Declaração de posição adotada pelo I Congresso Nacional do Reagrupamento Revolucionário, janeiro de 2019.
No último dia 10 de janeiro Nicolás Maduro assumiu seu segundo mandato como presidente da Venezuela, em meio a um crescente fechamento do regime, que cada vez mais passa de um bonapartismo semidemocrático a uma ditadura pura e simples, pesadamente apoiada nas forças militares. Isso ocorre em contexto de considerável perda de apoio popular que se seguiu à morte de Chávez e de pesada depressão econômica, que chegou a envolver uma inflação de mais de 1000% ao ano no ano passado, levando a uma pesadíssima degradação das condições de vida da população, em especial da classe trabalhadora. Conforme analisamos em artigo de julho-agosto de 2017 [1], a perda de popularidade do chavismo levou à vitória da oposição de direita nas últimas eleições legislativas de 2016, e na jornada de manifestações populares lideradas por tal setor ao longo do ano passado. Já o crescente fechamento do regime pode ser visto na dissolução de fato do legislativo, substituído por uma constituinte cujas regras eleitorais violaram o sufrágio universal para favorecer uma maioria do PSUV, prisões de lideranças e manifestantes de oposição, perseguição a membros do judiciário, incluindo aí chavistas críticos a Maduro, dentre outros elementos.
Apesar de toda a demagogia “socialista” do PSUV, ele nunca passou de um governo de conciliação de classes, que usava o dinheiro do petróleo para suprir todas as necessidades mais básicas de vida dos trabalhadores, algo raro na América Latina, assim como a necessidade da burguesia de manter uma taxa de lucro competitiva. Buscavam com isso conciliar os interesses materiais mais imediatos das duas classes fundamentais da sociedade em prol de uma “boliburguesia”, uma suposta burguesia “nacionalista” e “responsável”. A queda do preço do petróleo e a crise econômica revelaram a futilidade desse projeto: sem a condição de conseguir fundos do comércio internacional, todo o projeto “Bolivariano” ficou sem qualquer base, e de pairar no ar passou a cair em uma velocidade cada vez maior, em curso de impacto com a realidade venezuelana. Esses fatores reduziram o “Socialismo Bolivariano” à sua expressão mais pura: o governo bonapartista da burocracia do PSUV, com um estrito controle sobre os movimentos operários e sociais para evitar a luta autônoma dos trabalhadores, e sobre o aparato burocrático-militar do Estado para se guardar das burguesias nacional e imperialista, cada vez mais hostis; Uma expressão cada vez mais autocrática e interesseira de uma conciliação de classes que perdeu seu sentido em um capitalismo em crise. Sem conseguir atender aos interesses da burguesia ou de continuar enganando os trabalhadores, o regime repele cada vez mais ambas as classes que tentava conciliar, ao ser incapaz de atender aos interesses materiais de nenhuma delas. O governo sobrevive puramente graças ao capital social acumulado nos últimos anos, apostando que o fim da crise leve a um período renovado de bonança apoiada sobre a venda do petróleo.
Com a capitulação da esquerda socialista ao “socialismo bolivariano”, não existe uma tradição de oposição de esquerda consistente ao governo de Maduro. Como resultado, os trabalhadores que não estão apoiando Maduro na esperança de que os tempos de Chávez voltem, ou que não caíram no apoliticismo, na desesperança ou que buscaram emigrar, tendem a encontrar uma expressão de sua insatisfação no apoio á oposição de direita, ou seja, a oposição dos setores burgueses ligados ao Imperialismo americano, esperando que a vitória da mesma mude a situação para melhor.
Nesse contexto de crise e perda de confiança no governo, a direita reacionária e o imperialismo dos EUA tem se sentido cada vez mais à vontade para planejar a derrubada de Maduro, buscando liquidar as conquistas sociais dos trabalhadores venezuelanos que estão cristalizadas na configuração de forças atuais na sociedade venezuelana, tentando manipular a insatisfação popular para dar uma fachada de legitimidade a suas intenções golpistas (em essência foi disso que se tratou a jornada de protestos de rua do ano passado), bem como articulado abertamente uma intervenção militar estrangeira. Em agosto do ano passado, Trump consultou sua cúpula de assessores sobre o cenário de uma invasão militar para derrubar Maduro [2] e chegou a declarar a jornalista que pode considerar uma “opção militar contra Maduro” [3]. Em setembro, veio à tona o fato de que membros da cúpula do governo Trump mantiveram reuniões com oficiais das forças armadas venezuelanas interessados em um golpe [4]. Apesar das negações públicas por parte do governo Trump de que planeja invadir a Venezuela e de parecer haver de fato indisposição de seus assessores-chave para uma empreitada dessas, obviamente a possibilidade não está nem um pouco descartada. Especialmente se são levadas em conta as declarações recentes de um assessor da cúpula do governo colombiano de Ivan Duque, extremamente subserviente aos EUA, de que “Se Bolsonaro ajudar a derrubar Maduro com uma intervenção militar, terá o apoio da Colômbia” (outubro de 2018) [5], bem como a histeria xenofóbica e macarthista de Bolsonaro contra o inexistente “comunismo” venezuelano.
Maduro tem respondido a essas ameaças buscando fortalecer seu aparato militar: organizou ao longo do ano passo uma “milícia civil” que alega ter chegado a mais de 1,6 milhão de membros [6] e tem se aproximado da Rússia e da China em busca de armamentos, equipamentos e treinamento militar para as forças armadas venezuelanas [7], existindo inclusive a possibilidade de instalar uma base militar russa no país [8]. Obviamente há uma série de “desmentidos” de ambas as partes a todo o momento, mas os preparativos para uma possível invasão militar à Venezuela e para resistir a ela são claros.
Frente a essas crescentes tensões, é tarefa de qualquer socialista se mobilizar para repelir as ameaças de guerra de Trump, Duque e Bolsonaro. Se o governo de Maduro não tem nem vontade, quanto mais capacidade, de atender aos interesses dos trabalhadores, uma invasão militar à Venezuela liderada ou articulada pelos EUA significaria o estabelecimento de um governo títere do imperialismo no país, que teria como tarefa entregar os recursos naturais aos capitais imperialistas e aumentar o nível de exploração do proletariado venezuelano em benefício de tal setor, piorando ainda mais a situação já crítica dos trabalhadores. (basta ver o que ocorreu na Líbia após a intervenção imperialista de 2011 [9])
Isso significa responder a qualquer sinal de preparativos dos EUA, Colômbia e Brasil para uma invasão com manifestações de rua e ações de boicote, em especial greves e ocupações de órgãos públicos estratégicos, além de fazer ampla agitação entre a sociedade e a classe trabalhadora sobre o que de fato significaria para o povo venezuelano e o restante da América Latina uma vitoriosa intervenção imperialista: perda de soberania nacional e redobrada exploração. É isso que trouxeram as invasões imperialistas no Afeganistão, Iraque, Líbia e outros países. A suposta defesa da “democracia” não passa de uma desculpa esfarrapada para as grandes potências abocanharem mais recursos naturais e mão de obra para que seus barões capitalistas sigam bilionários.
Como visto, de fato há necessidade de uma luta por democracia hoje na Venezuela, mas é o povo venezuelano que deve decidir os rumos de seu país. No caso do governo resistir a essa possível invasão, é uma tarefa dos socialistas tomarem seu lado militar, visando defender não ao Maduro, mas a organização e conquistas das massas que são limitadas, mas importantes, e que se expressam na configuração de forças atual apesar das intenções do próprio Maduro. É uma regra geral da luta de classes que aquele que não consegue defender suas conquistas hoje será incapaz de lutar por mais concessões, muito menos lutar pelo poder, amanhã. Face à oposição de direita que hoje se opõe a Maduro, e ao recrudescimento do regime venezuelano, a única saída é a classe trabalhadora liderar lutas em defesa dos seus direitos democráticos, das suas condições de vida e, principalmente, em prol de um autêntico governo dos trabalhadores venezuelanos, não um governo onde o PSUV engane os trabalhadores em prol de uma “boliburguesia”, mas criando um governo revolucionário onde conselhos proletários democraticamente organizados e eleitos decidam coletivamente o que fazer com as vastas riquezas que produzem, no processo da construção do autêntico socialismo, pelos e para os trabalhadores.
Para isso é urgente a construção de um partido socialista revolucionário na Venezuela, capaz de dar uma expressão classista e socialista à insatisfação atual contra Maduro, bem como que os socialistas parem de espalhar ilusões de que seu governo seja algo progressista, “anti-imperialista” ou até socialista: independente da demagogia de Maduro e do PSUV, trata-se de um governo burguês, assentado sobre um Estado capitalista, que busca balancear as lutas das massas por seus próprios interesses com as pressões imperialistas enquanto se mantém no poder. É importante ter em mente que hoje o PSUV precisa dos trabalhadores venezuelanos do seu lado para repelir o imperialismo. Porém, se conseguir solidificar seu governo na Venezuela, os “Bolivarianos” vão inevitavelmente se voltar contra os trabalhadores que ainda os apoiam, para solidificar novas alianças com a burguesia e eliminar o perigo que constitui a classe trabalhadora ao seu próprio governo. E por isso a única solução para a crise venezuelana é lutar por um projeto de independência de classe, que não esteja atado a um dos campos burgueses que divide a sociedade venezuelana, mas que consiga manobrar nessa luta tomando posições que sejam consequentes com uma luta estratégica para reorganizar os trabalhadores venezuelanos sob uma bandeira autenticamente socialista, do autogoverno dos trabalhadores.
Repelir as ameaças de guerra de Trump, Duque e Bolsonaro dirigidas contra o povo venezuelano! Nenhuma confiança em Maduro: que os trabalhadores lutem pela construção do verdadeiro socialismo através de um governo revolucionário de conselhos proletários!
ADENDO: No dia 23 de janeiro, após já termos finalizado essa declaração, o presidente do legislativo (órgão “anulado” pela Constituinte, mas ainda funcionando) se declarou o legítimo presidente da Venezuela, com apoio do EUA e pronto reconhecimento pelo Brasil. Alguns dias atrás, já havia ocorrido uma reunião de oposicionistas burgueses com o Itamaraty, com presença de representantes dos EUA e do “Grupo de Lima” (articulação de governos latino-americanos contra o governo Maduro). Trata-se de uma manobra que prepara terreno para um golpe da oposição burguesa contra Maduro, com apoio dos grandes capitais estrangeiros e imperialistas. Como já havíamos declarado em nosso artigo de 2017, os socialistas não devem dar nenhum apoio à essa oposição e buscar, ao invés, construir uma via classista para superar o chavismo. Apesar de Maduro tampouco merecer o apoio da classe trabalhadora, diante de um golpe que aprofundaria a dominação imperialista sobre os trabalhadores venezuelanos, é uma tarefa da classe trabalhadora barrar uma empreitada dessas através de manifestações e greves, e daqueles fora da Venezuela de realizarem manifestações internacionalistas (mas sem apoio político a Maduro).
Notas:
[1] https://rr4i.milharal.org/2017/08/08/venezuela-em-chamas/
[2] https://edition.cnn.com/2018/07/04/politics/donald-trump-venezuela-invasion/index.html
[3] https://www.reuters.com/video/2017/08/11/trump-threatens-venezuela-with-military?videoId=372305336
[4] https://www.nytimes.com/2018/09/08/world/americas/donald-trump-venezuela-military-coup.html
[5] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/10/colombia-sugere-alianca-com-bolsonaro-para-derrubar-maduro.shtml
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/12/maduro-diz-que-milicia-civil-da-venezuela-chega-a-16-milhao-de-membros.shtml
[7] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/10/internacional/1547150403_382340.html
[8] https://www.abc.es/internacional/abci-cabello-sobre-instalacion-base-rusa-venezuela-ojala-no-tres-cuatro-diez-201812191404_noticia.html
[9] https://archive.org/download/LivretoLenin/01_L%C3%ADbia.pdf