Os rebeldes na Líbia e na Síria e a posição revolucionária
Rodolfo Kaleb, janeiro de 2014
Em um artigo de 2013 lidando com os desenvolvimentos da guerra civil que se desenrola há quase três anos na Síria, no qual critica diferentes posições políticas na esquerda, a Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional (seção brasileira da Fração Trotskista) destacou, com uma nota de rodapé, o seguinte aspecto referente à guerra imperialista lançada contra a Líbia no ano de 2011:
“Algumas correntes de origem espartaquista criticam a possibilidade de alianças tático-militares com os setores rebeldes na Líbia, não por embelezar Kadafi como uma direção ‘anti-imperialista’, mas por considerar que a intervenção militar imperialista configurava uma guerra de opressão nacional, motivo pelo qual os revolucionários supostamente deveriam se localizar no campo militar oposto a essa intervenção com um programa político independente. Essa lógica erra porque não considera que, mesmo tendo sido o levante das massas contra Kadafi desviado e controlado pelas direções burguesas aliadas ao imperialismo, seguia sendo sob essa base – por ter sido a protagonista de ações espontâneas de massa – que seria mais fecunda a luta política para colocar de pé um setor de vanguarda da classe trabalhadora com uma política independente das distintas frações burguesas.”
― A crise Síria e a necessidade de uma política revolucionária, 25 de setembro de 2013.
http://www.ler-qi.org/A-crise-Siria-e-a-necessidade-de-uma-politica-revolucionaria
É um pouco óbvio para os que acompanham nossas publicações que essa crítica, apesar de não sermos nominalmente citados, é dirigida a nós, assim como possivelmente a outros grupos de “origem espartaquista”. No nosso caso, isso deve dizer respeito ao fato de que reivindicamos que nas décadas de 1960 e 1970, a Liga Espartaquista dos Estados Unidos foi o grupo que melhor representou a continuidade da estratégia e do programa do trotskismo após a destruição da Quarta Internacional pelo revisionismo pablista. Posteriormente, a Liga Espartaquista (e sua corrente internacional) evoluiu cada vez mais para se tornar o que é hoje: uma seita burocratizada, realizando capitulações recorrentes tanto ao stalinismo quanto ao imperialismo [1].
Nós polemizamos diretamente com a LER-QI (FT) em nosso texto sobre a Líbia em 2011 e discutimos ativamente sobre o assunto com sua militância no Rio de Janeiro. Não temos conhecimento de outras críticas (ao menos não da mesma profundidade) escritas sobre a LER-QI por qualquer outra corrente de “origem espartaquista”. Mas, deixando de lado o fato de que tal crítica poderia ter sido feita de forma mais direta e clara a nós e outros grupos, o parágrafo faz inicialmente uma descrição justa da posição que adotamos na guerra imperialista contra a Líbia em 2011, ocasião em que criticamos a posição adotada pela FT [2]. Aproveitamos então para dar continuidade a tal polêmica, esclarecendo melhor alguns pontos.
O caráter da guerra na Líbia
A LER-QI questiona o fato de que consideramos que “a intervenção militar imperialista configurava uma guerra de opressão nacional”. Afirmamos que na Líbia se deu, cerca de um mês após o início da guerra civil interna, no qual se confrontavam os rebeldes de um lado e o exército de Kadafi de outro, uma investida imperialista em larga escala, liderada por França, Inglaterra e Estados Unidos, no qual os imperialistas adotaram o lado dos rebeldes e se coordenaram com eles para impor sobre a população da Líbia os seus interesses. Não conseguimos entender o que a LER-QI quer dizer com tal questionamento. Ela não faz nenhuma tentativa séria de demonstrar porque a guerra não seria (a partir de 20 de março de 2011, com o início dos bombardeios de auxílio aos rebeldes) uma guerra de caráter imperialista.
A LER-QI não nega que a intervenção aconteceu, pelo contrário: diz se posicionar contra ela. Concorda que eram potências imperialistas atacando (em colaboração com os rebeldes) buscando derrubar a ditadura de Kadafi para impor seus próprios interesses. Como se deve chamar uma intervenção na qual as potências capitalistas atacam o governo de uma nação oprimida (por mais tirano que seja tal governo) para derrubá-lo? Para nós, isso se chama uma guerra imperialista contra uma semicolônia moderna. Todas as formulações anteriores da FT parecem apontar para isso:
“Os imperialismos, legitimados como ‘apoiadores’ dos rebeldes pela política da CNT, esperaram longos meses até que esta direção tivesse legitimidade suficiente, para então armar as milícias controladas pela direção burguesa. O resultado não tardou. David Cameron e Nicolas Sarkozy marcharam triunfantes por Benghazi ao lado da CNT tendo sido ‘como heróis’…”.
…
“A dialética existente na Líbia é que apesar de haver caído uma ditadura sangrenta, isso não se transformou em uma vitória para as massas, posto que está sendo capitalizado pelos imperialismos e pelo CNT. Esta conclusão é a derivação do fato de que não se pode separar a queda da ditadura da maneira como ela se deu. E não aconteceu a partir da ação independente das massas, mas sob o apoio da OTAN. A derrubada de uma ditadura não pode ser considerada em si um ‘tremendo triunfo para as massas’, se quem se beneficia são os imperialismos.”
― Até quando a LIT-PSTU seguirão insistindo em seus erros?1º de outubro de 2011. Ênfase nossa.
www.ler-qi.org/spip.php?article3146
Nesse caso, os imperialistas contaram com o apoio de uma força militar nativa, forjada sob a liderança do reacionário Conselho Nacional de Transição líbio, que foi o exército rebelde. Isso não apaga o fato de que os bombardeios aéreos imperialistas, os veículos aéreos não-tripulados, o apoio técnico e treinamento militar oferecido aos rebeldes – tudo isso foi central para que triunfasse a aliança entre rebeldes e imperialistas. Em dado momento, a LER-QI chegou a elaborar uma descrição dos rebeldes que achamos excelente para explicar o papel por eles cumprido: “tropas terrestres” do imperialismo.
“A preponderância da ação imperialista não foi um ‘detalhe’, como quer fazer parecer a LIT: ela negou a possibilidade de uma atuação independente das massas, fazendo com que os ‘rebeldes’ atuassem enquanto ‘tropa terrestre’ da intervenção aérea das potências, seguindo seus planos…”.
…
“Não basta, agora e tardiamente, alertar sobre o CNT. É preciso entender a mudança da situação, que ora favorece grandemente a burguesia imperialista. Subestimar com o papel da OTAN como ator fundamental da queda de Kadafi ajuda a alimentar ilusões de que os inimigos dos povos oprimidos podem atuar em favor de seus interesses.”
― A LIT acha progressista a “unidade de ação entre as massas e o imperialismo” na Líbia? 1º de setembro de 2011.
http://www.ler-qi.org/A-LIT-acha-progressista-a-a-unidade-de-acao-entre-as-massas-e-o-imperialismo-na-Libia
De fato, a intervenção imperialista não foi um “detalhe”. A OTAN foi o “ator fundamental” na queda do governo ditatorial de uma nação oprimida. Como é possível então questionar que ocorreu uma guerra de opressão imperialista contra a Líbia? Para nós, essa situação “parece-se muito” com uma guerra desse tipo. Em outros casos de guerra dos imperialismos contra uma semicolônia, nas quais estes tinham o mesmo objetivo de derrubar um governo ditatorial, mas para seus próprios interesses, a LER-QI tomou corretamente o lado do governo da nação oprimida, como foi o caso da guerra contra o Iraque em 2003. Nessa ocasião, a LER-QI compreendeu que “o ponto de partida do programa revolucionário é definir que a guerra do Iraque é uma clara guerra de agressão imperialista contra uma nação oprimida”. E definiu sua linha da seguinte forma:
“Neste tipo de guerras, os revolucionários nos localizamos no campo militar dos países semicoloniais, independentemente do caráter do regime que os governe porque o triunfo do país imperialista significará duplas correntes para o povo da nação semicolonial, e padecimentos piores ainda do que com sua ditadura doméstica. No caso do Iraque nos localizávamos pela derrota militar do imperialismo norte-americano e de sua coalizão, apesar do caráter reacionário e ditatorial de Saddam Hussein.”
― O movimento anti-guerra e a guerra/ocupação do Iraque, junho de 2005. Ênfase nossa.
http://www.ler-qi.org/spip.php?article551
Os imperialistas sempre contam (em maior ou menor escala) com o apoio de setores da burguesia nativa, que é uma classe essencialmente reacionária. No Iraque, por exemplo, o imperialismo norte-americano contou com o apoio de grande parte da burguesia curda (os esquadrões “Peshmerga”), e estas forças acabaram tendo popularidade devido ao histórico de opressão de Saddam Hussein contra o povo curdo e tentaram se apresentar como “libertadores”. Isso não deve mudar o fato de que os revolucionários se localizaram no campo militar oposto ao imperialismo (e àqueles que o apoiaram), ao mesmo tempo em que denunciariam a opressão e os crimes de Saddam Hussein contra a classe trabalhadora e o povo curdo, e suas décadas de colaboração com o imperialismo.
Quando se trata da Líbia, entretanto, a LER-QI utiliza o fato do que antes chamou de “tropas terrestres do imperialismo” terem certo apoio popular (e também na esquerda oportunista) para se esquivar de tratar a situação como um caso de guerra imperialista. Como já argumentamos em nossa polêmica anterior, o fato de não haver unanimidade na esquerda (como houve no caso do Iraque) e de partidos dos quais a FT busca constantemente se aproximar (como o PO argentino) terem apoiado a “revolução” dos rebeldes líbios aumentou a pressão para que a ela tomasse uma posição dúbia e vacilante, evitando a caracterização óbvia de que se tratou de uma guerra de opressão imperialista. Caracterização essa que, conforme a LER-QI deixou claro em 2005, em relação ao Iraque, não deixa dúvidas para qual deve ser a tarefa dos revolucionários, “independentemente do caráter do regime” da nação sob ataque imperialista.
Dessa forma, a nossa crítica a LER-QI sempre se baseou no fato de que, apesar de reconhecer o papel decisivo do imperialismo na dinâmica dos acontecimentos na Líbia (ao contrário do que fizeram o PSTU e outras correntes, que simplesmente taparam os olhos para isso e adotaram uma caracterização oportunista de “revolução” liderada pelo CNT em colaboração com a OTAN), a LER-QI não tomou as posições políticas compatíveis com a situação que por vezes ela própria descreveu. Agora ela está tentando fazer malabarismos teóricos ao dizer que não teria se tratado de uma guerra de opressão imperialista, para justificar o fato inexplicável de que não tomou a posição de defesa militar (mantendo o combate político contra) do governo da nação oprimida, que se confrontava, apesar de seus interesses originais, com o imperialismo e sua “tropa terrestre”. [3]
(Para mais detalhes no que diz respeito a quais táticas e palavras de ordem os revolucionários poderiam usar para, ao mesmo tempo em que combatiam os imperialistas e rebeldes, lutar contra a ditadura de Kadafi, recomendamos a leitura de nossa polêmica anterior e também dos demais materiais reunidos no livreto “Líbia e a Esquerda”, que contém também declarações e polêmicas com outros grupos).
Os vaivéns na caracterização do movimento rebelde na Síria e Líbia
Quando tomamos o lado contrário à intervenção imperialista e seus lacaios rebeldes na Líbia, não estávamos indo contra nenhum “levante das massas contra Kadafi”. É certo que os rebeldes tinham certo apoio popular, mas esse exército nada tem a ver com essa imagem que os morenistas (PSTU e cia.) e outros revisionistas tentaram criar. Ademais, Kadafi também tinha grande apoio popular, como demonstrou em atos massivos na capital e isso em nada afeta nossa linha de oposição estratégica contra ele. A LER-QI está inadvertidamente aceitando a caracterização dos oportunistas social-imperialistas quando nos critica dizendo que, por defendermos um combate aberto contra os rebeldes em face à sua ação coordenada com o imperialismo, estaríamos nos enfrentando com “a base”, dentre a qual seria supostamente “mais fecunda” a luta para a construção de uma vanguarda revolucionária.
A LER-QI acredita, tal qual os oportunistas que ela criticou (principalmente o PSTU), que a base de apoio do Conselho Nacional de Transição líbio era de alguma forma progressista. Como apontamos em nossos artigos anteriores sobre o assunto, é fundamental diferenciar possíveis ilusões que tenham surgido na população a respeito das promessas de democracia dos elementos e ações concretos realizados pelos que compunham o exército dos rebeldes: os atos brutais de racismo perpetrados, a coordenação com a intervenção da OTAN, a confiança nas potências imperialistas, e a tomada do poder por setores da burguesia escudados em um fundamentalismo religioso grotesco.
É importante lembrar que nossa defesa militar do regime da nação oprimida no caso líbio diz respeito ao seu confronto com os veículos aéreos não-tripulados e os aviões de bombardeio das potências imperialistas, as tropas do aparato rebelde (armados pela OTAN) e os especialistas militares imperialistas. Frente, por exemplo, às perseguições que o regime de Kadafi realizou contra populações civis desarmadas e movimentos de trabalhadores independentes, nos posicionamos ao lado destes últimos, assim como mantemos nossa oposição política intransigente a tudo que tal ditador representava politicamente: acreditamos que este devia ser derrubado pelo proletariado, e não pelas potências imperialistas e seus lacaios locais.
Mas os rebeldes líbios não eram parte de um “levante de massas” (como a LER-QI considera que ocorria, mesmo reconhecendo que foi “desviado” pelos interesses imperialistas). A mesma indecisão da LER-QI pode ser visto no caso da Síria (onde a intervenção imperialista ainda não aconteceu):
“Contra aqueles que veem o regime de Assad como progressista e anti-imperialista e afirmam que não está reprimindo uma luta popular, mas defendendo-se da tentativa dos EUA e Israel de derrotá-lo, sustentamos que na Síria há em curso uma luta legítima contra um regime ditatorial que estourou em março de 2011 como parte do processo mais geral da ‘primavera árabe’.”
“Este levantamento popular tem profundas motivações democráticas e sociais. Ante a repressão brutal de Assad, o levantamento popular se militarizou, e ainda que persistam elementos da rebelião que sacudiu o regime, sobretudo os conselhos locais que organizam a vida cotidiana em cidades sob controle da oposição ou a Coordenação de Comitês Locais surgida no início dos levantamentos, os que estão ocupando o centro da cena no plano militar são organizações como o Exército Sírio Livre, que atua patrocinado pela Turquia, e em última instância conta com o apoio do imperialismo norte-americano.” (Ênfase nossa)
— Abaixo a ditadura de Assad, fora Israel e o imperialismo da Síria, 30 de maio de 2013.
http://www.ler-qi.org/Abaixo-a-ditadura-de-Assad-Fora-Israel-e-o-imperialismo-da-Siria
Duas coisas se misturam aqui. Em primeiro lugar, está a crítica correta às correntes stalinistas e nacionalistas terceiro-mundistas que apoiam Assad e consideram seu regime “anti-imperialista” e “progressivo”. Porém, não é verdade que a guerra civil na Síria consiste apenas em uma luta entre Assad e um “levante popular” que “se militarizou”. Não se deve confundir os protestos por democracia que aconteceram na Tunísia, no Egito e mesmo (em um primeiro momento) na Síria, sob o contexto da “Primavera Árabe”, ou o ódio justo do povo contra Assad, com a formação de um exército sob a liderança de setores burgueses e a guerra que há anos se desenrola no país.
Uma vez estabelecido enquanto força beligerante dirigida pelo CNS, o Exército Livre Sírio é um conjunto de milícias que, apesar de heterogêneo, é um aparato armado controlado pela burguesia. A luta dos rebeldes associados ao ELS não pode ser confundida ou considerada parte de uma “luta legítima contra um regime ditatorial”, mas um desvio de qualquer anseio realmente progressivo contra Assad. Mesmo os Comitês Locais de Coordenação, que a LER-QI afirma representarem atualmente a persistência dos “elementos da rebelião que sacudiu o regime” inicialmente, integram há tempos o CNS, estando submetidos à sua direção burguesa e pró-imperialista. O mesmo vaivém pode ser visto no parágrafo que destacamos no começo deste artigo. Apesar de ter sido “desviado e controlado pelas direções burguesas aliadas ao imperialismo”, seguia havendo um suposto “levante das massas” contra Kadafi.
A LER-QI também concede que os trabalhadores se localizem no campo militar dos rebeldes:
“Apoiar consequentemente a luta de todos que querem derrubar Assad passa por colocar abertamente que não, os trabalhadores e o povo não podem ter nenhuma confiança nestes setores [o CNS e a direção do Exército Livre Sírio], ainda que se localizem em seu campo militar, pois caso a ditadura síria caia rapidamente trairão aqueles que lutaram em nome de melhores condições de vida e libertação do jugo da burguesia local e imperialista.” (ênfase nossa).
— Abaixo a intervenção imperialista na Síria! 3 de setembro de 2013.
http://ler-qi.org/Abaixo-a-intervencao-imperialista-na-Siria
Os revolucionários chamam os trabalhadores a defender um lado militar numa guerra sempre que isso implica defender seus interesses. Defendemos direitos democráticos sob ataque no caso de um golpe reacionário contra a democracia burguesa; defendemos os Estados operários deformados contra tentativas contrarrevolucionárias de restauração capitalista; defendemos as nações oprimidas contra o imperialismo e seus lacaios, como foi o caso da Líbia em 2011 (defesa da qual a LER-QI vergonhosamente se absteve ao não tomar o lado do regime da nação subjugada).
Tomamos essas posições não como fins em si mesmos, mas como forma de avançar a luta pela revolução socialista. Porém, é do interesse dos trabalhadores (seria uma vitória parcial) ver derrotados os imperialismos numa guerra contra uma nação oprimida ou contra um Estado operário deformado, mesmo que isso não signifique de imediato um triunfo revolucionário. Mas qual é o interesse dos trabalhadores em ver um triunfo militar dos rebeldes na Síria? Se a LER-QI rejeita a falácia morenista da “revolução democrática” [4], por que concorda em estar do lado militar de uma investida contra Assad que visa, na “melhor” das hipóteses, apenas reconstruir a ditadura da burguesia?
Essas são perguntas que LER-QI não tem como responder sem cair em contradição. De fato, se sabe que os rebeldes, caso vençam a guerra civil, “rapidamente trairão aqueles que lutaram em nome de melhores condições de vida e libertação do jugo da burguesia local e imperialista”, então porque considera que os trabalhadores podem se localizar no seu campo militar? Isso muito se parece com a receita morenista, que sabe que as investidas de movimentos burgueses resultarão na manutenção da ordem capitalista e em traições, mas mesmo assim os apoia. Em 2011 na Líbia, os trabalhadores tinham algo a ganhar ao lutar contra o bloco OTAN/rebeldes: iriam impedir uma opressão e exploração ainda maior do seu país (e poderiam aproveitar isso para preparar a luta decisiva pela revolução proletária contra Kadafi). O que os trabalhadores sírios tem a ganhar tomando o lado militar do exército rebelde? Substituir um regime ditatorial por outro igualmente repressor para os trabalhadores? (ou existe alguma confiança nas supostas credenciais democráticas da corja burguesa do CNS?).
Na Síria, os revolucionários tem o dever de defender os trabalhadores e populações civis atingidas tanto por Assad e quanto pelos rebeldes, e de preparar um movimento proletário contra ambos essas forças burguesas. Não aconteceu ainda na Síria um ataque imperialista que levasse os revolucionários a tomar o lado militar daqueles que se opuserem a tal intervenção. Porém, é inegável que as tropas do ELS são aspirantes diretas a “tropas terrestres” das potências imperialistas [5]. Os revolucionários não podem estar “no campo militar” dos rebeldes, e tampouco estar em “alianças tático-militares” com eles (como a LER-QI hoje defende que era possível na Líbia). A séria ameaça de intervenção imperialista na Síria no fim de 2013 deveria ter deixado isso ainda mais claro!
Ao contrário, para lutar por uma saída revolucionária na Síria, é preciso chamar os trabalhadores que apoiem os rebeldes a romperem imediatamente com tal movimento e não lhe prestar nenhum auxílio em seus intuitos reacionários. Na guerra civil que se desenrola, a luta dos rebeldes é para derrubar Assad para manter a Síria submetida ao imperialismo: não é um movimento amplo com intenções progressivas (e onde seja possível o debate) no qual os revolucionários influiriam para oferecer um rumo anticapitalista, mas sim um exército controlado por cúpulas burguesas.
A raiz dessa posição vacilante da LER-QI é a sua caracterização flutuante dos movimentos rebeldes que surgiram Líbia e na Síria. Vimos acima que os rebeldes na Líbia teriam, na opinião anterior da LER-QI, cumprido o papel de “tropas terrestres” das potências imperialistas. Mas, em sua nota de crítica dirigida a nós, a LER-QI defende a “possibilidade de alianças tático-militares” com esses mesmos rebeldes em meio a uma intervenção imperialista. Imaginamos que nenhum militante da LER-QI defenderia “alianças tático-militares” com “tropas terrestres” do imperialismo, e nem achamos que essa foi a intenção de tal declaração. Tal absurdo flui do fato de que ora os rebeldes são caracterizados como um aparato militar burguês (que pode colaborar com o imperialismo), e ora como algum tipo de força popular lutando contra a ditadura, ainda que sua liderança seja burguesa.
A LER-QI e a construção do partido revolucionário na Líbia e na Síria
Enquanto o PSTU tem toda uma teoria revisionista para basear sua posição de apoiar qualquer força que tenha popularidade contra um regime burguês (por mais reacionária que seja tal força), a LER-QI fica perdida em cima do muro, balançando entre a dúvida acerca do caráter imperialista que o conflito líbio assumiu e um impulso oportunista de conceder estar “no campo militar” de um movimento tão embelezado entre setores da esquerda. Nós defendemos também a formação de um movimento proletário “independente das distintas frações burguesas”. Mas diante de uma intervenção imperialista (que também segue um risco no caso da Síria), uma tarefa central de um movimento como esse seria esmagar o imperialismo e suas “tropas terrestres”, ainda que para isso fosse necessário lutar ao lado das tropas leais ao regime em determinado momento.
A Fração Trotskista parece acreditar que defender possíveis “alianças tático-militares” com os rebeldes na Líbia e conceder que os trabalhadores podem “se localizar no campo militar” deles na Síria contribui para a construção do partido revolucionário. De fato, ela diz que as correntes que, como nós do Reagrupamento Revolucionário, tomaram o lado militar do regime líbio contra o bloco da OTAN/rebeldes, erraram porque foram contra a base em meio a qual “seria mais fecunda a luta política para colocar de pé um setor de vanguarda da classe trabalhadora com uma política independente das distintas frações burguesas”.
Essa posição da LER-QI parte de um objetivismo desastroso no que diz respeito à construção da vanguarda revolucionária. De que forma a política trotskista de defesa da nação oprimida atrapalha a construção do partido revolucionário e por que essa intenção “seguia sendo”, apesar de tudo que se desenvolveu no país, supostamente “mais fecunda” entre a base de apoiadores dos rebeldes? Concretamente, discordamos que a base social dos rebeldes, politicamente pró-imperialista e sem qualquer delimitação de classe, pudesse ser considerada o sujeito social de uma revolução socialista, ou fértil para a construção do partido revolucionário.
Em linhas gerais, as posições trotskistas podem ter certa impopularidade temporária. Muitos poderiam achar que defender militarmente Kadafi ou Assad (no caso de intervenção na Síria) contra o imperialismo seria capitular ao tirano. Muitos não compreendem que não queremos que esses ditadores sejam derrubados pelos rebeldes, justamente porque defendemos que eles devem ser derrubados por uma revolução proletária autêntica. O PSTU, com o método que lhe é característico, não poupa acusações de “capitulação ao ditador” a todos aqueles que não seguem a sua cartilha objetivista da “revolução síria”, supostamente uma “revolução socialista inconsciente”.
Enquanto nós não sabemos as condições específicas nas quais o partido revolucionário será construído na Líbia ou na Síria, o que sabemos com toda certeza é que esse partido não será forjado por aqueles que temem a impopularidade temporária ou capitulam às ilusões de setores da população aceitando que estes tomem o lado dos rebeldes. Nem esse partido será construído se abstendo da tarefa leninista de tomar o lado da nação oprimida contra uma intervenção do imperialismo (ao mesmo tempo em que se mantém as denúncias e o combate político contra seu regime).
Além do mais, não se deve subestimar as possibilidades da política marxista. Na Líbia atual, onde os imperialistas e seus aliados nativos obtiveram sucesso em derrubar o regime (sob o aplauso de muitos revisionistas), a situação não poderia ser mais desesperadora para a classe trabalhadora [6]. O fator objetivo da derrota é terrível para os trabalhadores líbios, mas muitos poderiam se lembrar de uma organização de vanguarda que alertasse de antemão para o fato de que a vitória militar dos rebeldes não levaria a nenhuma conquista democrática ou social, muito pelo contrário.
Quando esse prognóstico se demonstrasse acertado, isso iria aumentar significativamente a autoridade dos revolucionários. Apesar dos seus graves erros em não tomar o lado militar do regime líbio na guerra contra a OTAN e em confundir os rebeldes como parte de um “levante de massas” legítimo, a LER-QI estava correta na época ao expor aqueles oportunistas que consideraram a vitória imperialista uma “tremenda vitória revolucionária”. Os trabalhadores líbios iriam querer entender porque agora ela está reivindicando a “possibilidade de alianças tático-militares” com os rebeldes que os tem massacrado desde que chegaram ao poder.
NOTAS
[1] Para nossas diferenças com a SL e sua recente capitulação ao imperialismo norte-americano, conferir A Liga Espartaquista Apoia as Tropas Americanas no Haiti, de 15 de fevereiro de 2010.
[2]Conferir PSTU, Fração Trotskista e a defesa da Líbia contra o Imperialismo, de novembro de 2011.
[3] Cabe ressaltar que, em dois artigos mais recentes, escritos após termos preparado a versão inicial desta polêmica, a LER-QI buscou se esquivar dessa posição reafirmando abstratamente a necessidade de defender as nações oprimidas no caso de ataques imperialistas. Está claro que sua falta de firmeza na caracterização do conflito líbio e sua posição dúbia – de não ter tomado o lado militar de uma nação que foi brutalmente atacada por várias forças imperialistas e que teve reforçada as “duplas correntes” que oprimem seu povo – tem gerado algum mal estar interno.
Nesses artigos mais recentes, a LER-QI tenta recuperar certo ar ortodoxo e fala ostensivamente em defender as nações oprimidas e também em combater os imperialistas e seus aliados “rebeldes” na Líbia, mas mantém toda a nebulosidade ao falar da estratégia de derrotar Kadafi sem deixar claro que, frente à investida da OTAN, havia se tornado uma tarefa revolucionária defender a vitória militar de suas tropas, que apresentaram resistência ao ataque imperialista.
Conferir Os marxistas frente à guerra civil e o caso sírio e As guerras de nossa época e a política dos revolucionários, ambos de dezembro de 2013. Disponíveis em:
http://www.ler-qi.org/Os-marxistas-frente-a-guerra-civil-e-o-caso-sirio
http://www.ler-qi.org/As-guerras-de-nossa-epoca-e-a-politica-dos-revolucionarios
[4] Para o leitor não familiarizado com a tradição morenista, recomendamos a leitura de nossa polêmica com a CST (PSOL) sobre a Síria, Movimento dirigido pela oposição burguesa ou “revolução democrática”?
Também nossa polêmica com a FT, Fração Trotskista (LER-QI) e sua ruptura incompleta com o morenismo.
[5] Para mais sobre as posições do Reagrupamento Revolucionário sobre a guerra civil que se desenrola na Síria e a ameaça imperialista, conferir “O Conflito Sírio e as Tarefas dos Revolucionários” e “Acerca dos recentes eventos na Síria”,
[6] Na ocasião, nós do Reagrupamento Revolucionário publicamos a nota “Derrota para os Trabalhadores na Líbia. Combater o Governo do Conselho Nacional e o Imperialismo!”