Um de nossos militantes visitou Portugal em setembro e produziu um relato político acerca da crise pela qual o país tem passado e a atual situação na esquerda. Compartilhamos a seguir uma versão de tal relato adaptada para o público. Marcio Torres, setembro de 2014.
Portugal foi um dos países europeus mais afetados durante os primeiros anos da atual crise do sistema capitalista. No primeiro momento da crise, o governo colocou praticamente todos os seus recursos a serviço de salvar os grandes bancos privados, o que fez com que o Estado adquirisse uma enorme dívida pública, transferindo para os banqueiros dinheiro extraído (principalmente) da classe trabalhadora, através dos impostos. Agora, enquanto a burguesia está indo muito bem, os trabalhadores enfrentam uma série de ataques ao seu padrão de vida, conforme o governo tenta quitar sua dívida cortando o orçamento de serviços públicos como educação e saúde, demitindo funcionários, alterando as políticas previdenciárias (redução do valor das pensões e aumento do tempo até a aposentadoria) etc. Em síntese, as massas portuguesas passam atualmente pelo segundo ciclo da socialização do prejuízo da burguesia, ao passo que alguns grandes capitalistas foram salvos pelo Estado que eles comandam e utilizaram seu dinheiro para comprar os ativos daqueles que faliram (aumentado assim ainda mais a concentração e centralização de capitais que originalmente levou à crise). Tudo isso é o bem conhecido “pacote de austeridade” imposto pela chamada “Troika” (o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o FMI).
Um dos principais reflexos da crise sobre a vida dos trabalhadores é a atual insuficiência de seus salários. Com um salário-mínimo de 485 Euros (do qual dependem 15,2% da população, de acordo com um documento recente do Ministério da Economia), os portugueses enfrentam uma alta de preços dos bens manufaturados (muitos dos quais importados dos grandes centros imperialistas) e até mesmo da comida. Em Lisboa, por exemplo, é difícil encontrar uma boa refeição por menos do que 5 Euros, o que torna comer na rua algo verdadeiramente proibitivo para o cidadão comum, já que ao longo de um mês consumiria mais da metade de um salário-mínimo (ou 280 Euros). Isso obviamente se reverte em uma intensificação da escravidão doméstica à qual muitas mulheres estão frequentemente submetidas.
Outros reflexos da crise podem ser facilmente vistos ao se ler qualquer jornal. Com o recente início do ano letivo, o tópico principal de todos os jornais nas últimas semanas foi a crise do sistema educacional. A edição de 9 de setembro do Metro anunciou uma enorme migração em massa de estudantes das escolas privadas para as públicas, devido à incapacidade dos pais de bancarem as mensalidades. E, apesar da média de 10 alunos por professor alegada pelos órgãos oficiais, a Federação Nacional de Educadores (FNE) afirma que esse dado é falso e que os professores no sistema público de ensino tem se deparado com uma sobrecarga de trabalho (comparada com os padrões anteriores), agravada ainda pelo fato dos professores terem que lidar com uma série de tarefas burocráticas que consomem uma parte razoável do seu tempo e que não possuem relação direta com seu trabalho dentro das salas de aula.
Obviamente, a deterioração das condições de trabalho não é um fenômeno que afeta apenas professores e educadores. Para citar mais um exemplo, muitas empresas privadas tem posto estagiários para cumprirem funções de funcionários plenos – o que é muito lucrativo para os patrões, uma vez que as bolsas desses estagiários são pagas pelo governo e eles não tem os mais básicos dos direitos trabalhistas. Caso questionem a situação, obviamente perderão seu emprego, o que é uma perspectiva tenebrosa para uma geração que tem se definido enquanto “precariada” a partir de diferentes movimentos de desempregados.
Outro tópico quente durante a semana em que estive no país foi a situação do “Novo Banco”. Ele foi criado como uma empresa estatal, após um dos maiores grupos financeiros portugueses, o Grupo Espírito Santo e seu banco, terem quebrado e o Estado ter comprado seus ativos. Após ter usado o dinheiro dos impostos extraídos da classe trabalhadora para salvar os proprietários do Grupo Espírito Santo, o governo agora discute a privatização do Novo Banco. Isso significa que, depois do governo ter limpado a bagunça dos executivos sedentos por lucros e de ter aumentado sua dívida pública ao fazê-lo, banco agora seria novamente posto sob controle desses mesmos parasitas – e muito provavelmente através de um preço baixo.
Todos esses problemas atrelados à crise vem se prolongando desde cerca 2009. Os recentes levantes políticos que tomaram o país nos últimos anos, respondendo a essa situação com massivos protestos de rua e várias greves, ainda ecoam nas ruas de Lisboa. Pode-se facilmente encontrar stencils com palavras de ordem radicais pelos muros da cidade, bem como placas de diferentes grupos políticos, que são bastante presentes na paisagem urbana.
O PC Português (PCP), outrora stalinista e agora abertamente reformista, recentemente pichou stencils nas entradas das principais estações de metrô, exigindo “Fim ao massacre na Palestina!”. Muitas de suas placas podem ser vistas em diferentes bairros, anunciando uma grande festa, realizada no início do mês pelo seu braço editorial, o Avante, que reuniu vários artistas progressistas. O Bloco de Esquerda – bem menor, fundado em 2009 como um partido multi-tendências ao estilo do NPA francês, através da dissolução da seção portuguesa do Secretariado Unificado (cuja seção brasileira é a Insurgência/PSOL) – periodicamente realiza distribuições massivas de seus boletins em alguns pontos de ônibus e estações de metrô mais centrais. Os números recentes desses boletins são principalmente dedicados a debater os efeitos em curso das políticas de austeridade que foram impostas pela União Europeia, e que foram alegremente aceitas pelos políticos portugueses mais conservadores. Também é fácil ver placas do pequeno MAS (Movimento Alternativa Socialista) – a seção portuguesa da LIT-CI (organização internacional do PSTU brasileiro), que recentemente rompeu com o Bloco de Esquerda – muitos dos quais dedicados à campanha do candidato que o grupo lançou nas recentes Eleições Europeias, sob o slogan “Abaixo o Euro”. Outro grupo bastante presente nas ruas de Lisboa, através de uma variedade de placas contra o Euro e também anunciando um “comício operário” que ocorreu em meados de setembro, é o maoísta PCTP (Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses), que tem murais elaborados pintados pelos muros da cidade.
Apesar da variedade de grupos de esquerda, o Partido Socialista foi o que mais cresceu devido à insatisfação popular com as políticas de austeridade. É fácil ver parlamentares do PS nos jornais televisivos e participando de programas de debates, confrontando com certa retórica radical os ministros de governo do CDS-PP e do PSD. Seu tom “radical”, entretanto, é de fato apenas retórica. O PS é um partido com certa influência de massas, mas cujo programa é burguês, e que opera dentro dos limites podres do capitalismo, não estando interessado em apresentar uma alternativa proletária aos pacotes de austeridade impostos pela UE.
Por outro lado, nenhum dos outros grupos mencionados apresenta uma verdadeira solução para os problemas do proletariado. O PCP, apesar de muito grande, é historicamente um grupo de colaboração de classe, que carrega várias traições em suas costas e que presidiu os vários governos provisórios que se seguiram à queda da ditadura nos anos 1970, governando juntamente com a burguesia. Seus enormes outdoors, distribuídos por Lisboa, o apresentam orgulhosamente como um partido “patriótico” (ver foto abaixo), tentando capitalizar a insatisfação com a UE da maneira mais fácil possível.
Os maoístas (cujo líder histórico e fundador deixou o grupo na década de 80, alegando que não havia mais sentido partidos e sindicatos e que a esquerda era “merda pura”, e ainda assim é convidado para reuniões do partido e atividades públicas), apesar da sua suposta ortodoxia revolucionária, defendem a herança podre do stalinismo, que nunca deve ser perdoado por trair vários processos revolucionários com as suas Frentes Populares traiçoeiras. Seguindo o manual de colaboração de classes maoísta, exigem como solução para a crise um “governo democrático e patriótico”, centrado no slogan pelo “retorno do Escudo” (moeda de Portugal antes do Euro).
Entre os (poucos) grupos que reivindicam a independência de classe, o Bloco de Esquerda é o único com mais visibilidade no momento. Mas suas políticas são bastante recuadas, ainda mais agora que as tendências mais radicais o deixaram (a morenista “Ruptura/FER” – agora denominada MAS – e o pequeno “Socialismo Revolucionário”, associado ao CWI de Peter Taaffe), deixando a maioria ligada ao Secretariado Unificado sem oposição. É importante notar que esta maioria, originada no mandelista PSR, não é mais organizada como uma tendência – agora aqueles que querem se manter associados ao SU tem que se filiar individualmente.
Embora tenha uma presença no movimento sindical e em outros setores mais amplos do movimento social, o BE é muito focado na política parlamentar. Em um boletim de junho, uma “Carta para a esquerda”, assinado pelos dois coordenadores nacionais, expressa uma grande decepção com os resultados obtidos pelos grupos de esquerda nas últimas Eleições Europeias, dando-lhe um peso completamente desproporcional em comparação com a importância que as massas em geral deram a ele (expresso em uma abstenção de cerca de 60%). Seu cretinismo parlamentar é tão profundo que ele nem sequer levantar mais algumas das demandas históricas mais elementares da esquerda radical. Em seu boletim mais recente (setembro/outubro), em vez de defender o não pagamento da dívida internacional portuguesa (um instrumento de dependência imposta por capitais imperialistas), o BE exige apenas uma “reestruturação imediata da dívida” (ou seja, que se certifique que Portugal pague a credores internacionais apenas uma taxa “justa”). Além disso, frente ao baixo salário mínimo, em um recente artigo em seu site eles propõem um mero aumento de 60 euros, em vez de apresentar uma luta por um salário mínimo vital, cujo aumento deva ser automaticamente atrelado ao aumento dos preços. Além disso, em alguns de seus cartazes espalhados por Lisboa o BE exige “Fora com o governo – respeitar a Constituição”. Pode-se perguntar se aqueles que desrespeitam as leis antioperárias e antiprotesto também devem ser chamados a “respeitar” a institucionalidade burguesa representada pela Constituição.
Afirmando representar “uma nova esquerda” contra a insuficiência da política desses grupos, o morenista MAS rompeu em 2012 com o BE. Mas de fato não tem nada de “novo”, uma vez que antes de entrar para o BE como a tendência “Ruptura/FER”, ele já existia havia um bom tempo. Na década de 1970, enquanto PRT, participou em protestos convocados pelo PS (com suprote da CIA), que se opunham pela direita aos governos provisórios do PCP/MFA – posição que rapidamente trocaram por uma caracterização do oficialista MFA (Movimento das Forças Armadas) como uma formação protossoviética e do governo como “Kerenskista” (de acordo com a terminologia revisionista de Moreno e sua “revolução democrática”) (ver La careta de izquierda de Moreno, em La Verdad Sobre Moreno, da então revolucionária Liga Espartaquista). Eles também já haviam antes composto um partido unitário com os mandelistas, dissolvendo-se em meados dos anos 70 para formar o PSR. Sua ruptura com o BE foi pela direita. Confirmando que eles realmente não representam nada de novo, ao invés dessa ruptura ter sido um afastamento à esquerda em relação ao cretinismo parlamentar sustentado pela maioria do Secretariado Unificado dentro do BE, o motivo da separação de 2012 foi que essa maioria se recusou a defender um governo conjunto com o reformista e orgulhosamente “patriótico” PCP! (veja a declaração do Comitê Executivo do MAS). O que podemos dizer destes “trotskistas”, para quem uma aliança eleitoral com reformistas ex-stalinistas é algo tão central e que, inclusive, propõem um governo conjunto com eles!? Além disso, de acordo com o pequeno grupo do CWI em Portugal, a recente campanha do MAS durante as Eleições Europeias foi totalmente centrada no lema “O Euro afunda o país” (mais “prisão para quem roubou e individou o país”, “fim dos privilégios dos políticos” e “salário mínimo de 600 Euros já”), sem fazer menção a capitalismo / socialismo – o que de fato se reflete nos cartazes de rua do grupo (veja a polêmica do CWI).
Algo digno de nota é a ausência considerável de fortes movimentos de jovens entre a esquerda portuguesa – com a importante exceção da cidade de Coimbra, em que a vida em geral está extremamente ligada à Universidade de Coimbra e, portanto, tem uma militância juvenil um tanto forte, relacionada com as causas dos estudantes. Essa ausência é compreensível, considerando-se que em 2013 o órgão governamental “Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida” afirmou que Portugal é sexto país com a população mais velha do mundo, sendo 42 a idade média de seus cidadãos. Além disso, desde o começo da atual crise muitos jovens deixaram o país em busca de melhores oportunidades de trabalho. A combatividade na esquerda é geralmente associada a uma presença forte de jovens entre suas fileiras – tanto que Lenin uma vez disse em tom jocoso que “todo revolucionário deveria ser fuzilado depois de passar dos 35 anos”. Portanto, este é certamente um fator (dentre outros) por trás da falta de combatividade na esquerda portuguesa que nos referimos acima.
Apesar da profunda crise pela qual o país está atravessando, a situação política não é o que deveria ser em termos de combatividade e lutas, já que os protestos em massa e as ondas de greves parecem ter refluído consideravelmente – e a esquerda local certamente tem sua parcela de responsabilidade nisso, por não estar à altura das tarefas políticas impostas pela crise. Isso claramente reforça a falta de confiança que classe trabalhadora tem em grupos e partidos que se reivindicam socialistas. Para encerrar este breve relato com uma anedota, na manhã no dia 11 de setembro os metroviários realizaram uma paralisação. Enquanto cerca de 4 mil trabalhadores (de acordo com o Diário Nacional) marcharam para a Assembleia da República (o Congresso português) exigindo um aumento salarial de 3%, muitos simplesmente se reuniram em frente das estações fechadas, à espera das 11h, quando os funcionários do metrô prometeram reabrir, permitindo que a rotina normal seguisse. Na noite do mesmo dia, no entanto, uma enorme multidão se reuniu no centro histórico de Lisboa para a 5ª edição da Vogue Fashion Night Out, um evento dedicado a estimular o consumo em lojas de rua, que é um “luxo” ao qual cada vez menos trabalhadores portugueses podem se dar. Esta cena absurdamente contraditória só reforça a necessidade urgente de lutar pela construção de um partido revolucionário, capaz de apresentar uma solução real para a crise do capitalismo e contra a “solução” de austeridade da Troika.