A Revolução de 1905
Durante 1904, a derrota russa na guerra com o Japão provoca um ascenso da oposição liberal burguesa contra a autocracia czarista. Essa mudança significativa no cenário político russo aprofundou as diferenças entre menchevismo e bolchevismo. Atribuindo aos liberais o papel de liderança na revolução anti-czarista que viria, os mencheviques buscavam encorajar a oposição liberal diminuindo o criticismo sobre eles. A atitude conciliatória dos Mencheviques em relação aos liberais marcou uma regressão a um nível ainda mais baixo do que o dos economicistas, restringindo o partido socialdemocrata à defesa de interesses setoriais do proletariado russo.
Lenin atacou de forma afiada essa política liberal-conciliatória em seu artigo de novembro de 1904, “A Campanha do Zemstvo e o Plano do Iskra”, que abriu uma fase mais profunda no conflito bolchevique-menchevique. (Os Zemstvos eram os corpos governamentais locais através dos quais os liberais esperavam reformar o czarismo). O eixo central da polêmica de Lenin é esse:
“Democratas burgueses são por sua própria natureza incapazes de satisfazer essas demandas [democráticas revolucionárias], e estão portanto condenados à indecisão e a morrer no meio do caminho. Criticando essa indecisão, os socialdemocratas continuam incentivando os liberais ao mesmo tempo em que ganham mais e mais proletários e semi-proletários, e parcialmente a pequeno-burguesia também, da democracia liberal para a democracia da classe trabalhadora….”“A oposição burguesa é meramente burguesa e meramente uma oposição porque ela não luta por si própria, porque ela não tem um programa próprio que defenda incondicionalmente, porque ela permanece entre dois combatentes de verdade (o governo e o proletariado revolucionário, cheio de apoiadores na intelectualidade) e tem a esperança de tirar vantagem do desfecho dessa luta.”
Essa diferença sobre o papel da burguesia liberal na revolução anti-czarista era a questão principal dos rivais Mencheviques e Bolcheviques nos encontros em abril de 1905. Partindo da sua premissa de que o partido liberal burguês deveria chegar ao poder com a destruição do absolutismo, os Mencheviques chegavam ao posicionamento de que o partido socialdemocrata, não importasse o quão forte, não deveria derrotar militarmente o governo czarista. Essa política de espera passiva e de segurar no rabo dos liberais foi adotada na forma de resolução na conferência menchevique de abril:
“Sob essas condições, a socialdemocracia deve se esforçar em reter para si mesma, ao longo de toda a revolução, uma posição que vai lhe garantir uma melhor oportunidade de aprofundar a revolução, a qual não a mantivesse numa luta contra as políticas inconsistentes e egoístas dos partidos burgueses, e a qual prevenisse que a revolução perdesse a sua identidade na democracia burguesa.”“Portanto, a socialdemocracia não deveria colocar para si própria o objetivo de exercer ou dividir o poder no governo provisório, mas deve permanecer um partido de extrema oposição revolucionária.”– Robert H. McNeal, Ed., Decisões e Resoluções do Partido Comunista da União Soviética (1974)
Lenin contrapôs à concepção menchevique a idéia de “ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato”, um conceito mais extensivamente estabelecido em seu livro de julho de 1905, Duas Táticas da socialdemocracia na Revolução Democrática. Lenin parte da premissa de que a burguesia russa era incapaz de levar adiante as tarefas históricas da revolução democrático-burguesa. Entretanto, ele acreditava que um movimento radical populista de base camponesa poderia e iria desenvolver um partido democrático-revolucionário de massas. (Significativamente, Lenin nãoconsiderava os Socialistas Revolucionários tal partido. Ele considerava que eles eram um agrupamento “intelectualista” e ainda viciados em terrorismo). A aliança entre o partido democrático-revolucionário de base camponesa e o partido proletário socialdemocrata, incluindo uma coalizão do “governo provisório revolucionário”, iria derrubar o absolutismo e levar em frente o programa radical democrático – o programa “mínimo” do Partido Operário socialdemocrata Russo (POSDR). O núcleo operacional da estratégia de Lenin foi adotada no terceiro congresso do POSDR só composto por bolcheviques:
“Dependendo do alinhamento de forças e outros fatores que não podem ser precisamente definidos de antemão, representantes do nosso partido podem ser autorizados a tomar parte do governo provisório revolucionário para conduzir uma implacável luta contra todas as tentativas contra-revolucionárias e para defender os interesses independentes da classe trabalhadora.”– Idem.
Ao desenvolver o conceito de “ditadura revolucionária democrática”, Lenin estava primeiramente preocupado em motivar a socialdemocracia russa para um papel político e militar ativo na revolução. Quanto ao futuro destino da “ditadura revolucionária democrática”, Lenin é deliberadamente vago; está claro que ele não a considerava uma forma estável de dominação de classe. Em Duas Táticas, ele afirma:
“A ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato é inquestionavelmente apenas um objetivo socialista transiente, temporário, mas ignorar esse objetivo no período da revolução democrática seria claramente reacionário.”
A futura evolução da sociedade russa a partir da “ditadura revolucionária democrática” seria determinada pelo equilíbrio de força de classe não apenas na Rússia mas por toda a Europa. A formulação de Lenin é portanto uma concepção algébrica. Em seu desfecho mais revolucionário, ela tomaria a forma da “revolução permanente” de Trotsky: uma revolução democrática radical na Rússia acende uma faísca para a revolução proletária européia, que permite a revolução socialista imediata na Rússia. Numa face reacionária triunfante, a “ditadura revolucionária democrática” se torna um episódio revolucionário tal qual a ditadura jacobina de 1793 ou a comuna de Paris de 1871, que torna possível a estabilização de uma dominação democrático-burguesa normal.
No início de 1905, a questão da dinâmica política da revolução havia superado a estreita questão organizativa como o conflito central entre bolchevismo e menchevismo. De fato, o criticismo aos Mencheviques adotado no congresso Bolchevique de abril de 1905 nem sequer menciona o ponto que causou o racha originalmente. Ao invés disso, condenava os Mencheviques por economicismo e seguidismo liberal:
“… uma tendência geral de diminuir o significado da consciência, a qual eles subordinam à espontaneidade, na luta proletária…. Em problemas táticos [os Mencheviques] manifestam um desejo de estreitar a visão de trabalho do partido; falam contra a posse pelo partido de táticas completamente independentes em relação ao partidos liberais burgueses, contra a possibilidade e o caráter desejável de que nosso partido tome um papel organizacional no levante popular, e contra a participação do partido sob quaisquer condições num governo provisório democrático revolucionário.”
Como é bem conhecido, nem todos os líderes mencheviques de 1903 tornaram-se seguidistas dos liberais em 1905. Durante 1904, o jovem Trotsky desenvolveu a teoria da “revolução permanente” como aplicável à Rússia. Devido ao desenvolvimento desigual da Rússia, nenhuma força democrático-burguesa revolucionária, incluindo um partido populista radical de base camponesa, iria emergir para derrubar o absolutismo. Ao levar em frente a revolução anti-absolutista, o partido proletário seria forçado a tomar o poder de Estado e também a introduzir o início da socialização. A não ser que a revolução proletária russa se estendesse para a avançada Europa capitalista, o Estado operário atrasado seria inevitavelmente destruído pela reação imperialista. A “revolução permanente” de Trotsky o posicionou à esquerda dos leninistas na questão da estratégia revolucionária, mas, com exceção de um momento histórico em 1905, ele permaneceu uma figura isolada no movimento socialdemocrata da Rússia pré-guerra.
Revolução e Recrutamento em Massa
As diferenças com os Mencheviques sobre a natureza da revolução russa enfraqueceram, mas não eliminaram, os conciliadores bolcheviques, que queriam uma reunificação do POSDR. Entretanto, o ascenso revolucionário produziu uma nova divisão no campo bolchevique, e desta vez Lenin se encontrou tomando uma posição que não lhe era familiar na questão organizativa.
A radicalização de massa, particularmente após o Domingo Sangrento, 9 de janeiro de 1905, produziu dezenas de milhares de jovens trabalhadores militantes que desejavam se unir a um partido revolucionário socialista, a se juntar aos Bolcheviques. Entretanto, habituados a uma pequena rede secreta, muitos “homens dos comitês” Bolcheviques (os quadros que tinham construído núcleos socialdemocratas fortes nas difíceis condições da clandestinidade) resistiram à mudança radical na natureza de sua organização e no seu funcionamento. Eles se opuseram a uma política de recrutamento de massa e insistiram em manter um longo período de acompanhamento como um critério prévio para ser considerado membro.
Lenin se opôs inflexivelmente a esse conservadorismo do aparato e buscou transformar os Bolcheviques de uma organização com trabalho de agitação para um partido proletário de massa. Desde cedo, em fevereiro de 1905, num artigo chamado “Novas Forças e Novas Tarefas”, Lenin expressou preocupação com que a radicalização das massas estivesse muito além do crescimento da organização bolchevique:
“… nós devemos aumentar consideravelmente a admissão de membros em todo o partido e em órgãos a ele conectados para sermos capazes de manter, em alguma medida, extensão com o fluxo de energia popular revolucionária que foi multiplicado por cem. Isso, nem é preciso dizer, não significa que treinamento consistente e instrução sistemática nos conceitos marxistas devem ser deixados de lado. Nós devemos, entretanto, lembrar que no presente momento um significado muito maior no que diz respeito a treinamento e educação está atribuído às operações militares, que ensinam aos inexperientes precisamente e inteiramente nosso sentido de compromisso. Nós devemos lembrar que a nossa crença “doutrinária” no marxismo está agora sendo reforçada pela marcha dos eventos revolucionários, que está por toda a parte fornecendo lições objetivas às massase que todas essas lições confirmam precisamente o nosso dogma….”“Jovens lutadores devem ser recrutados de forma mais ousada, ampla e rapidamente para todas as colunas de todas e de todo o tipo de nossos órgãos. Centenas de novos órgãos devem ser montados para este propósito sem um minuto de atraso. Sim, centenas; isso não é uma hipérbole, e que não venha ninguém me dizer que agora é ‘tarde demais’ para realizar tamanha tarefa organizativa. Não, nunca é tarde demais para organizar. Nós devemos usar a liberdade que nós estamos conseguindo pela lei e a liberdade que nós estamos tendo apesar da lei para reforçar e multiplicar todas as variedades de órgãos do partido.” [ênfase no original]
O conflito entre a política de recrutamento de massa de Lenin e os conservadores “homens dos comitês” foi uma das questões mais quentes do congresso bolchevique de abril de 1905. A moção de Lenin sobre o assunto ganhou por uma apertada maioria. Essa moção chama os Bolcheviques a
“… fazer todo esforço para reforçar os laços entre o partido e as massas da classe trabalhadora, elevando setores ainda mais amplos dos proletários para a completa consciência socialdemocrata, desenvolvendo sua atividade revolucionária socialdemocrata, fazendo assim com que o maior número possível de trabalhadores capazes de liderar o movimento e os órgãos do partido seja elevado a partir da massa da classe trabalhadora para membros dos centros locais e do meio partidário através da criação de um número máximo de organizações da classe operária ligadas ao nosso partido….”– “Rascunho das Resoluções Entre Trabalhadores e Intelectuais nos Órgãos socialdemocratas”, abril de 1905
Em oposição à política de recrutamento de massa, os conservadores homens dos comitês bolcheviques citaram O Que Fazer? com sua linha de “quanto mais exigente, melhor”. Lenin replicou que a polêmica de 1902 buscava guiar a formação de um grupamento oposicionista dentro de um movimento politicamente heterogêneo de círculos de propaganda secretos. As tarefas que os Bolcheviques enfrentavam em 1905 eram, para dizer o mínimo, diferentes.
Lenin estava absolutamente certo ao se opor à atitude conservadora com relação ao recrutamento de massa durante a revolução de 1905. Se as dezenas de milhares de jovens trabalhadores subjetivamente revolucionários, mas politicamente crus, que vieram a tona não fossem recrutados pelos Bolcheviques, eles iriam naturalmente se juntar aos oportunistas Mencheviques, aos radicais populistas Socialistas Revolucionários ou aos anarquistas. O partido revolucionário teria sido privado de uma grande e importante geração proletária. Sem o recrutamento de massa o Partido Bolchevique teria sido esterilizado durante a revolução e daí em diante.
Outro aspecto do conservadorismo do aparato dos “homens dos comitês” bolcheviques era uma atitude sectária com relação às organizações de massa lançadas pela revolução – os sindicatos e, acima de tudo, os sovietes. O fundamental Soviete [Conselho] de São Petersburgo de Deputados dos Operários se originou em outubro de 1905 como um comitê geral centralizado de greves. Enquanto os Mencheviques mergulharam nos sindicatos e nos sovietes precisamente porque estes eram programaticamente frouxos, de uma natureza política heterogênea, uma seção da liderança dos Bolcheviques descreditava tais organizações como adversárias do partido.
Assim, em outubro de 1905, o comitê central Bolchevique na Rússia (Lenin ainda estava no exílio) endereçou uma “Carta a Todos os Órgãos do Partido” que declarava:
“Todas as organizações representam um certo estágio no desenvolvimento político do proletariado, mas se elas se localizam fora da socialdemocracia, elas estão, objetivamente, em perigo de manter o proletariado num nível político primitivo e assim subjugado aos partidos burgueses”.– Citado em Tony Cliff, Lenin – Volume I: Construindo o Partido (1975)
A atitude inicial sectária dos Bolcheviques com relação aos sovietes permitiu aos Mencheviques desempenhar neles um papel de liderança ao preencher um vácuo político. Dessa forma Trotsky, como presidente do Soviete de São Petersburgo, emergiu como o mais proeminente revolucionário socialista em 1905.
Assim como havia lutado por uma política de recrutamento de massa, Lenin interviu para corrigir uma atitude sectária abstencionista com ralação aos sovietes. Numa carta para a imprensa bolchevique chamada “Nossas Tarefas e o Soviete de Deputados dos Operários” (novembro de 1905) ele escreveu:
“… o Soviete de Deputados de Operários ou o partido? Acho que seria errado pôr a pergunta desta forma e que a decisão deve certamente ser: ambos o Soviete de Deputados de Operários e o partido. A única questão – e uma altamente importante – é como dividir, e como combinar, as tarefas do Soviete e aquelas do Partido Operário Social Democrata Russo.”“Eu creio que não seria aconselhável ao Soviete aderir inteiramente a um único partido qualquer.” [enfase no original]
Assim como Trotsky, Lenin considerava os sovietes a base organizativa para um governo revolucionário:
“Na minha cabeça, o Soviete de Deputados dos Operários, como um centro revolucionário provendo liderança política, não é uma organização ampla demais, mas ao contrário, muito restrita. O Soviete deve declarar a si mesmo o governo provisório revolucionário, ou formar tal governo, e por todos os meios recorrer para este fim a participação de novos deputados, não apenas de trabalhadores, mas antes de tudo, de marinheiros e soldados…; em segundo lugar, do campesinato revolucionário, e em terceiro, da intelligentsia burguesa revolucionária. O Soviete deve selecionar um forte núcleo para o governo provisório revolucionário e reforçá-lo com representantes de todos os partidos democratas revolucionários (mas, é claro, apenas revolucionários, e não liberais).”– Idem.
A orientação positiva de Lenin com relação aos sindicatos e sovietes em 1905 não representa uma mudança em sua posição prévia sobre um partido de vanguarda. Ao contrário, o conceito de um partido de vanguarda pressupõe e de fato requer organizações muito amplas através das quais o partido possa liderar as massas de trabalhadores de consciência mais atrasada. O Que Fazer? declara muito claramente a relação entre o partido e os sindicatos:
“As organizações dos trabalhadores para luta econômica devem ser as organizações sindicais. Todo trabalhador socialdemocrata deveria tão quanto possível ajudar e efetivamente construir essas organizações. Mas, enquanto isso é verdade, certamente não é do nosso interesse exigir que apenas socialdemocratas sejam eleitos como membros nos sindicatos, uma vez que isso apenas iria estreitar o escopo de nosa influência nas massas. Deixemos cada trabalhador que entenda a necessidade de união para lutar contra os patrões e o governo se juntar aos sindicatos. O objetivo exato dos sindicatos seria impossível de ser atingido, se eles não reunissem todos aqueles que adquiriram pelo menos o mais elementar nível de compreensão, se eles não fossem organização muitoamplas. Quanto mais amplas essas organizações, mais amplo vai ser o nosso nível de influência sobre elas.” [ênfase no original]
Lenin Renunciou a O Que Fazer?
Quase todo revisionista de direita se apoiou na luta de Lenin por uma política de recrutamento de massa e contra o conservadorismo do aparato do partido para afirmar que o fundador do comunismo moderno abandonou os princípios de O Que Fazer? nessa ocasião e daí por diante. O movimentista-reformista britânico Tony Cliff conclui que em 1905:
“Sobre a idéia de que consciência socialista só poderia ser trazida de “fora”, e de que a classe podia alcançar espontaneamente apenas uma consciência sindical, Lenin agora formulava sua conclusão em termos que eram o oposto absoluto daqueles de O Que Fazer? Num artigo chamado ‘A Reorganização do Partido’, escrito em novembro de 1905, ele diz sem rodeios: ‘A classe trabalhadora é instintivamente, espontaneamente socialdemocrata’.”– Op. cit.
Jean-Jacques Marie, líder da neo-kautskista Organização Comunista Internacionalista francesa, diz praticamente a mesma coisa:
“Lenin abandonou a rigidez na definição que ele tinha dado da relação entre ‘consciência’ e ‘espontaneidade’. Após o segundo congresso (agosto de 1903) ele indicou que tinha ‘pego pesado’ ou ‘arrancado o bastão quebrado pelos economicistas e o quebrado pro outro lado’. A revolução de 1905 só poderia forçá-lo a restringir a função histórica de O Que Fazer? a um momento particular.”– Introdução a O Que Fazer? (1966)
Porque todos os tipos de reformistas e centristas exploram a luta de Lenin em 1905 contra o conservadorismo do aparato por propósitos anti-leninistas, é extremamente importante definir precisamente as questões de tal disputa. Que aspecto ou aspectos de O Que Fazer? Lenin considerava ainda relevantes em 1905?
Lenin não mudou sua posição com relação à consciência e espontaneidade. Em 1905 e até a sua morte, ele manteve que o partido de vanguarda revolucionária era inequivocamente a expressão consciente dos interesses históricos do proletariado. Como nós apontamos, o congresso bolchevique de abril de 1905, onde Lenin lutou por uma campanha de recrutamento de massa, condenou os Mencheviques por uma “tendência geral de menosprezar o significado da consciência, que eles subordinam à espontaneidade, na luta proletária”. Lenin não considerava que os “jovens lutadores” e futuros recrutas em 1905 fossem mais politicamente avançados que os homens dos comitês bolcheviques. Ao contrário, ele insistiu que os notáveis e empenhados homens dos comitês podiam e deveriam elevar os subjetivamente revolucionários “jovens lutadores” ao seu próprio nível.
Lenin não jogou descarga abaixo o programa revolucionário do partido para atrair trabalhadores de consciência rebaixada; ele não caiu em demagogia. Isso fica óbvio da passagem citada em “Novas Forças e Novas Tarefas”. Ele também não acreditava que recrutamento amplo requeria uma queda de nível na responsabilidade e disciplina dos membros. O congresso bolchevique de abril substituiu a definição frouxa de Martov de 1903 sobre a condição de membro com a posição de Lenin quanto a participação formal na organização. Nem mesmo Lenin achava que a transformação dos Bolcheviques num partido operário de massas deveria levar a um significativo relaxamento no centralismo organizativo. Através desse período ele reafirmou sua crença de que centralismo era um princípio organizativo fundamental da socialdemocracia revolucionária. Por exemplo, no artigo “O Congresso de Jena do Partido Socialdemocrata Alemão” (setembro de 1905), ele escreveu:
“É importante que a mais marcante característica desta revisão [das regras do SPD] deveria ser sublinhada, ou seja, a tendência em direção a maior, mais abrangente e mais rigorosa aplicação do princípio do centralismo, o estabelecimento de uma organização mais forte….”“No todo, isso obviamente mostra que o crescimento do movimento socialdemocrata e de seu espírito revolucionário necessariamente e inevitavelmente leva ao estabelecimento consistente do centralismo.”
Construindo nas Bases de O Que fazer?
Em que sentido então Lenin considerava O Que Fazer? como inaplicável para as tarefas que os Bolcheviques enfrentavam em 1905? Em 1905 Lenin defendia uma redução do até então nível normal de experiência política e conhecimento requerido para recrutamento e também para responsabilidades de liderança. E essa mudança não estava tanto no conceito de Lenin de um partido de vanguarda como na consciência do proletariado russo. Nas condições clandestinas de 1902-3, apenas um pequeno número de trabalhadores avançados iria aderir ao programa socialdemocrata revolucionário, arriscando-se à prisão e ao exílio, e aceitariam a disciplina da recém-formada tendência do POSDR. Após o Domingo Sangrento dezenas de milhares de jovens militantes trabalhadores e também pequeno-burgueses radicais queriam se tornar revolucionários socialdemocratas, até onde eles entendiam o que isso significava. Recrutamento amplo em 1902-3 teria sufocado os elementos revolucionários do POSDR numa massa de trabalhadores russos atrasados, ortodoxos e liberal-czaristas. Em 1905, a sólida organização dos quadros Bolcheviques foi capaz de assimilar um grande número de trabalhadores radicalizados, apesar de politicamente crus.
O recrutamento de massa de Lenin em 1905 não foi nem um repúdio e nem uma correção dos princípios expressos em O Que Fazer? mas se baseou em sua bem-sucedida implementação. Uma condiçãoprévia para um recrutamento amplo durante uma crise revolucionária é uma homogênea organização de quadros. E Lenin explicitamente declara isso nessa passagem, que o próprio Cliff cita, mas se recusa ou é incapaz de entender:
“Há perigo em se acomodar diante de um repentino influxo de um grande número de militantes não-socialdemocratas no partido. Se isso ocorresse, o partido se dissolveria entre as massas, ele deixaria de ser a vanguarda consciente da classe, seu papel seria reduzido ao de um rabo atrás das massas. Isso iria significar um período bastante deplorável de fato. E esse perigo poderia, sem dúvida alguma se tornar muito sério se nós mostrássemos alguma inclinação em direção à demagogia, se nos faltassem princípios partidários (programa, regras táticas, experiência organizativa), ou se esses princípios fossem fracos e instáveis. Mas o fato é que não existe ‘se’…. Nós exigimos consciência de classe daqueles que se unem ao partido, nós insistimos na tremenda importância da continuidade no desenvolvimento do partido, nós pregamos disciplina e exigimos que cada um dos membros do partido seja treinado em alguma das organizações partidárias. Nós estabelecemos firmemente o programa partidário que oficialmente reconhecido por todos os socialdemocratas e as propostas fundamentais que não geraram nenhum criticismo…. Nós temos resoluções sobre táticas que funcionaram consistentemente no segundo e terceiro congressos e no curso de muitos anos de trabalho da imprensa socialdemocrata. Nós também temos alguma experiência organizativa e uma organização de verdade, que desempenhou um papel educativo e sem dúvida trouxe frutos.” [ênfase no original]– “A Reorganização do Partido” (novembro de 1905)
Um fraco grupo de propaganda ou partido pequeno, heterogêneo que abre as suas portas durante um levante revolucionário será mergulhado num pântano de imaturidade e impressionismo, elementos voláteis que levarão esse partido ao desastre. Isso é precisamente o que aconteceu à Liga Spartacus alemã de Luxemburgo e Liebknecht entre 1918-19. Os bolcheviques de Lenin em 1905 foram capazes de evitar o destino trágico de Liga Spartacus porque eles haviam construído uma organização de acordo com os princípios de O Que Fazer? nos cinco anos anteriores.
Diferente dos Bolcheviques, os Mencheviques foram de certa forma envolvidos pela sua massa de recrutas radicalizados. Sob o impacto do aprofundamento da revolução, a liderança Menchevique de fato rachou. O principal seguidor de Martov, Theodore Dan, e Martynov (dentre todos) apoiaram a campanha de Trotsky por um “governo dos trabalhadores”. O próprio Martov e Plekhanov aderiram à posição menchevique oficial de se abster da luta pelo poder governamental. Assim a revolução de 1905 fez com que as duas maiores figuras de autoridade do menchevismo ficassem isoladas na ala direita de sua própria tendência.
É duvidoso que Lenin acreditasse que a ampla maioria daqueles que foram recrutados em 1905 permanecessem bolcheviques a longo prazo, particularmente se a revolução falhasse (como falhou) e um período de reação se estabelecesse. Mas entre os primeiros atraídos para a luta revolucionária em 1905, era difícil distinguir os elementos genuinamente avançados dos politicamente atrasados ou com desvios, os revolucionários de mente séria daqueles simplesmente pegos no calor do momento. Apenas tempo e disputa interna iriam poder separar os futuros bolcheviques recrutados durante a revolução dos acréscimos acidentais. Durante a revolução de 1905 o verdadeiro Partido Bolchevique continuou sendo os homens dos comitês do tempo do Iskra: os novos recrutas eram militantes aspirantes.
Sob condições normais uma organização revolucionária seleciona, educa e treina seus membros em grande parte antes de eles entrarem. Esse processo preparatório frequentemente ocorre através de uma organização intermediária (por exemplo, comitê de mulheres, colateral sindical, coletivo estudantil). Mas durante o levante revolucionário, tal longo período de pré-recrutamento pode privar o partido de vanguarda de alguns dos melhores jovens lutadores que querem se prestar a um papel político maior através da participação no partido. Havendo um núcleo de quadros suficientemente grande e sólido, o partido de vanguarda pode buscar recrutar todos os elementos aparentemente saudáveis que concordarem com o programa marxista revolucionário tão bem quanto o entenderem. O processo de seleção e educação ocorre então internamente.
Recrutamento de massa durante uma revolução representa, de forma extrema, uma característica geral do crescimento e desenvolvimento do partido. A transição de um círculo de propaganda para um partido operário de massas não é um processo uniforme, linear. Períodos de rápido crescimento e expansão em novos meios são tipicamente seguidos por um período de consolidação, marcado por um certo giro para dentro, em direção à cristalização de uma nova camada de quadros.
Em junho de 1907, Lenin trouxe a tona uma coleção dos seus principais escritos intitulada Doze Anos.A essa altura os Bolcheviques eram ainda um partido de massas na legalidade com um tamanho aproximado de 45.000 membros. A vitória da reação czarista ainda não havia reduzido os Bolcheviques a uma rede clandestina relativamente pequena. A condição dos Bolcheviques no começo de 1907 e a situação que eles enfrentaram era então muito diferente do período do Iskra entre 1902-1903.
Lenin então teve que explicar e enfatizar o contexto histórico e propósito fracional de O Que Fazer? Em seu prefácio para Doze Anos, Lenin observa que
“Os economicistas tinham ido a um extremo. O Que Fazer?, como eu disse, corrige o que tinha sido distorcido pelos economicistas….”“O significado dessas palavras é suficientemente claro: O Que Fazer? é uma correção controversa das distorções dos economicistas e seria errado considerar o livro sob qualquer outro ângulo.”
Todo revisionista de direita (por exemplo, Tony Cliff, J.J. Marie) se apoiou nessas duas frases como se elas fossem um vale para o paraíso, para poder considerar o que Lenin disse em O Que Fazer? como uma declaração política historicamente obsoleta e exagerada. Isso é uma distorção fundamental da intenção de Lenin. O Que Fazer? pareceria unilateral em 1907 porque tratava da cristalização de um partido agitativo composto por revolucionários profissionais a partir de um frouxo movimento de círculos de propaganda. A polêmica de 1902 não lidava com a transformação de tal organização agitativa em um partido operário de massas, nem com os problemas e tarefas de um partido revolucionário de massas.
No mesmo prefácio para Doze Anos, Lenin observa que construir uma organização de revolucionários profissionais é um estágio necessário em criar um partido proletário revolucionário, do qual aqueles serão o núcleo vital. Ele aponta que os homens de comitê do período do Iskra formaram as bases de todas as organizações bolcheviques subsequentes:
“Surge a questão sobre quem realizou, quem trouxe até essa etapa superior de unidade, solidariedade e estabilidade o nosso partido. Isso foi realizado pela organização de revolucionários profissionais, construção à qual o Iskra fez a maior contribuição. Qualquer um que conheça bem a história do partido, qualquer um que tenha dado uma mão na construção do partido, só tem que olhar a lista de delegados de qualquer dos grupos, digamos, no Congresso de Londres [de 1907] para ser convencido e perceber de uma só vez que é uma lista dos velhos membros, o núcleo central que trabalhou mais do que todos para construir o partido e fazer dele o que é hoje.”