares que servem aos interesses, dos homens. Com base nesta situação histórica divulgou-se o mito da pretendida superioridade social do sexo masculino. Geralmente, diz-se como um axioma imutável que os homens são socialmente superiores porque são naturalmente superiores. De acordo com este mito, a supremacia masculina não é um fenômeno social característico de um momento determinado da história, mas sim uma lei natural. Os homens, afirma-se, foram dotados pela natureza de atributos físicos e mentais superiores.

Para a mulher, propagou-se um mito equivalente, de defesa desta pretendida superioridade do homem. Afirma-se — como axioma imutável — que as mulheres são socialmente inferiores, porque são naturalmente inferiores aos homens. E qual a prova disso? Que as mulheres são mães. Afirma-se que a natureza condenou o sexo feminino a uma posição inferior.

Isto é uma falsificação da história natural e social. Não é a natureza, e sim a sociedade de classes que rebaixou a mulher e elevou o homem. Os homens obtiveram sua supremacia social através da luta contra a mulher e suas conquistas. Mas esta luta contra os sexos era somente uma parte da grande luta social: o desaparecimento da sociedade primitiva e a instituição da sociedade de classes. A inferioridade da mulher é produto de um sistema social que causou e proporcionou inumeráveis desigualdades, inferioridades, discriminações e degradações. Mas esta realidade histórica foi dissimulada atrás de um mito da inferioridade feminina.

Não foi a natureza, e sim a sociedade quem roubou da mulher seu direito de participar nas tarefas mais altas da sociedade, exaltando somente suas funções animais de maternidade. E este roubo foi perpetuado mediante urna dupla mistificação. Por um lado, a maternidade se apresenta como uma aflição biológica. Por outro, esse materialismo vulgar se apresenta como algo sagrado. Para consolar as mulheres como cidadãs de segunda classe, as mães são santificadas, adornadas com uma auréola e dotadas de “intuições” especiais, sensações e percepções que vão além da compreensão masculina. Santificação e degradação são simplesmente dois aspectos da exploração social da mulher na sociedade de classes.

Mas isto não existiu sempre: possui somente alguns milhares de anos. Os homens não foram sempre o sexo superior, uma vez que não foram sempre os dirigentes industriais, intelectuais e culturais.

Pelo contrário, na sociedade primitiva, em que as mulheres não eram nem santificadas nem degradadas, eram elas as dirigentes da sociedade e da cultura. A sociedade primitiva era um matriarcado, o que significa, como indica a própria palavra, um sistema no qual quem organizava e dirigia a vida social não eram os homens, mas as mulheres. Mas a distinção entre os dois sistemas sociais vai muito além desta mudança de papel de dirigente dos dois sexos. A direção social das mulheres na sociedade primitiva não estava fundada sobre a opressão do homem. Pelo contrário, a sociedade primitiva não conhecia desigualdades sociais, inferioridades ou discriminações de qualquer espécie. Estava fundada sobre uma base de completa igualdade. Portanto, de fato, através da direção das mulheres, os homens passaram de uma condição atrasada a um papel social e cultural mais elevado.

Nesta sociedade primitiva, longe de ser vista como um sofrimento ou um símbolo de inferioridade, a maternidade era considerada um grande dom da natureza. A maternidade investia as mulheres de poder e prestígio; e havia boas razões para que tal acontecesse.

A humanidade nasce do reino animal. A natureza dotou somente um dos sexos, o feminino, com órgãos e funções procriadoras. Este dom biológico foi o que de fato tornou possível a transição do reino animal ao humano. Como demonstrou Robert Briffault, em seu livro The Mothers (As Mães), graças aos cuidados de alimentar, cuidar e proteger seus filhos.

No entanto, como demonstraram Marx e Engels, todas as sociedades, tanto as passadas como a presente, fundamentam-se no trabalho. Não era somente a capacidade das mulheres de reproduzir que teve um papel decisivo, uma vez que todas as fêmeas animais dão à luz. Para a espécie humana foi decisivo o fato de que a maternidade impulsiona o trabalho, e sobre a fusão da maternidade com o trabalho, fundou-se, na verdade, o primeiro sistema social.

As mães foram as primeiras que tomaram o caminho do trabalho, e com este iniciou-se o caminho da humanidade.

Foram as mães quem se converteu na maior força produtiva; as operárias e camponesas, as dirigentes da vida científica intelectual e cultural. E conseguiram tudo isso precisamente porque eram mães: e, de início, a maternidade se fundia com o trabalho. Esta união permanece até hoje em dia na linguagem de controle sobre suas provisões para poder progredir e desenvolver-se. Controle significa não só alimento suficiente para hoje, mas um excedente para amanhã e a capacidade de conservá-lo para o futuro. Partindo deste ponto de vista, a história humana pode ser dividida em dois períodos principais: o período da coleta de alimentos, que dura uns cem mil anos, e o período da produção de alimentos, que se inicia com a invenção da agricultura e a domesticação de animais, há mais de oito mil anos.

Na primeira época, a divisão do trabalho era muito simples. Geralmente, é descrita como uma divisão entre os sexos, ou divisão de trabalho entre o macho e a fêmea (as crianças davam sua contribuição assim que possível: as meninas eram educadas para trabalhos femininos e os meninos para trabalhos masculinos). Esta divisão de trabalhos determinava uma diferenciação entre os sexos nos métodos e na maneira de recolher comida. Os homens eram caçadores, ocupação de tempo integral que os mantinha longe de casa ou do acampamento durante períodos mais ou menos longos. As mulheres recolhiam os produtos vegetais do campo e das proximidades das habitações.

Portanto, devemos compreender que, com exceção de áreas particulares do mundo e em um período histórico determinado, a fonte mais segura de provisões alimentares não eram os animais (proporciona dos pelos homens), mas sim os vegetais (proporcionados pelas mulheres).

Otis Tufton Mason escreve

Em todos os lugares do mundo em que a raça humana avançou, as mulheres descobriram que os produtos típicos daquela terra se transformariam em sua segurança. Na Polinésia, o cará ou a árvore da fruta na África a palmeira e a mandioca, o milho e a batata-doce. Na Europa, os cereais. Na América, o trigo e a batata etc…(1)
Alexander Golden Weiser enfatiza

Em todas as partes do mundo a manutenção da família é garantida com maior regularidade e certeza pelas tarefas da mulher, ligada à casa, do que pelas do marido ou filhos caçadores que estão longe. Realmente, nos povos primitivos, era um espetáculo habitual o homem voltar ao lar depois de uma caçada mais ou menos árdua, com as mãos vazias e morto de fome. Portanto, as provisões vegetais deviam bastar para suas necessidades e para as do restante da família.(2)

Então, podia-se contar com as provisões alimentícias que as mulheres recolhiam, e não os homens. Mas as mulheres também eram caçadoras, embora praticassem um outro tipo distinto de caça. Além de desenterrarem raízes, tubérculos etc., recolhiam lagartos, aves, lagartixas, moluscos e outros pequenos animais como lebres, roedores etc. Esta atividade era de fundamental importância, pois parte desta caçada era levada viva aos acampamentos, e foram a base das primeiras experiências com a domesticação.

Portanto, foi sob a direção das mulheres que se iniciaram as técnicas mais importantes de domesticação de animais, técnicas que logo alcançariam o nível mais alto com a criação dos animais. O fato da mulher domesticar animais tem relação com seu instinto materno. Sobre isso, diz Mason:

A primeira domesticação é simplesmente a adoção dos filhotes abandonados. O caçador traz para casa um cabrito ou um cordeiro, vivos. À mulher e as crianças tratam dele e o acariciam, e inclusive ela o amamenta no peito. Pode-se apontar exemplos intermináveis de como as mulheres sabiam capturar e domesticar os animais da selva. De todas as formas, as mulheres se ocuparam, em grande parte, dos animais que forneciam leite e lã.(3)

Vemos que, enquanto um aspecto da atividade feminina no campo – a coleta de alimentos – nos leva à domesticação de animais, um outro aspecto nos conduzirá ao descobrimento da agricultura. Um dos trabalhos da mulher era escavar a terra com uma estaca – um dos primeiros utensílios da humanidade – para buscar alimentos. Ainda hoje, em algumas regiões subdesenvolvidas do mundo, a estaca é considerada parte inseparável da mulher, como um filho seu. Por exemplo, quando os homens brancos descobriram os índios shoshones de Nevada e Wyoming, deram-lhes o nome de “os escavadores” (the diggers) porque inclusive hoje usam esta técnica para procurar alimentos.

Graças precisamente a esta atividade, as mulheres finalmente descobriram a agricultura. Sir James Frazer nos dá uma bonita descrição deste processo, em seus primeiros estágios.

Tomando como exemplo os nativos de Victoria Central, na Austrália, escreve:

O instrumento que usavam para tirar raízes do solo era um pau que media cerca de 7 a 8 pés de comprimento, endurecido a fogo, e com uma ponta no final, que lhes servia de arma, tanto ofensiva como defensiva. A partir daqui, podemos descobrir quais foram os passos dados para se chegar ao cultivo sistemático do solo.
Um pau comprido é enterrado no solo e sacudido várias vezes para remover a terra que, por sua vez, é recolhida com a mão esquerda e jogada para outro lado. Desta forma escavam rapidamente, mas a quantidade de trabalho é demasiadamente grande em relação aos resultados. Para recolher uma batata com uma circunferência de meia polegada aproximadamente, devem escavar um buraco de um pé de largura por dois de profundidade, como mínimo. As mulheres e as crianças dedicam uma parte considerável de seu tempo a este trabalho.
Nos terrenos férteis, onde a batata-doce cresce em abundância, a terra é peneirada. O efeito de escavar a terra ao redor das raízes e das batatas-doces propiciou o enriquecimento e a fertilização do solo, e desta maneira aumentou a coleta de raízes e ervas. A queda da semente na terra anteriormente revolta com o pau, contribuiu para se obter um resultado idêntico. Além disso, as sementes levadas pelo vento, pouco depois davam outros frutos.(4)
Com o passar do tempo, as mulheres aprenderam a ajudar a natureza, retirando as ervas daninhas dos campos e protegendo as plantas que estavam crescendo. Finalmente, aprenderam também a plantar e semear.

Não só a quantidade e a qualidade foram melhoradas, mas também foram descobertas novas espécies de plantas e vegetais. Chapple e Coon dizem:

Com o cultivo, o processo seletivo produziu muitas novas espécies de vegetais ou alterou profundamente as características das já existentes. Na Melancia chegam a fazer crescer batatas de seis pés de comprimento e cerca de um pé de espessura, e inclusive mais que isso. Enquanto que as míseras raízes que os australianos tiram da terra não são maiores do que um grão-de-bico.(5)

Vejamos como Mason resume os passos dados na agricultura:

A evolução da agricultura primitiva passa pela busca de vegetais, a fixação das habitações próximas dos mesmos, a escavação do terreno, o semear, o manual e finalmente com a utilização de animais domésticos.(6)

Segundo Gordon Childe, todas as plantas comestíveis, como também o linho e o algodão, foram descobertas pelas mulheres, em épocas primitivas.(7)

A descoberta da agricultura e da domesticação de animais permitiu ao gênero humano superar o estágio da coleta de alimentos e passar ao seu cultivo. Isso representou para a humanidade a primeira vitória sobre o problema das provisões de víveres. Esta conquista foi realizada pela mulher. A grande Revolução Agrícola, que proporcionou alimento aos homens e aos animais, foi a coroação do trabalho produtivo feminino que se iniciou no dia em que se utilizou a estaca para cavar a terra.

De qualquer forma, poder controlar a provisão de alimentos significou muito mais que confiar simplesmente na fertilidade da natureza. Para a mulher, significou principalmente entregar-se a seu trabalho, à experiência, às suas capacidades de inventar e inovar. As mulheres tiveram que descobrir todos os métodos particulares de cultivo adaptados a cada espécie de planta ou semente. Tiveram que aprender as técnicas da colheita, da limpeza do grão, da moenda etc., e inventar todos os utensílios adequados para cultivar o terreno, recolher e guardar a colheita, e, finalmente, transformá-la em comida.

Em outras palavras, a luta pelo controle dos alimentos trouxe não só o desenvolvimento agrícola, mas proporcionou as bases iniciais para a produção e para a ciência.

Escreve Masco:

Toda a vida industrial da mulher foi construída a partir da provisão de alimentos. Desde a primeira viagem a pé, para buscá-los, até o momento de cozinhá-los e comê-los, realizaram uma série de experiências que continuaram e que eram próprias das circunstâncias vividas.(8)

A mulher na indústria, na ciência e na medicina

A primeira divisão de trabalho entre os sexos é frequentemente descrita de uma forma muito simplificada e deformada. Diz-se que os homens eram caçadores ou guerreiros, enquanto as mulheres permaneciam no acampamento ou em casa para cuidar dos filhos e fazer a comida. Tal descrição dá a impressão de que a família desta época era idêntica à família moderna. Enquanto os homens se ocupavam de todas as necessidades sociais, as mulheres tratavam somente da cozinha e dos filhos. Este conceito é realmente uma grande distorção dos fatos.

Com exceção da divisão de trabalho na busca de alimentos, não existia entre os sexos nenhuma outra diferença, nem nas formas mais elevadas de produção, pela simples razão de que toda atividade industrial na sociedade estava nas mãos das mulheres. Por exemplo, o cozinhar não deve ser entendido como nós o entendemos na família moderna. Cozinhar era somente uma das técnicas que as mulheres adquiriram como o resultado do descobrimento e uso do fogo e da capacidade de utilizar o calor.

Todos os animais da natureza temem o fogo e se afastam dele. E, sem dúvidas, o descobrimento do fogo tem pelo menos meio milhão de anos, inclusive antes mesmo da humanidade ter alcançado um nível completamente humano. Sobre isso, escreve Gordon Childe:

Conseguindo utilizar o fogo, o homem controlava uma força física potente e uma importante transformação química. Pela primeira vez na história, um ser vivo conseguia controlar uma das forças da natureza. E o uso de uma força condiciona quem a controla… Ao acender e apagar o fogo, ao transportá-lo e usá-lo, o homem conseguiu distanciar-se completamente do comportamento dos outros animais. O homem afirmou sua humanidade e se converteu em Homem.(9)

Todas as. bases técnicas da cozinha, que se se guiaram ao descobrimento do fogo, foram inventadas pelas mulheres: cozinhar, assar, servir, etc. Estas técnicas implicavam experiências constantes sobre as propriedades do fogo e sobre a utilização do calor. Foi precisamente graças a essas contínuas nuas experiências que a mulher conseguiu desenvolver as técnicas de conservação dos alimentos. Com a aplicação do fogo e do calor, conseguiu dissecar e conservar, para as exigências futuras, tanto os animais como os vegetais.

Mas o fogo representou muito mais. O fogo é, por excelência, o instrumento da sociedade primitiva; pode ser comparado ao controle e uso da eletricidade e inclusive da energia atômica na idade moderna. E foi a mulher quem desenvolveu as primeiras formas de indústria e, ao mesmo tempo, quem descobriu o uso do fogo como instrumento de seu trabalho.

A primeira atividade industrial da mulher estava centrada na busca de todo tipo de alimentos. Preparar e conservar a comida pressupõem a invenção de todo o equipamento subsidiário: vasilhas, utensílios, fornos, armazéns etc. As mulheres construíram as primeiras despensas, celeiros, depósitos para alimentos. Alguns desses celeiros consistiam em buracos cavados na terra, revestidos de palha. Nos terrenos pantanosos ou úmidos fincaram paus, e sobre estes construíram depósitos. A necessidade de proteger os alimentos dos répteis e outros pequenos animais foi resolvida com a domesticando de outro animal, o gato. Mason escreve:

Pela invenção dos celeiros e proteção dos alimentos de pequenos animais, o mundo deve agradecer à mulher pela domesticação do gato… A mulher amansou o gato selvagem para a proteção de seu celeiro.(10)

Foi sempre a mulher quem conseguiu distinguir as substâncias nocivas dos alimentos. Com o uso do fogo, transformava os alimentos, que em seu estado natural não eram comestíveis, em um alimento novo.

Novamente citando Mason:

As mulheres desses países compreenderam que cozinhando ou simplesmente fervendo, podiam transformar em comestíveis plantas que em seu estado natural são venenosas ou demasiado ásperas e picantes.

Por exemplo, a mandioca é venenosa em seu estado natural. Mas a mulher conseguiu transformá-la em um alimento-base através de um complicado processo de compressão, utilizando uma prensa primitiva, para eliminar as substâncias venenosas e depois cozinhando- a para eliminar qualquer outro resíduo desagradável.

Muitas outras plantas e substâncias não comestíveis foram usadas pelas mulheres em suas atividades industriais, ou transformadas em medicamentos. O Dr. Dan Mckenzie catalogou uma centena de medicamentos homeopáticos descobertos pelas mulheres, precisamente devido ao seu profundo conhecimento da vida vegetal. Alguns desses medicamentos são usados ainda hoje, sem qualquer modificação. Outros foram modificados ligeiramente. Entre eles, existem muitas substâncias usadas por suas propriedades narcóticas.

A mulher, por exemplo, descobriu a propriedade da resina do pinho, da trementina e do azeite de chaulmoogra, que atualmente é usado como remédio contra a lepra. Descobriu elementos medicinais na acácia, no amendoim, na seringueira, na cevada e assim sucessivamente. Estes descobrimentos deram-se na América do Sul, na China, na Europa, no Egito etc., de acordo com a região natural dessas plantas.

Inclusive, as mulheres conseguiram transformar substâncias animais em medicamentos. Transformaram, por exemplo, o veneno da serpente em um soro contra as mordidas deste réptil (igual ao preparado que atualmente conhecemos como antídoto).

Na indústria ligada à conservação dos alimentos começava-se a sentir necessidade de recipientes e vasilhas de todos os tipos para conservar, transportar e cozinhar os alimentos. E, nas diferentes partes do mundo, nasceram os primeiros recipientes de madeira, de pele, de cortiça. Só mais tarde a mulher descobriu a técnica da cerâmica.

O fogo também era usado na fabricação de utensílios de madeira. Mason descreve esta técnica, e pode-se então compreender facilmente como se passa rapidamente à construção das primeiras canoas e embarcações.

Queimavam com cuidado a parte côncava, controlando a chama. Logo estas maravilhosas e versáteis mulheres deixavam de lado o fogo e, improvisando uma escova de madeira, cortavam os resíduos. Com uma lâmina de pedra, raspavam a resina até obter uma superfície de madeira completamente lisa. Parte côncava era raspada e queimada até se obter a forma desejada. Completa a bacia, estava pronta para ser usada como panela.(11)
Com esta transformação, uma substância como a madeira, que é facilmente consumida pelo fogo, podia ser usada como recipiente para cozinhar e, portanto, ser colocada no fogo.

Mas estas primeiras atividades femininas, que nasceram exatamente da luta pela conservação dos alimentos, superaram rapidamente este limitado horizonte. Logo que uma necessidade era satisfeita, nasciam outras, e estas, por sua vez, eram satisfeitas em uma espiral sempre crescente de novas necessidades e novos produtos. E foi neste contínuo reproduzir-se de necessidades e soluções, que as mulheres construíram as bases para uma futura cultura mais elevada.

A ciência se desenvolveu ao mesmo tempo que a indústria. Gordon Childe destaca que para transformar a farinha em pão, necessita-se uma longa série de descobrimentos colaterais que terminam com o conhecimento da bioquímica e o uso de um microorganismo, o fermento (levedura). O mesmo conhecimento da bioquímica que tornou possível a produção do pão, tornou também possível os primeiros licores fermentados e uma série de outros descobrimentos.

Da corda ao tecido

Fazer uma corda pode parecer uma atividade muito humilde, mas entrelaçar estas fibras foi somente o princípio de uma grande cadeia de atividades que culminaram com a indústria têxtil. Construir essas cordas requer não só habilidade manual, como também um conhecimento de que material utilizar e como manuseá-lo, tratá-lo.

Chapple e Coon escrevem:

Todos os povos usam a corda, seja para ligar os cabos dos utensílios ou para fazer redes para caçar coelhos, bolsas ou braceletes. Nos lugares onde se usa muito mais as peles de animais, como entre os esquimós, estas cordas de modo geral consistem em tiras de couro ou tendões de animais. Os povos que vivem nos campos, ao contrário, usam fibras vegetais como o hibisco ou raízes longas que não necessitam nenhum tratamento especial para serem utilizadas. Outras fibras, muito curtas, são enroscadas entre si até formarem uma longa corda.(12)

Da técnica do entrelaçamento nasce a indústria de cestos. Segundo a localidade, os cestos são feitos de vime, cortiças, ervas, raízes ou peles. Alguns eram entrelaçados e cozidos ao mesmo tempo. A variedade de canas e outros artigos entrelaçados é enorme. Robert H. Lowie enumera alguns: cestas para transporte, botijas para água, copos, escudos, chapéus, abanos, esteiras etc. Alguns dos materiais estavam tão estreitamente entrelaçados que eram impermeáveis, e eram usados para se cozinhar ou conservar os alimentos.(13)

Alguns são tão bonitos, diz Briffault, que não podem ser reproduzidos nem com a tecnologia moderna:

“Os chamados chapéus do Panamá, cujos exemplares mais belos podem ser comprimidos até que se consiga passá-los através de um anel, talvez sejam o exemplo mais típico”.(14)
Nesse tipo de indústria, as mulheres utilizaram todos os recursos que a natureza colocava à sua disposição. Na terra onde nascia o coco, teciam cordas lindas, utilizando os filamentos das cascas.

Nas Filipinas, uma espécie de banana não comestível produzia o famoso abacá, ou cânhamo-de-Manilha, usado também para a fabricação de cordas. Na Polinésia, cultivava-se uma espécie de amoreira, cuja casca era batida fortemente até se transformar em uma espécie de tecido com o qual as mulheres conseguiam fabricar camisas para si e para os homens, além de correias, bolsas etc.

A indústria têxtil nasce com a grande Revolução Agrícola. Nesta atividade complexa, vemos a fusão de técnicas aprendidas na agricultura e na indústria.

Gordon Childe escreve:

“A indústria têxtil requer não só o conhecimento de substâncias particulares como o algodão, o linho e a lã, mas também a criação de certos animais e o cultivo de plantas especiais”.(15)

A indústria têxtil requer um alto grau de capacidade técnica e mecânica e uma longa série de invenções paralelas. Para desenvolver esta indústria, continua Childe,

necessita-se uma série complexa de descobrimentos e invenções e um conhecimento científico igualmente complexo Entre as invenções prioritárias, a mais importante é o tear. Consideramos que o tear é um instrumento mais ou menos complicado, demasiada mente complicado para podermos descrevê-lo aqui. E sua utilização não é menos complexa. O tear, a sua invenção, foi um dos grandes triunfos do engenho humano. Seus inventores não possuem nomes, mas realizaram uma contribuição essencial à bagagem cultural do homem.(16)

Sem levar em conta a sua importância enquanto contribuição para aumentar as provisões de alimentos, a caça foi um fator de grande valor para o desenvolvimento humano. Na caça organizada, o homem devia colaborar com outros homens, atitude desconhecida no mundo animal, no qual é regra a concorrência individual.

Sobre esta questão, Chapple e Coon escrevem:

A caça é um ótimo exercício tanto para o corpo como para a mente. Estimula a cooperação, o autocontrole, a agressividade, o engenho e a inventividade. E, por último, exige um alto grau de destreza manual. O gênero humano não poderia ter melhor escola em seu período de formação.(17)

Trabalhadoras do couro

Uma vez que a caça era uma atividade tipicamente masculina, os historiadores estão sempre dispostos a glorificá-la sem limites. Sinceramente, não há dúvidas que os homens realmente contribuíram com a caça nas provisões, mas eram as mulheres que preparavam e conservavam a comida e utilizavam os produtos derivados necessários para suas atividades. Foram as mulheres as que desenvolveram as técnicas do curtume e da conservação das peles e quem fundou a primeira grande indústria de peles.

Trabalhar a pele, o couro, é um processo longo, difícil e complicado. Lowie descreve a primeira forma deste tipo de atividade, que ainda é utilizado pelas mulheres ona, da Terra do Fogo:

Quando os caçadores trazem para o acampamento a pele de um guanaco, a mulher — diz ele — se ajoelha sobre a pele, limpa-a, raspa laboriosamente com sua folha de quartzo os tecidos rotos e a camada transparente que existe abaixo deles. Depois, com os punhos, amassa a pele palmo por palmo, de cima para baixo, em toda a extensão e às vezes mastigando-a com os dentes para que se torne mais macia. No caso de ser necessário o corte dos pelos, usa-se o mesmo processo da raspagem.

O raspador de que fala Lowie e, juntamente com a estaca ou bastão, um dos mais antigos utensílios da humanidade. Ao mesmo tempo que nasce o pau de madeira usado para coletar verduras, nasce esse troço de pedra, raspador ou machado de mão, usado nas mais diversas atividades.

Briffault escreve a este respeito:

Estas espécies de raspadores, que constituem a maior parte dos utensílios primitivos, foram usadas e inventadas pela mulher. Nasceram muitas controvérsias sobre os possíveis usos desses objetos, mas o fato é que ainda hoje as mulheres esquimós empregam utensílios idênticos aos que suas irmãs europeias usaram em abundância durante a Era Glacial.
Os raspadores ou cutelos usados pelas mulheres esquimós, são de forma geral muito elaborados e montados artisticamente em cabos de osso. Na África do Sul, a terra está cheia desses objetos, idênticos aos que se encontraram na Europa, originários da Era Paleolítica.
Segundo testemunhos de pessoas que conheciam bem os costumes dos bosquímanos, estes objetos eram fabricados pelas mulheres.(18)
Mason acrescenta:

O raspador é o utensílio primeiro, que se usa em qualquer trabalho. Sua utilização entre as mulheres aborígenes de Montava é transmitida de mãe para filha, de geração em geração, e assim sucessivamente, desde o nascimento do gênero humano.(19)

Curtume

Assim como a maior parte das atividades, o trabalho com as peles requeria muito mais que um simples trabalho manual. Para desenvolver este trabalho a mulher também teve que aprender os segredos da química, e de experiência em experiência, aprendem inclusive a usar uma substância para transformá-la em outra.

O curtume é essencialmente uma alteração química da pele crua. Entre os esquimós, escreve Lowie, esta transformação foi descoberta deixando as peles serem maceradas dentro de um recipiente cheio de urina. Na América do Norte, ao contrário, as mulheres usavam o cérebro dos animais, preparados especialmente, e com ele empapavam as peles. Sem dúvida, o verdadeiro curtume exige o uso da cortiça da azinheira ou outras substâncias vegetais que contenham ácido tânico.

Uma parte do processo para trabalhar a pele era defumá-la em fogo lento. Os escudos dos índios norte-americanos eram tão resistentes que eram à prova não só de flechas, mas de tiros.

Os produtos de pele são de uma variedade enorme, principalmente no que se refere aos recipientes. Lowie cita alguns dos usos da pele. Os asiáticos utilizavam-na para fazer uma espécie de garrafa; os africanos orientais como escudos ou estofos; entre os índios norte-americanos era usada, às vezes, como vestidos, camisas, mocassins ou calças. Só mais tarde foi utilizada para fazer choças ou tendas. A variedade de produtos feitos com peles pelas mulheres índias nunca deixou de maravilhar os visitantes dos museus onde estes objetos encontram-se expostos.

Briffault sublinha que as mulheres deviam conhecer primeiro a natureza das peles que deviam preparar, e decidir que produtos seriam os mais adequados:

O produto que se deve empregar varia de acordo com a utilidade que a pele vai ter. As peles macias eram alisadas até se conseguir uma espessura uniforme, e também se utilizava a camada que fica junto ao pelo. As mais duras eram usadas na construção de cabanas, escudos, canoas ou botas. As mais finas e laváveis, para vestidos. Tudo isto requeria trabalhos técnicos especiais que haviam sido elaborados precisamente pelas mulheres.

Mason escreve:

No continente americano, só as mulheres sabiam como tratar qualquer tipo de pele de animal, como gatos, ursos, ovelhas, antílopes, crocodilos, tartarugas, e inclusive répteis e peixes.(20)

Ceramistas e artistas

Ao contrário das demais indústrias femininas, a cerâmica leva à criação de substâncias completamente novas, que não existem em estado natural. Sobre isso, escreve Gordon Childe

Talvez a cerâmica seja a primeira utilização consciente de um processo químico por parte da humanidade… O fator essencial da arte cerâmica e que a mulher pode modelar algo de argila, na forma que desejar, e logo, utilizando o fogo, dar-lhe a forma definitiva (calor acima dos 600 graus centígrados). Aos homens primitivos, tal mudança na qualidade de um material deve ter parecido uma espécie de transmutação mágica. A conversão do barro ou da terra em pedra…
O fato essencial deste descobrimento consiste em conseguir controlar e utilizar o processo químico que citamos anteriormente. Mas, da mesma forma que os demais descobrimentos, a sua aplicação prática implica outros novos conhecimentos. Para que a argila esteja em condições de ser trabalhada, tem que ser molhada, mas se o objeto é colocado úmido no forno, ele se quebra. A água deve secar aos poucos no sol, ou próxima do fogo, antes da argila ser cozida. Da mesma forma, a argila tem que ser cortada, preparada e lavada, para eliminar todos os resíduos de outras substâncias.
Durante o cozimento, a argila muda não só sua consistência física, mas também sua coloração. O homem teve que aprendera a controlar estas mudanças e utilizá-las as para melhorar a beleza dos vasos…

A arte da cerâmica, inclusive em seu estado mais rústico e generalizado, já era complexa. Implicava um certo número de processos bem distintos e a aplicação de numerosos descobrimentos. Construir um vaso foi um exemplo magnifico da criatividade humana.(21)

A mulher primitiva, assim como o primeiro cera mista, colheu o pó da terra e modelou uma gama infinita de novos produtos. As artes decorativas, também pelas mãos das mulheres, se desenvolveram paralelamente a esta indústria. A arte nasce do trabalho.

Lowie escreve

Um fabricante de cestas pode se converter em um decorador, sem ter a intenção de fazê-lo; mas no momento em que um determinado modelo deslumbra os nossos olhos, então buscamos repeti-lo. A corda retorcida de um cesto pode parecer uma espiral, uns arabescos etc. O fato essencial é que, uma vez considerada decorativa, esta forma geométrica se aplica também a outras formas de arte. Um ceramista pode pintar figuras em seu vaso, um escultor pode imitá-las em sua madeira.(22)

Os objetos de pele feitos pelas mulheres são muito apreciados, não só por seu aspecto prático, mas também pela beleza de sua decoração. E quando a mulher começou a fazer vestidos, começou também a tecer belíssimos desenhos nas telas, e inventou a cor e a técnica da tintura.

Construtoras e arquitetas

Talvez a atividade menos conhecida das mulheres primitivas seja seus trabalhos de construção, arquitetura e engenharia. Briffault escreve:

Não estamos acostumados a pensar que a arte de construir casas ou a arquitetura foram ocupações tão femininas quanto a fabricação de botas ou objetos de terracota. E, sem dúvida, as cabanas dos australianos, das ilhas habitantes as ilhas de Andaman, dos habitantes da Patagônia, os toscos refúgios dos Seri, as tendas de pele dos índios norte-americanos, a “iurta” dos nômades da Ásia Central, a tenda de pele de camelo dos beduínos, todos são trabalhos exclusivamente femininos.
Às vezes, estas moradias, mais ou menos estáveis, eram muito elaboradas. A “iurta”, por exemplo, e, na maioria das vezes, uma casa muito grande, construída sobre uma armação de madeira em forma de círculo, que tem em cima uma espécie de encerado também de madeira, todo ele coberto por uma espessa camada de feltro, que dá à casa uma estrutura de cúpula. O interior está dividido em numerosos compartimentos. A exceção da madeira, todo o restante foi construído e colocado pelas mulheres turcomanas.

Os pueblos do Novo México e do Arizona recordam em sua forma as pitorescas cidades orientais. São grupos de casas, construídas umas sobre as outras. O teto plano de uma serve de base para a outra. Os andares mais elevados são alcançados através de escadas de polé ou escadarias exteriores, e os muros são bastiões com merlões ornamentais. Pátios, praças, ruas, curiosos edifícios públicos que servem tanto como locais de reuniões ou de templos… como testemunham as numerosas ruínas.(23)

Os missionários espanhóis que se estabeleceram entre os povos indígenas ficaram atônitos frente à beleza das igrejas e conventos que aquelas mulheres haviam construído para eles. E escreveram aos seus compatriotas europeus:

Nenhum homem contribuiu nem com o mínimo para erguer uma casa. Estes edifícios eram construídos somente pelas mulheres, as meninas e as jovens das missões Entre estes povos era costume que as mulheres fossem as construtoras de casas.(24)

Sob a influência dos missionários, os homens aprenderam também este trabalho, mas seus primeiros esforços foram recebidos com muita zombaria pelas pessoas. Como escreveu um missionário espanhol:

Os pobres foram rodeados por uma alegre multidão de mulheres e crianças que riam e zombavam deles, e que pareciam encontrar-se frente à coisa mais engraçada do mundo: um homem ocupado na construção de uma casa.(25)
Hoje, ocorre justamente o contrário: ridiculariza-se a mulher arquiteta ou engenheira.

Sobre os ombros da mulher

A mulher não era só uma experiente trabalhadora da sociedade antiga, mas também se ocupava de trabalhos muito duros e pesados, como o transporte de mercadorias, utensílios etc.

Antes que tivessem este trabalho aliviado pelos animais domésticos, ao menos em parte, eram elas que transportavam sobre os ombros todo o necessário. Quando toda a tribo mudava de um lugar para outro, transportavam não só as matérias-primas para suas indústrias, mas também depósitos inteiros de mercadorias.

Quando a tribo emigrava, e isto ocorria com muita frequência antes que se desenvolvessem o sedentarismo, eram as mulheres quem desmontava e armava as tendas e cabanas. As mulheres transportavam os objetos mais pesados e também seus filhos. Na vida diária, era também a mulher quem transportava grandes feixes de lenha para o fogo, a água, os alimentos e todos os produtos essenciais. Segundo Chapple e Coon, inclusive hoje, as mulheres da tribo Ona, da Terra do Fogo, transportam pesos de mais de 100 libras quando emigram. Entre os Akikuyus da África Oriental, escrevem os Routledge, os homens não estavam em condições de suportar pesos de mais de 40 ou 60 libras, enquanto que as mulheres suportavam mais: “Quando um homem diz: esta carga está muito pesada, é porque ela está pronta para ser levantada por uma mulher e não por um homem. Isto nada mais expressa do que uma realidade”.(26)

Sobre este aspecto do trabalho feminino, Mason escreve:

Dos ombros da mulher, do carro a majestosa nave, está aqui a história do maior dos artifícios que impulsionou nossa raça a explorar o mundo inteiro. Não me estranha que o carpinteiro talhe em madeira, na proa de seu navio, uma cabeça de mulher, e que a locomotiva receba nomes femininos.(27)

Por acaso estas atividades indicam que a mulher estava oprimida, explorada ou degradada? De modo algum. Totalmente o contrário. Sobre isto, escreve Briffault:

A opinião fantasiosa de que as mulheres estiveram oprimidas na sociedade primitiva em parte deriva da complacência do homem civilizado e, em parte, do fato de que as mulheres trabalhavam duramente. Uma vez que as mulheres realizavam trabalhos cansativos, seu estado era considerado como que de escravidão e opressão. Não poderia existir maior equívoco…

A mulher primitiva é independente, e não apesar de seu trabalho. No geral, é justamente nos povos entre os quais elas trabalham mais duramente, que são mais independentes e têm uma maior influencia. De modo geral, lá onde as mulheres ficam na folga e os trabalhos são realizados por escravos, elas são pouco mais do que escravas sexuais…
Na sociedade primitiva, todos os trabalhos, inclusive os mais insignificantes, eram voluntários, e nunca a mulher fez algum trabalho tendo que obedecer ordens arbitrárias. Falando das mulheres zulus, um missionário escreve:

Qualquer um que houvesse observado o comportamento das mulheres, concentradas em seu trabalho, sua alegria, sua conversa, suas risadas e suas canções, não poderia deixar de comparado com os de nossas mulheres que hoje trabalham.(28)

O que atormenta os seres humanos, não é o trabalho, mas sim a exploração e o trabalho forçado. Quando as mulheres começaram a trabalhar, ninguém as ensinou como fazer isso. Tiveram que aprender da forma mais difícil, com sua coragem e perseverança. Obtiveram algumas noções, provavelmente, da própria natureza. Mason escreve:

As mulheres aprenderam com as aranhas a tecer redes. Com as abelhas e formigas a conservar os alimentos e a trabalhar a argila. Isto não significa que esses animais criaram escolas para que aquelas obtusas mulheres aprendessem a trabalhar, mas sim que as mentes despertas destas estavam sempre dispostas a se apoderar de qualquer experiência que viesse daquela fonte. Foi na época da industrialização que a mulher mostrou todo seu talento. Desde o princípio, estabeleceu os caminhos que era necessário percorrer, e se ativeram a eles sem reservas.(29)


As primeiras comunidades

Dado a humildade com que a mulher iniciou as suas primeiras atividades, muitos historiadores apresentam a indústria feminina como basicamente familiar ou artesanal. Sem dúvida, é importante levarmos em conta que antes de se desenvolver a máquina, quina, não existia nenhuma forma de arte, a não ser o artesanato. Antes que surgissem as fábricas especializadas, não existia senão a casa.

Obviamente sem estas formas artesanais primitivas não teriam nascido as grandes corporações da Idade Média. E sequer o mundo moderno teria se desenvolvido com suas fazendas agrícolas mecaniza das e suas inúmeras indústrias.

Quando as mulheres começaram a trabalhar, fizeram com que o gênero humano se elevasse acima do reino animal. Foram elas as primeiras trabalhadoras e as fundadoras da indústria, a primeira força que elevou a humanidade para além de seu estado de símio. Junto com o trabalho, nasce a linguagem.

Como escreve Engels:

O desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividades sociais, fazia necessariamente com que os membros da sociedade se reunissem cada vez mais… A única teoria correta sobre a origem da linguagem é a de que ela nasce e se desenvolve junto com o processo do trabalho. Primeiro nasceu o trabalho, e logo, como consequência, se desenvolveu a linguagem articulada.(30)

Sem dúvida, também o homem começou a articular alguma palavra durante a caça organizada, mas o desenvolvimento decisivo da linguagem nasce da atividade produtiva feminina. Diz Manson:

Exatamente porque, a cada dia se ocupava de todas as atividades industriais, a mulher inventou e fixou uma linguagem em relação às mesmas. O Dr. Brinton escreve em uma carta particular que em muitas linguagens primitivas não só se encontram muitas expressões que são próprias das mulheres, como em muitas partes do mundo se encontra com frequência linguagens usadas somente pelas mulheres e completamente distintas da dos homens.

Os homens primitivos, quando iam caçar ou pescar, estavam geralmente sozinhos, e esta atividade lhes impunha silêncio. As mulheres, pelo contrário, estavam juntas e falavam o dia todo, e tal coisa é tão certa que, prescindindo dos ambientes culturais, as mulheres têm ainda hoje em dia um vocabulário mais rico e são as melhores oradoras e escritoras.(31)

O trabalho e a linguagem, mais do que qualquer outra coisa, representam o nascimento da coletividade. Os animais são obrigados por leis da natureza a uma contínua concorrência individual. As mulheres, através do trabalho, substituíram as relações estabelecidas pela natureza por novas relações humanas, graças ao trabalho coletivo.

A família – a comunidade

A família era toda a comunidade. Não existiam individualismos e sim coletivismo social. Sobre este ponto, escreve Gordon Childe:

No Neolítico, a arte aparece como uma ocupação familiar. Nem mesmo as tradições artesanais são individuais, são coletivas. A experiência e sabedoria colocam-se constantemente em evidência e, com exemplos e explicações, são transmitidas de pai para filho. A filha ajuda a mãe a trabalhar os vasos. Observa-a atentamente, imita e recebe as explicações, advertências e os conselhos necessários. No Neolítico, as ciências aplicadas foram transmitidas pelo que chamamos atualmente de sistema de aprendizagem.

Num povoado moderno africano, a mulher não se isola para modelar ou coser seus vasos.

Todas as mulheres trabalham juntas, conversam, confrontam suas experiências e se ajudam mutuamente. Todas as atividades são públicas, suas regras são resultados de experiências comuns… E a economia neolítica em seu conjunto não poderia existir sem esforços comuns.(32)

Assim, o resultado mais importante das atividades femininas foi a fundação e a consolidação do primeiro grande coletivo humano. A vida coletiva e o trabalho, substituindo o individualismo animal, abriram um abismo intransponível entre a sociedade humana e os animais, Tornaram possível a primeira grande conquista da humanidade, a domesticação dos animais.

Através destas experiências as mulheres se converteram nas primeiras trabalhadoras e lavradoras, nas primeiras cientistas, doutoras, arquitetas, engenheiras; as primeiras professoras, educadoras e artistas, e transmitiram a herança social e cultural. As famílias que surgiram não eram simplesmente cozinhas coletivas ou salas de cozinhar, mas eram também as primeiras fábricas, os primeiros laboratórios científicos, centros médicos, escolas e centros culturais e sociais. O poder e o prestígio feminino que surgem das funções procriadoras, alcançam seu ponto máximo com a primazia de suas atividades socialmente úteis.

A emancipação do homem

Durante todo o tempo em que a caça intensiva foi uma ocupação indispensável, o homem esteve relegado a uma experiência de segunda ordem. A caça isolava os homens durante períodos muito grandes da comunidade, e da participação nas formas mais altas de trabalho.

O descobrimento da agricultura e da domesticação de animais pela mulher representou também a emancipação dos homens. A caça já não era socialmente indispensável, e esta atividade se viu transformada, rapidamente, em um simples esporte. Os homens estavam então livres para participar da vida cultural e industrial da comunidade. Com o aumento das provisões de alimentos, cresceu também a população. Os acampamentos nômades se transformaram em povoados estáveis e, mais tarde, em vilas e cidades.

No primeiro período de sua emancipação, os homens eram menos capazes do que as mulheres nas atividades produtivas. Portanto, limitavam-se a cortar as ervas daninhas nos campos e a preparar o terreno para o cultivo que as mulheres faziam. Cortavam árvores e armazenavam madeira para as construções. Só mais tarde começaram a trabalhar na construção propriamente dita, assim como cuidar de animais e de seu filho.

Mas, ao contrário das mulheres, não tiveram que começar do princípio. Em pouco tempo, conseguiram aprender não só aquelas atividades que exigiam uma certa destreza, mas realizaram grandes melhoras no que diz respeito aos utensílios de trabalho, móveis e tecnologia em geral. A agricultura se incrementou notavelmente com a invenção do arado e com o uso de animais já domesticados.

Durante um breve período de tempo, em termos históricos, a divisão do trabalho entre os sexos foi uma realidade. Homens e mulheres, juntos, aumentaram o bem-estar social e consolidaram as primeiras povoações sedentárias. Mas a Revolução Agrícola, promovida pela mulher, que divide a época da colheita da época da produção, da mesma forma separa a barbárie da civilização e, mais adiante ainda, assinala o desenvolvimento de um novo sistema social e uma inversão da liderança econômica e social dos sexos.

Estas novas condições de vida, que começaram com a abundância de alimentos necessários para urna população crescente, liberaram uma nova força produtiva e, com ela, novas relações produtivas. A velha divisão do trabalho entre os sexos foi substituída por uma nova divisão social do trabalho. O trabalho agrícola separou-se do trabalho industrial urbano, o trabalho manual do trabalho intelectual. E as atividades femininas passaram gradualmente para os homens.

Por exemplo, com o torno, os especialistas do ofício se apoderaram da arte artesanal feminina de modelar os vasos. Como diz Childe:

A etnografia nos demonstra que os ceramistas que usam o torno são geralmente homens, e não mulheres. E o antigo método artesanal de modelar os vasos, nada mais é para eles que um dever familiar, como o de cozinhar ou tecer.(33)

O homem se apoderou dos fornos inventados pelas mulheres e os transformou em fráguas e forjas para fundir os metais brutos e obter cobre, ouro e ferro. A Idade do Metal foi como a aurora da idade do homem. E o sobrenome mais comum atualmente, Mr. Smith, tem origem justamente naquela época.(34)

As mesmas causas que levaram à emancipação do homem conduziram à queda do matriarcado e à escravização da mulher. No momento em que o homem se apropriou dos meios de produção, a mulher foi relegada exclusivamente a suas funções biológicas de mãe, e lhe foi negada toda forma de participação na vida social produtiva. Os homens tomaram as rédeas da sociedade e fundaram um novo a serviço de suas necessidades. Da destruição do matriarcado, nasceu a sociedade de classes.

Neste resumo das atividades produtivas da mulher no sistema primitivo, vimos como os dois sexos contribuíram na edificação da sociedade e para o progresso da humanidade até o estágio atual. Mas esta contribuição não se deu ao mesmo tempo, nem da mesma forma. E isto nada mais é do que uma expressão do desenvolvimento desigual da sociedade em geral.

Durante o primeiro grande período de desenvolvimento social, foi a mulher quem conseguiu fazer com que a humanidade progredisse até se tornar superior ao reino animal. E uma vez que os primeiros passos são sempre os mais difíceis, não podemos deixar de considerar decisiva a contribuição social e produtiva das mulheres. Foram os descobrimentos no campo produtivo e cultural os que tornaram possível a civilização. Foram necessárias centenas de milhares de anos para que as primeiras mulheres pudessem assentar as bases sociais. E justamente por terem colocado estas bases tão solidamente, foram necessários menos de quatro mil anos para que a civilização alcançasse seu estágio atual.

Por isso não é científico querer discutir a superioridade do homem ou da mulher sem levar em conta a experiência histórica. No transcurso da história, assistimos a uma grande inversão na superioridade social dos sexos. O papel dirigente pertenceu primeiro à mulher, biologicamente dotada pela natureza; e logo aos homens, socialmente dotados pelas mulheres. Entender estes fatos históricos significa evitar cair na armadilha de valorizações arbitrárias baseadas somente em instinto e pré- julgamentos. E compreender isto significa destruir o mito que faz das mulheres seres naturalmente inferiores.


Primavera de 1954.

Notas de rodapé:

(1) Women’s Share In Primitive Culture (A participação das mulheres na cultura primitiva).
(2) Anthropology.  
(3) Op. cit.  
(4) The Golden Bough.  
(5) Principles of Anthropology.  
(6) Op. cit.  
(7) What Happened in History.  
(8) Op. cit.  
(9) Man Makes Himself.  
(10) Op. cit.  
(11) Op. cit.  
(12) Op. cit.  
(13) An Introduction to Social Anthropology.  
(14) The Mothers.  
(15) Man Makes Himself.  
(16) Idem.  
(17) Op. cit.  
(18) Op. cit.  
(19) Op. cit  
(20) Op. cit.  
(21) Man Makes Himself.  
(22) Op. cit.  
(23) Op. cit.  
(24) Briffault, op. cit.  
(25) Ibidem.  
(26) Scoresby e Katherin Routledge, With a Pre-historic People.  
(27) Op.cit.  
(28) Op.cit.  
(29) Op.cit.  
(30) O papel do trabalho na transformação do macaco em homem.  
(31) Op. cit.  
(32) Man Makes Himself.
(33) What Happened in History. 
(34) Smithies é o termo em inglês para ferraria. N. da T.