Tabu da LBI sobre o Caráter Ditatorial de Kadafi
Um Tirano sem Aspas
Por Rodolfo Kaleb
Novembro de 2011
Recentemente a Liga Bolchevique Internacionalista (LBI) apresentou em uma enorme coletânea de artigos, publicados sob o título de “Teses trotskistas acerca da guerra imperialista contra a Líbia”, uma perspectiva formalmente correta sobre o conflito entre as tropas leais a Muammar Kadafi e os rebeldes líbios liderados pelo Conselho Nacional de Transição, com apoio armado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (principal aliança bélica das burguesias imperialistas). Nesses artigos, o grupo também combateu corretamente aqueles que tomam o lado do movimento liderado pelo CNT e apoiado pela OTAN, mostrando que tais correntes deixam de lado a tarefa de defender a nação oprimida da Líbia contra os imperialismos, chegando até mesmo ao ponto de chamar a vitória dos rebeldes de “revolução” (para um debate com essas posições, leia nosso artigo De que Lado da Trincheira?). Em uma seção intitulada “Pela vitória militar de Kadafi sobre a corja imperialista da ONU e da OTAN”, a LBI escreveu:
“Em resposta a esses renegados revisionistas [as correntes que apóiam os rebeldes], os marxistas revolucionários sabem nadar contra a maré pró-imperialista que varre a esquerda e convocam publicamente a formação de uma frente única militar com Kadaffi contra a intervenção imperialista, sem depositar nenhuma confiança e com total independência em relação ao governo nacionalista burguês líbio.”
Essa é a afirmação formalmente correta de que a tarefa imediata na Líbia sob a intervenção da OTAN é combater o bloco dos imperialistas com o CNT sem capitular politicamente ao regime burguês de Kadafi. Manter-se independente de Kadafi e de seus aliados em termos político-organizativos não é um mero detalhe para os revolucionários. Nossa principal perspectiva é a de utilizar um programa anticapitalista como forma de apontar a necessidade dos trabalhadores tomarem o poder em suas mãos e construírem uma sociedade radicalmente diferente – o que seria impossível fazer se capitulássemos politicamente à burguesia e àqueles que se adaptam ao capitalismo de uma forma ou de outra.
Assim, a defesa da Líbia contra os imperialismos é uma tarefa política importante, mas que de forma alguma deve obscurecer uma campanha implacável de denúncias contra o regime de Kadafi e o nacionalismo burguês, mostrando à classe trabalhadora que ela tem interesses absolutamente distintos daqueles de Kadafi ou de quaisquer outros setores burgueses.
De um ponto de vista estratégico, demarcar a linha de classe é tão essencial para a vitória do proletariado quanto estar do lado certo de uma guerra contra o imperialismo. Quantos não foram aqueles (dentre os quais Hugo Chávez e diversos outros apologistas de Kadafi) que estiveram do lado certo da barricada na guerra da Líbia pelos seus próprios interesses burgueses? Ao terem semeado confiança em Kadafi, eles foram, para propósitos revolucionários, tão inúteis quanto aqueles que estiveram do lado errado, semeando ilusões em um movimento liderado pela burguesia tribal reacionária e apoiado pela OTAN.
Nesse sentido, durante a intervenção da OTAN, a perspectiva da LBI com relação às demandas democráticas a serem levantadas pelo proletariado em uma ditadura burguesa como a da Líbia foram completamente diferentes daquelas tarefas estabelecidas pela Quarta Internacional liderada por Trotsky. Enquanto criticava corretamente os líderes tribais do CNT e os imperialistas, a LBI escreveu:
“Os chacais imperiais como Obama, Sarkozy e Cameron já salivam o sangue assassino e exigem que o ‘ditador’ deixe o poder imediatamente, enquanto prosseguem os maiores bombardeios aéreos que a humanidade já presenciou em toda sua história.”
Resistência Líbia, site da LBI, 22 de Agosto.
“Na Líbia, logo os apoiadores do antigo monarca Idris, apeado do governo pelos coronéis em 69, foram a ponta de lança inicial para fazer eclodir o suposto movimento de massas contra o ‘tirano sanguinário’ Muammar Kadaffi (…) Não demorou muito, os ‘rebelados’ contra o caudilho nacionalista já dispunham de sofisticadas armas pesadas que passaram a apontar contra o próprio povo líbio que insistia em permanecer ao lado da ‘ditadura sanguinária’ de Kadaffi.”
Teses trotskistas acerca da guerra imperialista contra a Líbia, Tese III (site da LBI).
Em primeiro lugar, não existe “o povo líbio”, como algo monolítico, apoiando Kadafi. Obviamente Kadafi tinha apoiadores entre as classes populares. Mas também claramente o tinham os rebeldes, cuja base (diferente da liderança burguesa reacionária) é policlassista e possui mesmo alguns setores proletários. Em segundo lugar, as aspas colocadas pela LBI nesse trecho são absolutamente desnecessárias. Acaso Kadafi não era um ditador sanguinário? Parece que não para a LBI. A corrente é incapaz de afirmar o caráter ditatorial de Kadafi em qualquer parte desse ou dos outros textos publicados sobre a Líbia. Em um outro artigo da sua coletânea, a LBI diz que a acusação de “ditador” contra Kadafi não passa de “cantilena” (tática de propaganda) da oposição imperialista, “a mesma usada contra Chávez hoje”.
Obviamente não pautamos nossa posição na guerra imperialista com base no caráter do regime kadafista, e sim pelo fato de que este estava defendendo (por seus próprios interesses) um país semicolonial contra vários países imperialistas. Por mais sanguinário que tenha sido, sua opressão não pode ser comparada com a dos imperialistas. Como explicou Trotsky, a vitória dos imperialismos significa a imposição de duplas correntes aprisionando o povo líbio. Também não conferimos a menor autoridade ao discurso “democrático” dos imperialistas Obama, Sarkozy, Cameron e companhia, responsáveis pelas mortes de dezenas de milhares de líbios desde que se iniciaram os bombardeios.
Mas isso não nos impede de denunciar o caráter tirano de Kadafi e de seu regime. De fato, ele é o maior culpado pelo fato de o movimento dos trabalhadores na Líbia ser inexpressivo, senão inexistente:
“Todos os outros partidos políticos foram banidos. Sindicatos foram incorporados à União Socialista Árabe [partido de Kadafi] e as greves proibidas. A imprensa, já submetida à censura, foi oficialmente alistada em 1972 como um agente da revolução [dos coronéis de 1969] [sic].”
Helen Chapin Metz. Libya: A Country Study. Washington: GPO for the Library of Congress, 1987.
As proibições à liberdade de imprensa e de organização sindical e de partidos políticos da classe trabalhadora, aplicadas por Kadafi por quase 40 anos, desprepararam o proletariado para qualquer forma de resistência. Também a ausência de qualquer experiência democrática na Líbia (desde antes de Kadafi e que ele manteve durante todo o seu governo), contribuiu para que ganhasse influência entre a população a propaganda do CNT/OTAN sobre a democracia burguesa para justificar o seu massacre.
Enquanto na Venezuela de Chávez essas liberdades democráticas existem e o “Bonaparte do século XXI” tem repetidamente recebido aprovação eleitoral para manter seu governo, na Líbia as acusações de ditadura são mais do que “cantilena”. Diante disso, as demandas democráticas cumpririam um papel importante em preparar politicamente os trabalhadores contra o ditador (sem aspas) líbio. No documento de fundação da Quarta Internacional há uma seção sobre o importante papel suplementar das demandas democráticas nos países capitalistas atrasados, que diz:
“É impossível rejeitar pura e simplesmente o programa democrático: é necessário que as próprias massas ultrapassem este programa na luta. A palavra de ordem de Assembléia Nacional (ou Constituinte) conserva todo seu valor em países como a China ou a Índia. (…) É necessário, antes de tudo, armar os operários com esse programa democrático. Somente eles poderão levantar e reunir os camponeses. Baseado no programa democrático e revolucionário é necessário opor os operários à burguesia ‘nacional’.”
Programa de Transição, setembro de 1938.
Ao mesmo tempo em que combatesse o bloco CNT/OTAN com destacamentos de trabalhadores, um partido revolucionário na Líbia levantaria contra Kadafi a demanda de Expropriação sob controle operário das empresas imperialistas e nacionais, sem indenização para desmascarar o conteúdo burguês do governo de Trípoli. Também seria essencial para mobilizar os trabalhadores, usar as palavras de ordem democráticas de Liberdade de imprensa, de organização sindical e partidária! Assembléia Constituinte eleita por sufrágio universal!
A LBI fez várias críticas ao caráter burguês e de colaboração com o imperialismo de Kadafi, mas ignorou estas importantes demandas contra o seu caráter ditatorial. Essa omissão fica ainda mais evidente quando percebemos que não é levantada sequer uma demanda democrática contra Kadafi nas 80 páginas do seu livreto! Assim, a LBI mostrou que por trás da sua linha formal, nutria ilusões com o regime líbio. Em igual proporção, falharia na preparação dos trabalhadores para romper politicamente com esta ditadura burguesa. Outro efeito colateral seria lançar parte dos trabalhadores que se opusessem a Kadafi nos braços da reação tribal, que reconhece o caráter ditatorial de Kadafi ao mesmo tempo em que demagogicamente defende uma “democracia” burguesa inspirada pela lei islâmica e sob os escombros de milhares de corpos humanos dizimados pelo imperialismo.
Quebrar as ilusões com o regime burguês da Líbia e buscar conquistas democráticas e sociais com a perspectiva de levar os trabalhadores ao poder deveria permanecer sendo o objetivo dos revolucionários mesmo enquanto combatiam o maior inimigo dos povos, o imperialismo. Nisso consistia a “total independência política” com relação ao decrépito regime de Kadafi, que a LBI deixou de lado.