English
Uma análise do caráter de classe do Estado, da economia e das lutas dos trabalhadores
Icaro Kaleb, abril de 2020.
A Segunda Revolução Chinesa (1925-27) terminou com um massacre de milhares de trabalhadores conscientes e militantes do Partido Comunista Chinês, perpetrado pelo regime do partido nacionalista Kuomintang (KMT) nos grandes centros urbanos, em abril de 1927. Mas, dialeticamente, teve sua continuidade no deslocamento de conflitos para as zonas rurais do sul. Conduzindo uma luta militar por sobrevivência nessa região, o PCC fundou a República Soviética da China em 1931. Essa zona territorial descontínua ficou sob controle militar do PCC, que aboliu a propriedade privada, e foi duramente atacada por tropas do KMT. Diante de tal repressão, as forças dos stalinistas chineses realizaram a “Longa Marcha” até o extremo norte da China, onde se estabeleceram em Xianxim, até um acordo de trégua firmado em 1936, para iniciar uma luta conjunta contra a ocupação japonesa (o qual incluiu a dissolução formal da então já diminuta “República”). Mas a trégua, aceita pelo PCC na forma de uma “Frente Antijaponesa”, foi rompida em 1945, em contexto de fortalecimento militar do PCC no pós-guerra e descontentamento nas grandes cidades com o regime do KMT.
Entre 1945-49, aconteceu a Terceira Revolução Chinesa, um conjunto de enfrentamentos de massas de milhões de camponeses e trabalhadores contra o regime ditatorial do Kuomintang, que resultou na vitória do PCC e levou à derrota política da burguesia nativa e imperialista, culminando na construção de um regime cuja espinha dorsal – as forças armadas – era o Exército de Liberação Popular dirigido pelo PCC. Apesar do desejo original de desenvolver um “capitalismo soberano” no país (a chamada “Nova Democracia”), o PCC se viu forçado a expropriar economicamente a burguesia entre 1949-53, diante dos riscos de sabotagem e motins dos capitalistas no contexto do apoio chinês ao Norte na Guerra da Coreia, e a relutância da burguesia em aceitar a perspectiva da “Nova Democracia”. A isso, pode-se acrescentar também a enorme pressão do proletariado urbano em favor da expropriação das indústrias.
Assim, “aos trancos e barrancos”, foi estabelecida uma sociedade de transição na China, contra os planos originais de colaboração de classes e etapismo da liderança do PCC. Em lugar do velho Estado burguês, foi erguido um regime político no qual o PCC exercia firme controle burocrático, ficando o proletariado em situação de exclusão das esferas de poder – em outras palavras, um regime stalinista acima de formas de propriedade socializadas, ou um Estado operário burocraticamente deformado. Apesar de seu auxílio ao Norte na Guerra da Coreia, o novo regime chinês foi fortemente marcado pelo isolacionismo nacional típico da burocracia stalinista, temerosa da expansão internacional da revolução, por “atiçar” as potências imperialistas e gerar a possibilidade de revoluções assentadas em formas de democracia proletária, que servissem de exemplo para os trabalhadores nativos, mantidos sob tacão burocrático.
Em 1978, com a mudança na liderança do PCC e a ascensão de Deng Xiaoping após uma série de conflitos internos e também armados com a liderança maoísta, iniciou-se um curso de ainda maior adaptação ao imperialismo internacional. A China começou a realizar aberturas para o investimento capitalista estrangeiro, consolidadas depois na forma de “Zonas Econômicas Especiais”, em que empresas capitalistas podiam se instalar e explorar trabalhadores, ainda que com uma remessa de lucros limitada por pesados impostos.
No fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, com a intenção da China de ser aceita na Organização Mundial do Comércio e sua necessária adaptação a vários critérios de uma “economia de mercado” (embora ainda esteja longe do que é exigido pelos imperialistas), esse curso se aprofundou significativamente, com a privatização de um grande número de empresas estatais. Hoje, existe um mercado de trabalho e de mercadorias na China, que, entretanto, sofre restrições pelo papel ímpar desempenhado pelo Estado, não apenas por seu grau de intervenção e controle, mas, sobretudo, pelo volume que ainda retém da mão de obra, das indústrias e dos recursos bancários, e pelo controle do poder político nas mãos da burocracia do Partido Comunista.
O acúmulo do marxismo acerca da dominação de classe por meio do Estado leva à conclusão que não há mudança qualitativa das formas de propriedade capitalistas para as socialistas sem mudança no aparelho de Estado. Em outras palavras, liquidação do capitalismo enquanto conjunto de relações de propriedade e produção demanda a destruição do Estado burguês. O avanço para relações econômico-sociais socialistas depende do controle consciente e ativo da classe trabalhadora sobre os meios de produção mais avançados, que previamente já tenham sido expropriados da burguesia. Ao contrário da burguesia, a classe trabalhadora não é uma classe proprietária cujas relações de produção podem penetrar lentamente no seio da sociedade sem que ela tenha o poder de Estado.
A burguesia, por outro lado, é capaz de instalar-se economicamente e exercer influência numa sociedade em que ela não possui o poder político. Assim foi sob as monarquias feudais e assim pode ocorrer, de forma inversa e inesperada, em sociedades em que os trabalhadores já haviam expulsado os capitalistas do poder político, mas ficaram isoladas e cercadas pelo sistema imperialista. No Manifesto do Partido Comunista, Marx afirma que a característica marcante da época moderna era que a burguesia havia conquistado “por fim, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, a dominação política exclusiva no moderno Estado representativo”. A burguesia não se contenta com os avanços econômicos que tem conseguido há algumas décadas na China, por concessão da burocracia; ela não pode descansar enquanto não retomar o controle exclusivo do Estado, que atualmente não lhe serve, e a predominância do mercado para as suas empresas.
Não identificamos uma contrarrevolução triunfante na China, que tenha destruído o Estado operário burocraticamente deformado surgido em 1949 e erguido um Estado burguês em seu lugar. As “reformas de mercado” de Deng Xiaoping não significaram a liquidação das conquistas sociais da revolução, nem do Estado por ela criado. Tais “reformas”, ainda vigentes hoje na forma do mal chamado “socialismo com características chinesas”, não significaram a restauração do pleno domínio econômico e político da burguesia. Todavia, elas restauraram diversos aspectos do capitalismo, assim como criam desequilíbrios diversos, em especial desemprego, desigualdade social e crescimento na influência de setores burgueses, que fortalecem as tendências favoráveis à restauração capitalista.
Muitos setores da esquerda que acreditam que a China é uma ditadura da burguesia deixaram de enxerga-la como uma semicolônia, como faziam até a década de 1990, e passaram a vê-la como uma potência imperialista a partir de meados dos anos 2000. Isso se deveu a uma percepção do papel internacional crescente desempenhado pela China, assim como seu forte crescimento econômico, que a elevou ao posto de segunda potência mundial. Mas carece de uma explicação como uma nação se elevou de semicolonial a imperialista sem desbancar os atuais ocupantes do trono em um conflito de grandes proporções, e no período de poucos anos. A noção de uma restauração gradual do Estado burguês, sem um momento de mudança qualitativa (contrarrevolução) significa, conforme Trotsky já havia apontado, “passar o filme do reformismo ao contrário”, em seu artigo de 1933, “A natureza de classe do Estado Soviético”:
“Contra a afirmação de que o Estado operário já está praticamente liquidado ergue-se, em primeiro lugar, a importante posição metodológica do marxismo. A ditadura do proletariado se impôs através de uma transformação política e de uma guerra civil que durou três anos. Tanto a teoria da sociedade de classes quanto a experiência histórica atestam a impossibilidade da vitória do proletariado através de métodos pacíficos, ou seja, sem grandiosas batalhas de classe, travadas de armas nas mãos. Nesse caso, como se pode conceber uma contrarrevolução burguesa imperceptível, ‘gradual’? Pelo menos até agora, tanto as contrarrevoluções feudais como as burguesas nunca se deram ‘organicamente’; exigiram, inevitavelmente, a intervenção armada. Em última instância, as teorias reformistas — na medida em que o reformismo possa chegar à teoria — foram sempre baseadas na incapacidade de compreender que os antagonismos de classe são profundos e irreconciliáveis; daí a perspectiva de uma transformação pacífica do capitalismo em socialismo. A tese marxista relativa ao caráter catastrófico da transferência do poder das mãos de uma classe às de outra não se aplica somente às épocas revolucionárias, nas quais a história avança varrendo loucamente tudo, mas também às épocas contrarrevolucionárias, nas quais a sociedade retrocede. Quem afirma que o governo soviético foi mudando gradualmente de proletário para burguês limita-se, por assim dizer, a projetar de trás para frente o filme do reformismo.”
— A natureza de classe do Estado Soviético, 1 de outubro de 1933. Traduzido ao português pela Frente Comunista dos Trabalhadores.
Para o Reagrupamento Revolucionário, a China é um Estado operário burocraticamente deformado, apesar do giro à direita dado pela burocracia, principalmente nos últimos 25 anos. Esse giro significou não apenas abrir áreas da economia para a exploração de empresas capitalistas, mas, sobretudo, reduzir forçosamente a importância do setor industrial estatal, além de uma adaptação ideológica ao sistema capitalista. Porém, o papel vacilante cumprido pelo Estado em tal abertura, as características da economia chinesa e o estudo atento da história recente do país testemunham que não ocorreu uma contrarrevolução burguesa, momento qualitativo e sem retorno no processo de degeneração/restauração de um Estado operário atrasado, isolado e deformado.
Ao contrário dos países do antigo Bloco Soviético e Leste Europeu, onde contrarrevoluções triunfaram entre 1989 e 1991, a China e os outros Estados operários restantes (Coreia do Norte, Cuba, Vietnã e Laos) retêm diferenças significativas nas suas economias. Por exemplo: o quase total controle estatal do sistema bancário, usado significativamente para financiamento das indústrias estatais; o controle estatal dominante em todos os setores industriais estratégicos; a propriedade estatal da terra, apesar do seu usufruto privado em vários casos – que apontam o caráter incompleto e ainda instável da “restauração”.
Apesar de todas as concessões econômicas (e também políticas) à burguesia, apesar do crescimento das relações econômicas capitalistas, apesar dos vários círculos pró-capitalistas que surgiram na política chinesa, apesar da presença de elementos burgueses no próprio PCC, décadas após a Revolução Chinesa, ainda é o mesmo aparato estatal que Mao construiu que governa a China, um estrato governante composto por milhões de burocratas que extraem seus privilégios materiais diretamente do extenso setor nacionalizado da economia. É a eles que as forças armadas estão sujeitas; ainda são eles que determinam as políticas e leis do Estado chinês, apesar das grandes pressões sociais que os impelem a fazer concessões.
Ao mesmo tempo, os ataques contra o que o proletariado chinês considera serem seus direitos fundamentais causam reação generalizada. Entre numerosas greves e protestos, sem mencionar o surgimento de “grupos estudantis marxistas radicais”, a pressão e a oposição ao aparato burocrático estão constantemente acelerando e se desenvolvendo em formas mais definidas. A formação de partidos e movimentos defensores de uma nova revolução é apenas uma questão de tempo. A impressionante taxa e consistência do crescimento econômico é a única coisa que impede essas profundas contradições de explodirem numa luta de vida ou morte. Ou seja: mesmo que as contradições dentro da sociedade chinesa aumentem dia após dia, a questão da abolição final da propriedade nacionalizada e do Estado operário deformado ainda não foi resolvida pela história, está apenas colocada.
A contrarrevolução burguesa – a substituição do Estado operário por um órgão de interesse exclusivo do capital – realizaria a destruição dessas conquistas que ainda restam (deformadas pela burocracia). É significativo que muitos na esquerda que apontam o suposto caráter burguês do Estado chinês ainda consideram a restauração capitalista “incompleta” ou “em andamento” depois de tantos e tantos anos. Outros são forçados a reconhecer a permanência de inúmeros elementos econômicos no mínimo estranhos ao capitalismo. É curioso que tal restauração não está “ainda em andamento” na Rússia, na Ucrânia ou na Polônia, por exemplo. Para nós isso tem uma explicação: tal restauração ainda é parcial porque o Estado que governa a sociedade chinesa caminha em ziguezagues entre a burguesia e o proletariado, adaptando-se empiricamente à pressão dessas duas classes fundamentais, enquanto nos demais países, já triunfaram contrarrevoluções. Nas últimas décadas de avanço da burguesia sobre o proletariado em todo o mundo, a burocracia chinesa tendeu a adaptar-se muito mais ao imperialismo. Não estão completamente excluídos giros “à esquerda” dessa burocracia, que poderia se traduzir na reestatização de setores da economia, mas isso nada mudaria o seu caráter dual que, em longo prazo, fortalece as tendências de retorno ao sistema capitalista.
A extensão dos elementos de transição na economia chinesa
Em 2018, o Partido Comunista da China realizou uma cerimônia para celebrar os 40 anos de seu giro de abertura ao investimento privado. Nessa ocasião, o Presidente e líder do partido, Xi Jinping, frustrou os setores mais restauracionistas da burocracia e os capitalistas que tinham otimismo com um novo fluxo de privatizações e concessões econômicas. Embora sem ameaçar os capitalistas, Xi parece ter apontado que o PCC não pretende avançar em mais desregulação econômica e nem enfraquecer o papel de controle que o Partido exerce na sociedade e na economia. Eis um relato feito por jornalistas do The New York Times:
“Alguns economistas e investidores esperavam que Xi adotasse e aprimorasse o legado histórico de Deng como liberalizador econômico. Em vez disso, Xi usou o discurso para defender as políticas que ele havia elaborado nos últimos seis anos para tornar o Partido Comunista ainda mais poderoso, fortalecer o setor estatal da economia, enquanto permite que as empresas privadas cresçam, e deixar a marca da China nos assuntos internacionais.”…
“Resumindo o que ele descreveu como as lições das últimas quatro décadas da China, Xi disse: ‘Primeiro, a liderança do partido em todas as tarefas deve ser respeitada e a liderança do partido deve ser incessantemente fortalecida e melhorada’. Se alguém que assistisse ainda esperava que Xi tentaria moderar sua reputação de linha-dura e se revelaria um liberalizador político, ele usou essa reunião para enviar um enfático ‘não’. Ele afirmou que o caminho socialista, doutrina e políticas do partido nos últimos 40 anos foram ‘totalmente corretos’. ‘Ninguém está em posição de ditar ao povo chinês o que deve e o que não deve ser feito’, disse ele em aparente referência às demandas de Washington e de outras capitais de que a China desfaça algumas de suas políticas econômicas protecionistas (mesmo que os negociadores chineses silenciosamente ofereçam algumas concessões).”
“Dado o apoio da China à economia de mercado, os líderes chineses muitas vezes minimizam a parte do comunismo no Partido Comunista. Xi deixou claro o quão profundamente ele está comprometido com a ideologia – adaptada ‘com características chinesas’, conforme a frase. Em suas observações, ele exaltou os princípios marxistas leninistas e até citou Friedrich Engels para defender a promoção de novas formas de inovação no século XXI.”
“A mensagem de Xi foi de que o mergulho direto da China no capitalismo nos últimos 40 anos não foi um repúdio à ideologia fundadora do Partido Comunista, mas algo possível apenas por causa disso. Economistas e investidores criticaram Xi por dar o que consideram muita proteção aos conglomerados estatais. Na terça-feira, esses críticos provavelmente ficaram desapontados com a ausência de detalhes ou mudanças na retórica. Jack Ma, fundador multibilionário da Alibaba, a gigante do comércio eletrônico, estava entre os 100 chineses homenageados por Xi como ‘pioneiros’ da reforma. Mas, em seu discurso, Xi afirmou a dupla abordagem do partido: apoiar o setor estatal e incentivar empresários privados. E o apoio ao setor estatal veio em primeiro lugar.”
— Quatro conclusões do discurso de Xi Jinping em defesa do controle do Partido Comunista, The New York Times, 18 de dezembro de 2018.
A presença de elementos de mercado em uma economia de transição não é contra os princípios marxistas, já que pode ser necessário impulsionar os meios de produção usando capital privado numa indústria em desenvolvimento. Essa foi a essência da Nova Política Econômica (NEP) aplicada pelo Partido Bolchevique na URSS entre 1921-28. Lenin explicou da seguinte forma a NEP:
“A Nova Política Econômica significa substituir a requisição de alimentos pelo imposto; significa reverter ao capitalismo em uma extensão considerável – até que ponto não sabemos. Concessões a capitalistas estrangeiros (é verdade, apenas muito poucas foram aceitas, especialmente quando comparadas com o número que oferecemos) e arrendamentos de empresas a capitalistas privados definitivamente significam restaurar o capitalismo, e isso é parte integrante da Nova Política Econômica; pois a abolição do sistema de apropriação de alimentos excedentes significa permitir que os camponeses comercializem livremente seus excedentes de produtos agrícolas, o que sobrar depois que o imposto for coletado – e o imposto recebe apenas uma pequena parte desse produto. Os camponeses constituem uma grande parte da nossa população e de toda a nossa economia, e é por isso que o capitalismo deve crescer a partir desse solo de livre comércio.”
— A nova política econômica e as tarefas dos departamentos de educação política, 17 de outubro de 1921. Traduzido do inglês.
Em 1923, num relatório intitulado “Sobre a Indústria”, Leon Trotsky defendeu a abertura ao capital estrangeiro como forma de alavancar o desenvolvimento econômico:
“A experiência do ano passado confirmou o fato de que o processo de construção socialista do Estado sob a Nova Política Econômica é bastante compatível (dentro de certos limites de modo algum estreitos) com a participação ativa do capital privado – estrangeiro e doméstico na esfera da indústria. São necessárias medidas sistemáticas adicionais para atrair capital estrangeiro para a indústria de todas as formas cuja conveniência já se manifestou até agora: concessões, empresas mistas e aluguéis. Um estudo cuidadoso de quais domínios da indústria e quais empresas podem ser deixados para o capital estrangeiro e sob que princípios, com vantagem para o desenvolvimento econômico geral do país, são essenciais na formulação de planos futuros pelas nossas principais organizações econômicas.”
— Teses sobre a Indústria, abril de 1923. Traduzido do inglês.
Há algumas semelhanças entre o rumo traçado pela NEP soviética e a atual economia chinesa, assim como diferenças colossais em outros aspectos. Assim como a China faz hoje, a URSS buscou atrair capitais estrangeiros e permitiu a abertura de empresas privadas, formando também joint-ventures (empresas mistas) das estatais com esse capital. Isso fez com que, durante os anos da NEP, a União Soviética tivesse uma economia com muitos proprietários privados urbanos, além de um campo basicamente privado, onde o mercado, por meio de um capital comercial crescente, era intermediário das relações entre o campo e as cidades. A NEP sem dúvida impulsionou o crescimento soviético, mas nunca esteve livre de contradições.
Isso de forma alguma significou eliminar restrições a esse capital privado, ou que ele pudesse se desenvolver sem riscos de restauração do capitalismo. Trotsky defendia que a reconstrução econômica da Rússia, após praticamente sete anos seguidos de guerra, deveria estar sempre voltada, mesmo durante a NEP, para a construção de um setor estatal forte, que permitisse a transição gradual ao socialismo por meio do planejamento econômico, uma vez que as condições objetivas estivessem colocadas. Longe de ver nesse capital privado uma “união harmônica” com o setor estatal da economia, Trotsky via entre eles uma competição, na qual o Estado operário deveria sempre “virar a balança” a favor do desenvolvimento socialista enquanto fosse necessária a NEP. Lenin via na NEP uma necessidade de recuo durante um período histórico prolongado, enquanto não acontecessem revoluções vitoriosas em outros países. Trotsky tendeu a vê-la de forma bem mais crítica na segunda metade da década de 1920 (após a morte de Lenin), por ter gerado contradições perigosas nos preços dos itens básicos e nas relações entre o campo e a cidade, quando a indústria privada começou a crescer. Em seu discurso no Quarto Congresso da Internacional Comunista (1922), na sessão sobre a economia soviética, Trotsky já apontava para a existência desse conflito:
“Para onde a NEP está nos levando: em direção ao capitalismo ou em direção ao socialismo? Esta é, obviamente, a questão central. O mercado, o livre comércio de grãos, concorrência, arrendamentos, concessões – qual será o resultado disso tudo? Se você der um dedo ao diabo, não será necessário dar-lhe um braço e depois um ombro e, no final, todo o corpo também? Já estamos testemunhando um renascimento do capital privado no campo do comércio, especialmente ao longo dos canais entre a cidade e a vila. Pela segunda vez em nosso país, o capital dos comerciantes passa pelo estágio de acumulação capitalista primitiva, enquanto o Estado operário passa pelo período de acumulação socialista pela primeira vez. Assim que o capital dos comerciantes privados surge, ele procura inescapavelmente entrar na indústria também. O Estado está arrendando fábricas e indústrias para homens de negócios privados. A acumulação de capital privado agora continua, em consequência, não apenas no comércio, mas também na indústria. Não é provável que os senhores exploradores – os especuladores, os comerciantes, os arrendatários e as concessionárias – se tornem mais poderosos sob a proteção do Estado operário, ganhando o controle de um setor cada vez maior da economia nacional, drenando-se os elementos do socialismo por meio do mercado e, posteriormente, em um momento propício, ganhando também o controle do poder estatal? Pois sabemos bem que a economia constitui a base social, enquanto a política é sua superestrutura. Então, tudo isso não significa realmente que a NEP é uma transição para a restauração capitalista?”
“Ao responder abstratamente a uma pergunta colocada de maneira tão abstrata, é claro que ninguém pode negar que o perigo da restauração capitalista não está de forma alguma excluído, não mais do que, em geral, o perigo esteja excluído de uma derrota temporária no curso de qualquer luta. Quando lutamos contra Kolchak e Denikin apoiados pela Entente, corríamos o risco de sermos derrotados, como Kautsky esperava com benevolência um dia após o outro. Mas, considerando a possibilidade teórica de derrota, orientamos nossa política na prática pela vitória. Complementamos essa relação de forças com uma vontade firme e uma estratégia correta. E no final conquistamos. De novo, há guerra entre os mesmos inimigos: o Estado operário e o capitalismo. Mas desta vez as hostilidades ocorrem não na arena militar, mas no campo da economia. Enquanto na guerra civil houve um duelo de influência sobre os camponeses com o Exército Vermelho de um lado, e o Exército Branco de outro, então hoje a luta entre capital do Estado e capital privado é pelo mercado camponês. Em uma luta, é sempre necessário ter a estimativa mais completa e precisa possível das forças e recursos dispostos pelo inimigo e à nossa disposição.”
— A nova política econômica da Rússia soviética e as perspectivas da revolução mundial, 14 de novembro de 1922. Traduzido do inglês.
No caso da China, é bastante visível como a opção pela introdução de mecanismos de mercado e permissão para atuação de empresas capitalistas, principalmente quando tuteladas na forma de joint ventures com as indústrias estatais, ajudou na realização de um grande salto econômico e social ao longo das últimas décadas. De 1978 a 2016, o crescimento médio anual do PIB chinês foi de 9,6%, e sua economia aumentou 3.200% em tamanho. O aumento médio anual do PIB per capita foi de 8,5% e o aumento total no período em questão foi de mais de 2.100%. Desde 1978 até 2017, cerca de 740 milhões de pessoas foram tiradas da situação de pobreza (uma queda de 94,4% de pobres no caso das áreas rurais). Trata-se de um dado sem igual na história da humanidade, levando-se em conta um único país e em um período tão curto na escala histórica. Um aspecto positivo da abertura, apesar de suas contradições, foi como as indústrias estatais chinesas obtiveram a tecnologia das empresas capitalistas mais avançadas, e passaram a desenvolvê-la autonomamente.
A contraparte desse crescimento foi o aumento da desigualdade social, da corrupção entre os funcionários públicos e o ressurgimento de uma burguesia nativa cada vez mais poderosa. Essa burguesia, inclusive, desde 2001 tem permissão para integrar o PCC e, assim, ter formas mais diretas de exercer pressão sobre o Estado. Síntese disso foi a aceitação, em 2018, do homem mais rico da China, Jack Ma, do conglomerado Alibaba, como membro do partido. Também houve um desmonte das condições de vida de setores da classe trabalhadora, como o gradual abandono da política da “tigela de arroz de ferro”, que garantia subsídios diversos aos trabalhadores, e uma intensificação vertiginosa das más condições de trabalho nas empresas privadas (jornadas muito acima de 8 horas, necessidade de morar no local de trabalho, controle extremamente rígido dos intervalos). Todos esses elementos geram poderosas tendências para a restauração capitalista, tanto diretas (fortalecimento de setores contrarrevolucionários), quanto indiretas (desilusão do proletariado com o “socialismo” chinês).
Na URSS, houve na segunda metade dos anos 1980 uma tentativa da burocracia de superar a improdutividade burocrática ao reintroduzir formas limitadas de relações capitalistas (costumeiramente conhecida como perestroika, ou abertura). Rapidamente surgiram setores da burocracia diretamente ligados a essas forças sociais nascentes (e o que elas representavam) que se sentiram confortáveis o suficiente para defender a derrubada da economia estatal e uma contrarrevolução armada. Durante as agudas crises sociopolíticas que ocorreram a partir de 1989, quando os governos do Bloco Soviético como um todo foram deslegitimados e as massas procuraram o fim da ditadura burocrática, esse núcleo contrarrevolucionário tomou o poder por si próprio e reorganizou o Estado segundo novas linhas, passando a desmontar progressivamente a economia estatizada.
O prognóstico da burocracia feito por Trotsky foi confirmado, uma vez que ela se mostrou uma formação heterogênea, propensa a se submeter às mais variadas formas de pressão social. Nela existiam aqueles que queriam manter o Estado operário por seus próprios interesses parasitários e aqueles que queriam destruí-lo e reintroduzir o capitalismo. Um setor abertamente pró-capitalista sem dúvida também existe na China hoje (apesar da censura que circunda os debates internos do PCC) e é provavelmente mais forte do que era na URSS em 1989-91.
Onde Trotsky e Lenin viam necessariamente conflito e perigo apesar dos potenciais benefícios que poderiam ser conseguidos com as concessões do Estado operário, Xi e a burocracia chinesa veem apenas virtudes e harmonia, a construção de um “socialismo com características chinesas”, e fazem homenagens a burgueses como Jack Ma, que na próxima esquina estarão financiando e promovendo a contrarrevolução. Essa é uma das diferenças marcantes entre uma liderança marxista revolucionária e uma liderança burocrática sem princípios. Para nós, esse debate é importante, por outro lado, para desmistificar a noção “purista” de que o Estado operário não pode realizar operações de abertura ao capital privado no período de transição ao socialismo.
Alguns na esquerda reconhecem que pode haver concessões feitas por um Estado operário ao capital privado, sem que isso implique que esse Estado se tornou um “Estado burguês” da noite para o dia, mas consideram que de alguma forma a China “cruzou a barreira”. Mas são precisamente as diferenças na direção política do Estado operário, além da duração de tais reformas, que levam às diferenças entre a NEP do Partido Bolchevique (que teve também diferentes fases) e a abertura promovida pelo PCC.
Uma tese que foi popularizada no Brasil por Martin Hernandez, da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT), organização internacional do PSTU, é de que haveria “três pilares econômicos” de um Estado operário, e que sua ausência ou incompletude implicam que o Estado se tornou um Estado burguês. Isso levou a LIT a considerar que China, Cuba e os demais Estados operários deformados remanescentes se tornaram “Estados burgueses”. A tese defendida por Hernandez e pela LIT segue o mesmo modelo criticado anteriormente, de “rodar ao contrário o filme do reformismo”. Na URSS e no Leste Europeu, afirmam que esse processo ocorreu em meados dos anos 1980, relacionados à perestroika de Mikhail Gorbachev:
“Martín Hernández retoma o critério de Lênin e lembra como Trotsky definia em A Revolução Traída o caráter de classe de um Estado: pelas ‘relações sociais de produção que o Estado protege e defende’.”
“Para definir um Estado como ‘operário’, é necessário saber se esse Estado protege e defende relações sociais de produção baseadas nos três pilares básicos de uma economia em direção ao socialismo: 1) todos os grandes meios de produção e os bancos são de propriedade estatal; 2) a quantidade e a qualidade do que se produz é determinada não pelo mercado, mas por um plano econômico central, ao qual as empresas estão subordinadas; e 3) o comércio exterior é monopólio do Estado.”
“O trabalho de Martín Hernández mostra justamente isso: que, da mesma forma como ocorreu na China desde 1978 e na Rússia desde 1986, em Cuba, desde 1990, o Estado foi articulando toda uma trama jurídica e política de destruição desses pilares. A Junta Central de Planificação foi dissolvida. As empresas mistas entre os militares e novos ricos e as multinacionais europeias ou canadenses se generalizaram a todos os ramos mais dinâmicos da economia. E as empresas, tanto as mistas como as estatais, produzem para o mercado e têm plena liberdade para comercializar com o exterior.”
— Prólogo ao livro O Veredicto da História de Martín Hernández, Site da LIT, 11/12/2016.
Na realidade, embora seja verdade que o Estado operário deve sustentar relações de produção socializadas num plano democraticamente construído pelos trabalhadores – uma condição fundamental para a transição ao socialismo – não estão excluídos recuos nesse caminho. A própria existência de uma planificação burocrática nos regimes stalinistas esteve sempre distante disso. Considerar a priori que os “três pilares” citados por Hernandez, se não satisfeitos plenamente, implicam que o Estado operário deixou de sê-lo e se tornou um Estado burguês é, para dizer um mínimo, arbitrário e esquemático.
Como vimos, Lenin e Trotsky tinham posições bem distintas. Se exigirmos que “todos os grandes meios de produção e os bancos sejam de propriedade estatal” então seríamos obrigados a concluir que a URSS durante a NEP deixou de ser um Estado operário, mas que logo depois “voltou a ser” com a reestatização realizada por Stalin no início dos anos 1930. O mesmo pode ser dito sobre o segundo critério, “a quantidade e a qualidade do que se produz é determinada não pelo mercado, mas por um plano econômico central”. De acordo com Trotsky, isso só seria resolvido numa disputa, no terreno econômico, entre o plano e o mercado. Nós não defendemos esses dois “pilares” como princípios absolutos na ditadura do proletariado em um país atrasado e isolado. Eles só poderiam ser mantidos sem interrupção nos cenários mais positivos e ideais de construção do socialismo, em que não houvesse momentos de estagnação das forças produtivas do Estado.
O terceiro critério, o monopólio do comércio exterior, é o mais objetivo dos três, pois de fato é um elemento importante para que o Estado operário controle a circulação de mercadorias e investimentos. Esse é um princípio o qual lutamos pelo restabelecimento na China, assim como a reestatização de grande parte do setor privado da economia após décadas de crescimento que já cumpriram um papel no avanço das forças produtivas, mas que agora estão praticamente sem controle e tendem a aumentar as desigualdades sociais e os riscos de contrarrevolução. Mas apesar disso, o abandono do monopólio do comércio exterior pelo PCC não implicou que este se tornou o dirigente de um Estado burguês, que serve aos interesses exclusivos do capital. Significa apenas que o Estado operário abriu mão de uma posição importante na luta pela transição socialista. Mas a perda de uma posição não significa imediatamente a perda da guerra, e sim um enfraquecimento das condições da luta.
O PCC realiza planejamento econômico (burocrático), que fica restrito devido à diminuição do peso do setor estatal na economia, mas que ainda mantém relevância devido ao controle quase exclusivo do sistema bancário pelo Estado e ao enorme peso das empresas estatais na economia. O Estado é dominante no setor bancário, mineração, indústria de construção, metalurgia, petróleo e petroquímica, aeroespacial, comunicação e uma série de outras áreas estratégicas, num nível inexistente países capitalistas, comparável apenas a outros Estados operários deformados. A educação, saúde, saneamento, energia e transportes são também dominados pelo setor público. Com esses elementos, ainda é possível ao PCC ser o comandante-chefe da economia chinesa, apesar do grande setor privado.
Não há consenso sobre a natureza da economia chinesa nem nos meios acadêmicos e nem na imprensa burguesa. Se considerarmos as empresas que têm pelo menos 10% de participação do Estado ou que são controladas indiretamente, então essas são mais de 70% da economia chinesa. Se considerarmos empresas de propriedade exclusiva do Estado, então elas se restringem a algo em torno de 15%. Se o critério for das empresas com mais de 50% de capital estatal, a soma vai para algo em torno de 40% da participação na economia (que por sua vez pode ser medida pela participação no PIB, capacidade de investimento ou quantidade de mão de obra empregada, levando a variações).
Há alguns consensos. Não há muita disputa de que os quatro grandes bancos estatais chineses (os “quatro grandes”) dominam os investimentos no país. Apesar de uma das aberturas feitas para a participação na OMC ter sido a permissão para a instalação de bancos estrangeiros, esses têm muitas restrições para a criação de agências, e seguem tendo uma fatia irrisória na alocação de recursos. Um breve artigo sobre o sistema bancário chinês da Enciclopédia Bancária (crítico à atual situação e favorável a uma abertura maior) relata que:
“Desde a entrada da China na OMC, a atividade bancária chinesa foi direcionada mais para a lógica de desempenho e eficiência, do que para a lógica ligada exclusivamente ao planejamento nacional. Apesar disso, o sistema continua sendo caracterizado por fatores de instabilidade. Por exemplo, as atividades de bancos estrangeiros são bloqueadas pela limitação na aquisição de ações em bancos locais e pelo estabelecimento de agências em uma estrutura regulatória ainda distante dos padrões internacionais. Estudos, no entanto, atribuem a essa falta de abertura do setor à concorrência internacional, o mérito de ter permitido ao país não sofrer muito o peso das recentes crises financeiras e, ao contrário, o aumento de sua influência nos mercados financeiros do mundo.”
— O sistema bancário da China, Enciclopédia digital sobre o sistema bancário, bolsas de valores e finanças.
Um dos estudos mais completos realizados em anos recentes sobre o papel das empresas estatais na China foi o da Comissão de Revisão Econômica e Segurança EUA-China, do governo americano. Esse estudo (2011) apresenta algumas das dificuldades citadas:
“Dado o crescente papel da empresa privada na China, existe um interesse natural em comparar o crescimento do setor privado versus as empresas estatais. A métrica mais natural para esse tipo de análise seria a parcela do PIB do setor privado versus a parcela do PIB gerado pelas estatais. Infelizmente, dadas as complicações descritas acima, não há valor publicado para estatais, apenas estimativas e conjecturas. Um estudo da OCDE usando dados de 2006 estimou o a participação das estatais no PIB em 29,7%, o que implica que o setor não-estatal representa cerca de 70% da economia. Outras estimativas da participação do Estado são mais altas. Em testemunhos recentes perante o USCC, Derek Scissors, da Heritage Foundation, sugeriu que o setor estatal é responsável por 30 a 40% da economia da China. Um advogado que trabalha para uma empresa ocidental na China estima que a participação das empresas estatais no PIB varia entre 40 e 50%.”
“O governo chinês publica várias medidas estatísticas que podem ser usadas para avaliar o tamanho das empresas estatais em relação a outras formas de propriedade, de acordo com várias dimensões. Em muitos casos, as medidas da atividade de estatais consideram apenas empresas de propriedade pública exclusiva. Ou seja, essas medidas não tratam entidades nas quais a participação acionária estatal é menor que 100%, mas superior a 50%, como pertencentes ao Estado. Além disso, essas medidas geralmente não rastreiam a propriedade final, ignorando assim as empresas que não estão registradas como estatais, ou de controle público, mesmo quando a propriedade indireta do Estado está presente.”
— Uma análise das empresas estatais e do capitalismo de Estado na China, Andrew Szamosszegi e Cole Kyle para Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China, 26 de outubro de 2011.
Mas as conclusões do estudo mostram o peso significativo que ainda retém o setor estatal:
“Em um mundo em que o planejamento central foi tão completamente desacreditado, seria natural concluir que o governo chinês e, por extensão, o Partido Comunista Chinês, estariam abandonando as instituições associadas ao sistema econômico comunista, como a dependência das empresas estatais, o mais rápido possível. Tal conclusão estaria errada. Embora a dependência da China de empresas privadas e incentivos baseados no mercado tenha sido crescente, e o tratamento do PCC de empresas e empreendedores privados venha mudando, seria um erro considerar as empresas estatais do país como vestígios do passado maoísta da China ou minimizar o papel atual do Estado e do PCC na definição dos resultados econômicos na China e muito além.”
“É verdade que o setor privado é nominalmente responsável por uma parcela crescente da atividade econômica na China. Ainda assim, o governo chinês e as empresas estatais permanecem potentes forças econômicas. De fato, as empresas estatais chinesas estão entre as maiores empresas da China e do mundo e são grandes investidores internacionais. Estiveram envolvidas em algumas das maiores ofertas públicas iniciais nos últimos anos e continuam sendo os proprietários controladores de muitas grandes empresas listadas em bolsas de valores estrangeiras. Em resumo, as empresas estatais ainda são importantes.”
…
“… O setor estatal, composto por empresas estatais e empresas sob seu controle direto, responde por aproximadamente 40% da produção chinesa, em suposições razoáveis. Se outros órgãos públicos, como cooperativas urbanas, empresas de municipalidades e vilarejos, empresas mistas geridas por afiliadas de empresas estatais, etc. forem incluídas, a parcela da produção direta ou indiretamente atribuível de alguma forma à propriedade estatal é provavelmente cinquenta por cento.”
“O fato de o setor estatal continuar sendo uma força na China não deve ser uma surpresa. Nem Deng Xiaoping nem a liderança atual procuraram eliminar o setor estatal. Como Deng observou em 1984, num discurso citado anteriormente, ‘o setor socialista é a base da nossa economia’. Embora existam conflitos entre aqueles que prefeririam reformas mais rápidas e aqueles que procuram retrocede-las, o objetivo atual da política é ‘socialismo com características chinesas’. Do ponto de vista econômico, socialismo com características chinesas significa ‘um sistema econômico de mercado, orientado por uma variedade de formas de propriedade, com o domínio da propriedade estatal’.”
Outra fonte importante que tomamos foi o estudo realizado por Isabela Nogueira, professora de Economia Política e coordenadora do Laboratório de Estudos em Economia Política na China, da UFRJ:
“Apesar dos notórios problemas estatísticos e da enorme quantidade de capital misto, estima-se que o setor estatal tenha hoje um tamanho equivalente ao setor privado em termos de produção industrial e de investimentos em ativos fixos. A fatia da propriedade estatal e coletiva na produção industrial caiu de 90,2% em 1990 para 27,5% em 2011 (último ano com metodologia comparável), ao passo que a fatia das empresas privadas domésticas saltou de 5,4% para 29,9% no mesmo período (NBS, vários anos). A mesma trajetória se deu do ponto de vista de investimentos em ativos fixos: a fatia estatal e coletiva caiu de 72,6% em 1994 para 27,6% em 2015, ao passo que a fatia privada passa de 11,5% para 30,5% (gráfico). De toda forma, a posição estratégica das empresas estatais remanescentes, tanto do ponto de vista econômico quanto geoestratégico, continua conferindo ao Partido-Estado o comando da acumulação, conforme apontaremos a seguir.”
— Estado e capital em uma China com classes, Isabela Nogueira, 24/10/2017.
As porcentagens ausentes na descrição dos investimentos em ativos fixos estão preenchidas pelas empresas mistas (joint-ventures), como pode ser visto no gráfico, o que significa também participação estatal, sem que haja descriminação da parcela envolvida. O artigo apresenta dados importantes, apesar da ausência na perspectiva da autora de uma afirmação mais clara do caráter de classe do Estado, que segundo o artigo trabalharia para garantir a acumulação de capital em diferentes formas, sem predominância de uma, que é o que explicaria os seus ziguezagues na questão das formas de propriedade.
Dados do primeiro estudo citado estimam que a parcela da mão de obra urbana empregada nas empresas estatais era de 29%, portanto mais que nas empresas privadas, que estava em 25,1%. A categoria de indivíduos autônomos vinha a seguir, com 19,2%, enquanto 11% estavam empregados nas empresas de capital limitado com alguma participação do Estado (dados de 2009). Os autores do artigo concluem que cerca de 40% dos trabalhadores da China eram empregados pelo Estado, quando se levavam em conta as cooperativas, empresas das municipalidades e vilarejos e outros órgãos públicos.
Todos esses são importantes elementos de transição ao socialismo que permanecem na economia chinesa e têm impactos na sociedade e na política. A vitória de uma contrarrevolução jogaria quase a totalidade da economia estatal nas mãos da burguesia nativa ou imperialista, piorando drasticamente as condições de vida das centenas de milhões de trabalhadores empregados no setor público, que são largamente superiores às condições dos empregados pelo setor privado.
Além disso, cerca de 40 milhões de burocratas de Estado dependem (e parasitam) esse gigantesco setor público. Enquanto alguns dos burocratas de alto escalão sem dúvida desenvolveram laços e relações íntimas com a nova burguesia, a grande maioria dos membros dessa burocracia não deixaria de ser “enxugada” no evento de uma contrarrevolução. Por isso ela ainda mantém tamanha propriedade estatal dos meios de produção, apesar das privatizações que ocorreram entre os anos 1990 e 2000. Os setores pró-capitalistas e abertamente contrarrevolucionários da burocracia gostariam de se tornar parte da nova classe capitalista e já fazem isso por vários meios legais e ilegais diante do cenário de abertura. Mas a burocracia não poderia deixar de se fragmentar e ser quase inteiramente varrida do mapa se a China se tornasse uma economia capitalista “típica”. Isso não significa que os setores contrarrevolucionários, com o apoio da burguesia nativa e do imperialismo, não possam vencer. De fato, a cada passo, se aproximam mais desse objetivo, como uma cobra que espera o momento certo para dar o bote. Os trabalhadores, tanto das empresas públicas quando das empresas privadas, não podem contar com o interesse de burocratas corruptos. Precisam se organizar para defender o que resta dos elementos de transição na economia e tomar para si o controle do Estado, para que possam fazer uma mudança de cabo a rabo na economia e na sociedade.
Ameaças imperialistas
O imperialismo internacional, em especial o norte-americano, exerce uma ameaça constante e de variadas formas contra o Estado chinês. A que tem aparecido com mais destaque nos noticiários recentemente é a chamada “guerra comercial” iniciada pelos Estados Unidos. Ela significou uma taxação sobre os produtos chineses no mercado americano, com a intenção de reduzir as presença das mercadorias chinesas, especialmente matérias primas. Houve aumento de 25% e 10%, respectivamente, sobre aço e alumínio. Posteriormente, também houve taxação de 25% sobre os artigos eletrônicos.
Trump e os imperialistas americanos buscam com isso, mais do que recuperar a balança comercial americana, também forçar a China a uma negociação na qual realize compras diretas dos EUA e facilite a operação das empresas americanas em seu território, sem exigências de compartilhamento de tecnologia. Uma das defesas da China, além de sobretaxar os produtos americanos, foi forçar a desvalorização da sua moeda, diminuindo o preço expresso das suas mercadorias em dólar. Obviamente, disputas comerciais são um dos caminhos que levam a conflitos armados.
Em 2017, os EUA realizaram a instalação do sistema de mísseis THAAD (Terminal de Defesa Aérea para Grandes Altitudes) na Coreia do Sul, supostamente para interceptação de mísseis lançados pela República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte). Mas especialistas militares e também funcionários de inteligência de diversos países já apontaram que o sistema é capaz de realizar ataques não só contra a Coreia do Norte, como também contra a República Popular da China. Na época, isso causou histeria na sociedade chinesa e levou a uma enorme represália do governo contra empresas sul-coreanas, que segue até o momento.
“Geng Shuang, porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China, disse na terça-feira que Pequim é contra o sistema e que ‘tomará de forma resoluta as medidas necessárias para defender seus interesses na área de defesa. ’”.
…
“Na semana passada, a Coreia do Sul acusou a China de fazer o que chamou de ‘retaliação econômica’. Filiais da loja de departamentos sul-coreana Lotte na China foram fechadas e o governo anunciou ainda uma proibição da compra de pacotes turísticos para o país vizinho.”
“Pequim é o destino de 40% das exportações coreanas – um total estimado em cerca de US$ 124 bilhões por ano, quatro vezes mais que o exportado pelo Brasil para a China em 2016.”
— Como é o sistema antimísseis que os EUA estão instalando na Coreia do Sul – e por que é tão polêmico, BBC, 8 março 2017.
Os Estados Unidos já não fazem mistério sobre estarem se preparando para conflitos armados com a China. O governo de Trump recentemente proibiu a cooperação de empresas americanas com empresas chinesas nas áreas de alta tecnologia, temendo potenciais roubos de segredos industriais. Uma reportagem da BBC de novembro de 2019 revelou que o Pentágono vem trabalhando em planos sobre como minar o poderio econômico e enfrentar a China em caso de disputas no Mar do Sul da China, por onde passam um terço dos navios do mundo e onde a China tem instalado bases militares em ilhas artificiais.
“Ao mesmo tempo, no Pentágono, o Brigadeiro-General Robert Spalding liderava uma equipe de pessoas que tentava formular uma nova estratégia de segurança nacional para lidar com a ascensão e influência da China. Spalding deixou as forças armadas e escreveu um livro chamado ‘Guerra Escondida: como a China assumiu o poder enquanto a elite americana dormia’, em tradução livre.”
“Quando questionado sobre a ameaça que a China representa para os interesses dos EUA, a resposta do general Spalding é gritante. ‘É a ameaça existencial mais significativa desde o partido nazista na Segunda Guerra Mundial’. ‘Acho que é uma ameaça muito maior do que a União Soviética. Como a economia número dois do mundo, seu alcance, particularmente nos governos e em todas as instituições do Ocidente, excede, em muito, o que os soviéticos poderiam imaginar’.”
“O resultado do trabalho de Spalding no Pentágono foi a Estratégia de Segurança Nacional, publicada em dezembro de 2017. É considerado o principal documento do governo, projetado para orientar todos os departamentos, e representa uma profunda mudança de abordagem, de acordo com Bonnie Glaser, diretora do Projeto China Power no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. ‘Agora houve um movimento para longe da guerra contra o terror e, em vez disso, a competição entre as principais potências tomou o lugar do terrorismo como a maior ameaça aos Estados Unidos’, diz ela.”
“O departamento de defesa dos EUA agora acredita que enfrentar a ascensão da China é um dos principais objetivos militares dos Estados Unidos nas próximas décadas. A velocidade com que a China construiu e depois militarizou uma série de ilhas artificiais no Mar da China Meridional, desafiando o direito internacional, tem alarmado muitas pessoas em Washington.”
— A preocupação nos EUA com o avanço da China, BBC, 17/11/2019.
A pressão do imperialismo americano não vai descansar enquanto não puder destruir o Estado chinês e transformar o país em uma semicolônia e um vassalo americano no Extremo-oriente. O imperialismo americano precisa ser derrotado pelos trabalhadores, por meio da revolução socialista. Mas enquanto isso não ocorrer, é tarefa dos trabalhadores de todo o mundo, especialmente dos trabalhadores nos EUA e nos países que são seus aliados em investidas imperialistas, realizar movimentos de greve, piquetes e manifestações para defender a China. Os marxistas e demais trabalhadores conscientes devem ser contra a imposição de sanções, provocações e investidas militares contra o Estado operário deformado. Uma contrarrevolução imposta pelo imperialismo na China significaria a liquidação imediata das conquistas restantes da revolução chinesa, uma piora imediata das condições de vida de centenas de milhões de trabalhadores. Isso também deixaria o governo americano e os demais países imperialistas mais “à vontade” para impor ataques contra os trabalhadores em casa.
A situação e a luta dos trabalhadores chineses
A classe trabalhadora chinesa cresceu e se modificou tremendamente nas últimas décadas. Os anos 1990, com o ativo movimento de privatização ou fusão das pequenas e médias empresas estatais, reduziram brutalmente a parcela do proletariado empregado pelo Estado, e significaram uma piora significativa das suas condições de vida. Diante de muita resistência ativa dos trabalhadores, muitas vezes o PCC preferiu realizar aposentadorias compulsórias ou mesmo demissões, em vez de manter os trabalhadores enquanto diminuíam seus benefícios.
O período entre 1995 e 2003 foi o mais agressivo, com cerca de 50 milhões de trabalhadores do setor público perdendo seus postos de trabalho nesses anos. Isso criou um mercado de trabalho para as empresas privadas, com um custo baixíssimo de mão de obra, e também transformou vários burocratas de alto escalão das províncias em capitalistas. Simultaneamente, a Constituição passava a reconhecer a propriedade privada como uma das formas do “socialismo com características chinesas”. Esse foi um processo chamado de “privatização para os de dentro” e levou à atual divisão entre trabalhadores das empresas estatais, mistas e privadas que existe hoje. A partir da década de 1980, houve um forte movimento migratório do campo para as cidades, muitas vezes feito de forma considerada ilegal, já que a migração para outras províncias é controlada pelo governo central.
A nova geração do proletariado chinês foi lançada em condições muito mais precárias no serviço público. No setor privado da economia, trabalha em condições brutais de superexploração. A chamada “tigela de arroz de ferro”, um conjunto de subsídios aos trabalhadores em áreas sociais (educação, saúde, moradia), foi drasticamente reduzida partir da década de 1990, de forma que atualmente nenhum desses serviços é gratuito, embora ainda haja financiamento estatal maciço e as estatais sigam predominantes na oferta desses serviços, o que garante seu acesso pela maioria da população. Os jovens trabalhadores chineses reclamam sobre a dificuldade de adquirir um apartamento e sobre como a educação universitária encareceu. Apesar de algumas melhorias nos subsídios após 2003, eles nunca mais recuperaram o nível anterior aos profundos ataques sofridos.
O Banco Mundial fornece dados para 182 países, abrangendo quase toda a população mundial, e a posição da China é melhor do que o previsto pelo seu nível de desenvolvimento econômico em qualquer uma das medidas. A expectativa de vida prevista da China a partir de seu PIB per capita é de 73,3 anos, mas a expectativa de vida atual é de 76 anos – isto é, as pessoas na China vivem mais de dois anos e meio do que seria esperado de seu nível de desenvolvimento econômico. A China ocupa o 72º lugar no PIB per capita, mas a 58ª na expectativa de vida – isto é, a posição global da China em expectativa de vida está a 14 lugares acima que sua posição em PIB per capita. Mas esses dados gerais não revelam a imensa desigualdade que domina o quadro, nas diferenças entre os trabalhadores rurais e urbanos; e, dentre os trabalhadores urbanos, os das empresas públicas e das privadas.
Os trabalhadores das empresas privadas frequentemente se rebelam por causa dos horários muito longos, ritmos de trabalho infernais, desrespeito dos tempos e dias de repouso, vigilância intensa (controle do uso dos sanitários), salários muito baixos, enquadramento repressivo, inexistência de normas de segurança (incêndios), acidentes frequentes, e falta de proteção individual (produtos tóxicos). O China Labour Bulletin é uma ONG que recebe apoio logístico de agências imperialistas por meio do programa de “Incentivo Nacional para a Democracia” (NED) do governo americano, e que acompanha os conflitos trabalhistas na China. Apesar de defender uma contrarrevolução capitalista, o CLB é obrigado a reconhecer que a situação dos trabalhadores nas empresas privadas é largamente inferior à daqueles no setor público. Um resumo publicado pelo CLB em meados de 2019 apontou:
“Os funcionários urbanos do setor privado ganharam apenas 49.600 yuanes em média no ano passado, um aumento de 8,3% em relação a 2017, ou 6,1% em termos reais, de acordo com dados da Agência Nacional de Estatísticas (NBS), divulgados em 14 de maio. Durante o mesmo período, o salário médio anual dos funcionários urbanos fora do setor privado atingiu quase 82.500 yuanes, um aumento de 11% em relação ao ano anterior. O NBS define o ‘setor não privado’ como empresas estatais, empresas coletivas e empresas com investimentos no exterior.”
“Dos 1.701 incidentes registrados no mapa das greves em 2018, 1.246 (73,3%) ocorreram em empresas privadas domésticas, 11,6% em empresas estatais e apenas 2,9% nas empresas de capital estrangeiro e joint-ventures de Hong Kong, Macau e Taiwan. Essa proporção permaneceu constante este ano, com 379 dos 526 protestos coletivos registrados até agora em empresas privadas.”
“A maioria dos protestos de trabalhadores no setor privado está relacionada ao não pagamento de salários, atrasos de seguro social, compensação por demissões etc. e ocorre em uma ampla gama de indústrias. Quase metade de todos os protestos registrados no setor privado (167 no total) até agora este ano foram em uma ampla gama de setores de serviços, varejo e transporte, incluindo muitos em empresas baseadas na Internet, como os gigantes de entrega de alimentos Meituan e Ele.me, que viram greves regulares este ano por motoristas que protestam contra cortes arbitrários nos salários.”
“Além de pagar cerca de dois terços a mais do que as empresas privadas, as empresas estatais e estrangeiras geralmente oferecem melhores benefícios e emprego mais estável. No entanto, como mostram as recentes demissões da gigante americana de tecnologia Oracle, a segurança do emprego não pode ser garantida em lugar algum.”
— Os trabalhadores no setor privado da China ganham menos e protestam mais, 15/05/2019.
A única organização sindical oficial da China continental é a Federação de Sindicatos de Toda a China (ACFTU), controlada pelo PCC. Embora a organização de greves e manifestações operárias seja considerada legal, o seu reconhecimento está condicionado à declaração pela ACFTU ou suas seções locais. Os trabalhadores em protesto geralmente buscam apoio dos sindicatos. Em alguns casos, a ACFTU aceita a declaração de greve e apoia os trabalhadores, mas na grande maioria das vezes, busca um acordo entre a empresa e os trabalhadores sem que seja necessário organizar protestos. Em outros, tenta dissuadir os trabalhadores de agir. O controle burocrático da central impede a organização do proletariado de forma independente dos interesses conciliatórios da burocracia. Isso facilita a repressão das autoridades policiais, assim como tende a levar ao surgimento de associações e sindicatos clandestinos pelos trabalhadores.
Esse foi o caso da greve na indústria privada Jasic, na cidade de Shenzhen, em julho e agosto de 2018. Ocorreram manifestações públicas, greves e outras ações diretas a partir de 27 de julho de 2018. Depois de muitas tentativas frustradas de obter reconhecimento oficial da ACFTU, onde só receberam desprezo e represálias, um grupo de trabalhadores insatisfeitos, com baixos salários, más condições de trabalho e longos turnos tentaram formar um sindicato independente. A empresa respondeu à petição dos trabalhadores para organizar o sindicato demitindo-os. Isso provocou duas semanas de protestos e manifestações, tanto de trabalhadores fabris em Shenzhen quanto de estudantes membros de um grupo de apoio aos operários. Os protestos foram descritos como sendo amplamente influenciados por propaganda marxista e maoísta. Um dos líderes enviou uma carta aberta a Xi Jinping explicando as intenções do movimento em termos do “Pensamento Mao Tsé-Tung”, mas obviamente nunca foi respondido.
Um comentarista acadêmico liberal, mais interessado na “estabilidade” do ambiente de negócios chinês do que nos interesses dos trabalhadores contra a burocracia e a nova burguesia, mostrou o barril de pólvora no qual a China pode rapidamente se transformar:
“Como explicou Eli Friedman, a falta de representação genuína de sindicatos independentes e outros veículos para a intermediação de interesses dos trabalhadores deixou a China vulnerável a um movimento duplo incompleto. Incapaz de proporcionar institucionalização e incorporação política genuína dos trabalhadores que foram deslocados socialmente pelo avanço do mercado, o PCC e o Estado chinês são forçados a enfrentar a mobilização contínua dos trabalhadores e o ativismo cada vez mais radical. Nesse contexto, fazer progredir o ciclo produtivo em direção a uma economia estável baseada no consumo parece improvável.”
“Isso coloca os trabalhadores chineses em uma posição potencialmente poderosa, mas incerta, e deixa o Estado com opções de resposta desagradáveis e arriscadas. Os trabalhadores podem optar por continuar com o ativismo fragmentado, na esperança de, pelo menos, manter a situação atual, ou talvez promover algumas novas reformas sociais. Eles podem trabalhar ativamente com o Estado e o Partido para criar um novo papel para os sindicatos oficiais ou, mais provavelmente, desenvolver algum novo modelo para a institucionalização do compromisso de classe e a incorporação dos trabalhadores na sociedade. Ou eles podem avançar com uma mobilização unificada ousada em apoio a sindicatos independentes e outros veículos de representação. O Estado e o Partido, por sua vez, podem optar por promover sindicatos independentes (o que parece incompatível com os princípios básicos do PCC e, portanto, ideologicamente inviável), podem permanecer presos em um ciclo de repressão e acomodação em resposta à mobilização fragmentada dos trabalhadores (que leva ao risco de ascensão de um movimento trabalhista unido e desestabilizador, cuja repressão poderia ser, na melhor das hipóteses, difícil) ou desenvolver uma estratégia para alguma forma alternativa de incorporação da classe trabalhadora.”
— A classe trabalhadora chinesa: montada, desmontada, em si, para si ou nenhuma das anteriores?, William Hurst, 2016.
Ao mesmo tempo, estão surgindo grupos de estudantes marxistas radicais, que identificam as profundas contradições entre o marxismo, por vezes identificado com o maoísmo (veja nossa crítica ao maoísmo) e a política seguida pela direção PCC. Círculos marxistas em universidades têm estado sob constante espionagem e repressão pelo Estado policial chinês, especialmente quando esses militantes agem em apoio às reivindicações dos trabalhadores:
“Em um primeiro olhar, as posições dos estudantes e das autoridades deveriam estar perfeitamente alinhadas. O próprio presidente chinês, Xi Jinping, que recuperou alguns dos sinais de identidade do mandato de Mao – a fonte de legitimidade do sistema – pediu um fortalecimento da educação ideológica nas escolas e universidades chinesas. O marxismo é uma matéria obrigatória aos estudantes do terceiro período. Mas ‘o marxismo que o Partido Comunista da China ensina nas escolas não é o verdadeiro: é selecionado e interpretado para adaptá-lo aos seus próprios fins’, diz Eric Fish, autor do livro ‘China’s Millenials: The Want Generation’. E a contradição entre os ideais da doutrina original e a realidade é óbvia.”
“Nesse ano, dezenas de estudantes vindos de todo o país viajaram ao sudeste do país, para solidarizar-se com os trabalhadores da Jasic Technology, que protestavam contra o que consideravam um ‘tratamento escravista’ por parte da fabricante de máquinas para solda. Na China, os protestos trabalhistas são frequentes. Somente em 2018, a ONG China Labour Bulletin, com sede em Hong Kong, contabilizou mais de 900 greves por todo o país e em todos os tipos de setores, do táxi à mineração.”
“Mas estudantes de universidades que viajam milhares de quilômetros para solidarizar-se com trabalhadores de uma fábrica se tornou algo muito mais raro desde que as manifestações de estudantes e trabalhadores de 1989 em Tiananmen acabaram dispersadas em sangue. Pequim decidiu que tinha um problema. ‘A combinação do ativismo dos trabalhadores e dos estudantes foi exatamente a fórmula utilizada pelo Partido Comunista para chegar ao poder. Portanto, em sua experiência, agora que está no poder, não pode permitir que se repita’, diz o historiador independente Zhang Lifan.”
“50 estudantes foram presos em agosto. E desde então a pressão aumentou. Já no mês passado, a Universidade de Pequim anunciou mudanças em sua direção nesse sentido: o novo reitor era o secretário do Partido dentro da instituição; Qiu Shuiping foi nomeado novo secretário, um funcionário que em seu currículo inclui ter sido o homem do Partido na delegação de Pequim do Ministério de Segurança Interna, os serviços secretos chineses. Nessa semana, e após as últimas batidas, a Universidade de Pequim descreveu as atividades do ‘Grupo de Solidariedade aos Trabalhadores de Jasic’ como ‘delitivas’, e alertou seus estudantes que ‘se ainda existem os que querem desafiar a lei, terão que lidar com as consequências’.”
— Estudantes marxistas, os novos inimigos do Governo chinês, El País, 20 de novembro de 2018.
Nós defendemos a expansão das liberdades democráticas para a classe trabalhadora e suas organizações (mas não para a burguesia contrarrevolucionária). Queremos que os jornais, sites e livros dos marxistas, trabalhadores combativos, círculos estudantis radicais e militantes de esquerda na China tenham plena liberdade de circulação e discussão. Exigimos também a plena liberdade de organização sindical e partidária para aqueles comprometidos com a defesa da revolução chinesa e suas conquistas sociais, acabando com o monopólio da ACFTU e do Partido Comunista. Enquanto isso não for possível, defendemos a realização de um trabalho clandestino pela construção de um partido marxista independente, e de sindicatos independentes comprometidos com a defesa da propriedade socializada. Pode ser necessário, em diversos contextos, combinar esse trabalho clandestino com infiltração no PCC e na AFCTU para explorar contradições que existem em suas fileiras.
Exigimos o fim de todos os privilégios e regalias da burocracia governante. Cada funcionário de Estado, do oficial de província até Xi Jinping, deve receber apenas o salário médio de um trabalhador. Custos com as funções oficiais serão mantidos pelo Estado operário, mas deve-se prevenir usar os cargos para ganho pessoal. É necessário reorganizar toda a estrutura política chinesa em torno da construção de comitês de empresa e de municipalidades. Essas organizações dos trabalhadores e camponeses devem revisar a economia do país, renacionalizando grande parte da indústria e comércio e estabelecendo uma gestão democrática, com gerentes e administradores eleitos nos locais de trabalho, e revogáveis pelas assembleias que os elegeram. Apoiamos todas as lutas parciais dos trabalhadores das empresas públicas e privadas pelas melhorias salariais e de condições de trabalho. Os novos órgãos do proletariado chinês devem unificar esses dois setores da classe trabalhadora em um só.
Defendemos a interrupção imediata do uso do aparato policial desgovernado contra aqueles que estão lutando contra a restauração capitalista ou que protestam contra o despotismo do governo. Ao contrário, queremos um julgamento popular dos burocratas corruptos que contribuíram para as privatizações que arrasaram as condições de vida dos trabalhadores. Queremos também o envolvimento do Estado operário na arena internacional a favor das lutas dos trabalhadores e das lutas anti-imperialistas, apoiando-as financeiramente e também com um programa que aponte para a ditadura do proletariado, pois a China não pode chegar ao socialismo por conta própria – é necessária a vitória da revolução em vários países, incluindo as metrópoles imperialistas. Para que o Estado chinês passe a cumprir tal papel internacionalista, é necessária a ascensão de uma liderança marxista.
“O prognóstico político tem um caráter alternativo: ou a burocracia, tornando-se cada vez mais o órgão da burguesia mundial no Estado operário, derrubará as novas formas de propriedade e lançará o país de volta ao capitalismo, ou a classe operária destruirá a burocracia e abrirá uma saída em direção ao socialismo”. (Programa de Transição, 1938). Em breve, haverá profundas batalhas de classe na China. Nós defendemos uma posição clara para os trabalhadores: a superação do aparelho burocrático e reorganização do Estado operário e da economia.
Nesse meio tempo, podem ocorrer tentativas de contrarrevolução vindas do imperialismo, das forças burguesas nativas, de setores da burocracia ou ainda uma combinação dessas três forças. Nesse caso, reivindicamos que os trabalhadores se coloquem pela defesa do Estado operário chinês, por quaisquer meios disponíveis (propaganda, greves, piquetes, armas na mão). No caso de que certos setores da burocracia também se coloquem contra as forças contrarrevolucionárias (por seus próprios interesses burocráticos), defenderíamos uma unidade de ação pontual em cima dessa questão, sem em nenhum momento abandonar a independência política contra aqueles que estão cavando a ruína do proletariado chinês a cada dia. Nosso interesse é manter e expandir as conquistas da revolução chinesa, não a camarilha privilegiada de burocratas corruptos que se apropriou dela.
O fato de não vigorar uma democracia proletária na China, na forma de órgãos de poder da classe trabalhadora que lhes permita controle direto da economia e política, é um dos maiores riscos à sobrevivência das conquistas remanescentes da revolução. A burocracia governa em prol de si própria, ainda que isso envolva preservar, por seus próprios métodos, algumas das bases da revolução que permitem a ela sua existência parasitária. Uma revolução política, que estabeleça uma democracia proletária no lugar dessa ditadura burocrática policial, é essencial para a sobrevivência e avanço da sociedade chinesa no caminho do socialismo. A classe trabalhadora chinesa possui rica história de luta contra a burocracia (Comuna de Xangai de 1966; onda grevista contra as “reformas” de Xiaoping em 1986; revolta de 1989 na Praça Tiananmen). Mas para ser vitoriosa, se faz essencial a formação de um partido marxista que reúna seus melhores elementos, sob a bandeira da revolução política e da internacionalização da revolução, e possa organizar e dar norte aos anseios do proletariado chinês.
APÊNDICES
1. A presença econômica da China na África e internacionalmente
A China joga hoje um papel de superpotência na arena internacional. Por conta disso, muitos a definem como imperialista. A sua presença econômica pelo mundo se dá de diferentes formas. As principais são completamente esperadas para um Estado operário nacionalmente isolado, que necessita fazer comércio com os países capitalistas. Devido à sua gigantesca capacidade produtiva, a China tornou-se um parceiro comercial significativo para muitos deles.
Outro elemento na transformação da China em um fator global é o investimento estrangeiro que ela realiza. Ao contrário do que se pode pensar, isso não é algo particular à China atual, em comparação a outros Estados operários burocratizados, e que revelaria o seu caráter de país supostamente imperialista. A União Soviética viveu num cerco comercial muito maior do que a atual situação da China no mundo. Mas ainda assim, o antigo Estado operário burocraticamente degenerado soviético também realizou investimentos em países capitalistas. Assim como é o caso da China hoje, a maior parte desses investimentos não se dava em nações da periferia capitalista, mas nos centros capitalistas:
“A prática de estabelecer empresas financeiras e comerciais nos países capitalistas, no entanto, não é totalmente nova na história econômica soviética. O Moscow Narodnyi Bank de Londres foi fundado em 1919, o Banco Russo-Iraniano de Teerã em 1923 e o Eurobank em Paris em 1925. O exemplo mais antigo de uma empresa comercial soviética no Ocidente é a Russian Wood Agency, Ltd., estabelecida em Londres, em 1923, com o objetivo de promover as exportações de matérias-primas da URSS. Este foi o período da NEP, e os vínculos com o Ocidente capitalista foram vistos como parte de uma etapa de capitalismo de Estado temporário. Por quase meio século depois, as poucas firmas estabelecidas no Ocidente foram consideradas as exceções que confirmavam a regra, ou seja, autarquia básica e não integração no sistema capitalista mundial.”
…
“Desde o final da década de 1960, com o conceito de integração na divisão internacional do trabalho, foi inaugurada uma política radicalmente nova, primeiro com uma ramificação de estabelecimentos financeiros soviéticos no exterior, logo seguida por um número crescente de empresas comerciais soviéticas. A política de investimento estrangeiro da década de 1970 testemunha o novo pensamento econômico da URSS em relação ao mundo exterior. Não é fácil encontrar estatísticas sobre o investimento soviético no exterior. Nem a URSS nem os países anfitriões ocidentais publicam listas abrangentes de empresas com participação soviética. Carl McMillan, do Instituto de Estudos Soviéticos e do Leste Europeu da Universidade Carleton (Ottawa) identificou, em março de 1979, a existência de 177 empresas no exterior com participação soviética. Em um estudo posterior, de 1987, ele conseguiu localizar 116 empresas com participação soviética em 20 países capitalistas ocidentais, enquanto 27 foram encontradas em países da periferia. De acordo com as investigações de McMillan, a Europa Ocidental respondia pela maior parte das empresas de propriedade soviética no exterior. Como a maior parte parece estar ligada a serviços financeiros ou promoção de exportação, não surpreende encontrá-los localizados nos países com as mais extensas relações econômicas com a URSS: França, Alemanha, Bélgica-Luxemburgo, Reino Unido (com Londres como centro financeiro e comercial), Itália e Finlândia. Os investimentos no Japão foram limitados pelas regulamentações de investimentos estrangeiros, enquanto as incertezas políticas retardaram o crescimento dos investimentos nos Estados Unidos. Enquanto isso, o Canadá serviu de trampolim para o mercado norte-americano.”
“No Sul, os investimentos foram mais dispersos geograficamente. Conforme mostrado na tabela, a África é o alvo de duas vezes mais investimentos soviéticos do que qualquer outra área, com a América Latina, Ásia e Oriente Médio compartilhando os investimentos restantes. Certas áreas importantes foram particularmente atraentes: Nigéria e Marrocos (na África), Índia e Cingapura (na Ásia), Líbano e Irã (no Oriente Médio) e México e Peru (na América Latina). Juntos, eles responderam por quase metade do total de investimentos na periferia.”
“No terceiro mundo, uma proporção maior do investimento soviético foi para atividades de fabricação. Segundo McMillan, ‘o estabelecimento de instalações de produção e infraestrutura relacionada, ou a participação em projetos de desenvolvimento de recursos, fornecendo acesso a matérias-primas em troca da tecnologia industrial da Comecon, têm sido as principais funções para as quais os investimentos foram direcionados.’”
— Soviet-Third World Relations in a Capitalist World, Ellen Brun e Jacques Hersh, páginas 218-219 (2013).
O destaque entre as organizações de esquerda que definem a China como tendo um papel imperialista costumam ser os seus investimentos África. Os investimentos chineses no continente africano, de fato, cresceram substancialmente em anos recentes. Passaram de 1 bilhão de dólares em 2002 para aproximadamente 30 bilhões em 2016. Esses investimentos se deram principalmente na forma de empréstimos sem juros e para fundos de desenvolvimento, não em instalações fixas. Os principais interesses chineses, nesse caso, são diplomáticos, com o estabelecimento de “nações amigas” na periferia do planeta. Mas ainda assim, é importante refletir sobre tais empreendimentos.
A China é hoje o quinto país que mais investe no continente africano. “Em 2017, a França foi o principal investidor estrangeiro na África, seguida pela Holanda, Reino Unido e Estados Unidos. Criticamente, os dados mostram que, de 2013 a 2017, o IED (Investimento Estrangeiro Direto) chinês na África cresceu 65%, superado apenas pela Holanda, cujo IED cresceu mais de 200%”. (Al Jazeera, 13 de junho de 2019). Pesquisas mais completas confirmam esse cenário:
“O presidente chinês Xi Jinping visitou o Senegal em julho do ano passado, buscando mais cooperação com o antigo território colonial francês. Em meio a um acalorado debate sobre o papel cada vez mais dominante da China no mundo, esta visita – realizada antes do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC) de Pequim, em 2018 – enviou claramente um sinal à Europa de que a China não se esquiva de entrar no que é historicamente uma área de influência da Europa. Da China, esse movimento não é surpreendente, pois as relações China-África floresceram há pelo menos meio século, sob o mantra da cooperação Sul-Sul.”
“Mesmo que a história das relações China-África seja longa, elas têm sido principalmente políticas e não necessariamente econômicas. Nos últimos oito anos, no entanto, os laços econômicos da China com a África aumentaram. Primeiro de tudo, a China se tornou o parceiro comercial mais importante para muitos países africanos. A natureza bastante desequilibrada dos fluxos comerciais da África com a China está bem documentada na literatura, mas esse é muito menos o caso do outro aspecto importante nas relações econômicas China-África, a saber, investimento.”
…
“Dito isto, o investimento da China na África ainda está nos estágios iniciais em comparação com o dos principais países europeus que têm um passado colonial na África, especialmente a França e o Reino Unido. Os gráficos mostram que os estoques de investimentos provenientes, respectivamente, do Reino Unido e da França na África são ainda maiores do que os estoques provenientes da China. A Holanda também subiu para o segundo lugar em 2017, o que pode ser explicado pelo redirecionamento dos fluxos de investimento de outros países, mas ainda é consistente com os fatos de que a Europa é o investidor chave na África.”
— Investimento da China na África: o que os dados realmente dizem e as implicações para a Europa, 22 de julho de 2019. Traduzido do inglês.
A China é hoje o 12º maior investidor internacional. Está distante dos grandes imperialistas, mas supera alguns dos seus sócios secundários. Os marxistas devem combater a paranoia, alimentada pela imprensa capitalista, de que a China está “dominando o mundo”. Isso é uma reação da grande burguesia imperialista ao fato de que seus patrões perdem um pouco do seu espaço na economia mundial para outras nações. Não deixemo-nos enganar. A China nem de longe representa uma corda sufocando as economias das nações periféricas do capitalismo, sugando seus recursos e explorando seus trabalhadores como um fator decisivo internacionalmente. Por esse motivo, é um erro qualifica-la como uma “potência imperialista”.
Enquanto tais investimentos estrangeiros não mudam o caráter de classe do Estado chinês e nem os elementos transicionais da sua economia, não se deve perder de vista, nem por um segundo, que o governo chinês não os administra no interesse dos trabalhadores. Falando sobre a União Soviética nos anos 1930, Trotsky ressaltou muito bem que: “Essa burocracia preocupa-se, acima de tudo, com seu poder, prestígio e rendimentos. Defende-se muito melhor do que defende a URSS. Defende-se à custa da URSS e à custa do proletariado mundial.”. (Balanço dos eventos finlandeses, abril de 1940). A burocracia de Xi Jinping usa os recursos do Estado operário para o enriquecimento e o prestígio de sua casta. A mesma lógica que aplicam aos trabalhadores chineses, os burocratas aplicam ao proletariado mundial.
A superação dos problemas e contradições da China depende de revoluções socialistas em outros países. Isso é o contrário do que prega a burocracia do PCC, confiando em seus “amigos” capitalistas, dentro e fora da China, e acreditando em sua própria capacidade de seguir enganando e reprimindo os trabalhadores. As instalações de empresas chinesas ou com investimento chinês, assim como os capitais imperialistas, devem ser expropriados e controlados pelos trabalhadores em seus próprios países. Essa deve ser a nossa perspectiva histórica. Os trabalhadores, no controle da indústria após uma revolução vitoriosa, poderão ajudar de formas muito mais abrangentes o Estado proletário burocratizado chinês, sobretudo quando este estiver ameaçado pelo imperialismo, e auxiliar os trabalhadores chineses na perspectiva de se livrar da burocracia que os oprime. Os trabalhadores chineses devem apoiar essa demanda dos seus irmãos e irmãs em outros países, onde uma vitória revolucionária representaria um passo importante para a emancipação do proletariado mundial e da sua própria luta contra a burocracia.
2. As manifestações em Hong Kong e a defesa do Estado operário burocratizado
Hong Kong, antes colônia britânica, passou a ser uma região administrativa especial da China (um estatuto compartilhado com Macau), em 1997. Foi estabelecido um acordo sob o princípio de “um país, dois sistemas”. Hong Kong mantinha a sua economia capitalista e sua administração de forma oficialmente autônoma, mas com os cargos mais importantes indicados ou controlados indiretamente por Beijing; e a China continental mantinha seu sistema econômico, ainda controlado fortemente pelo Partido Comunista por meio das empresas estatais.
Hong Kong tornou-se então um “enclave capitalista” na China. A ilha dá mais um exemplo do colaboracionismo entre a burocracia do PCC e a burguesia internacional. Também concentra um forte polo de organização para tentativas de contrarrevolução. A postura vergonhosa dos burocratas chineses, que permitiram a livre exploração dos trabalhadores por uma burguesia nativa traiçoeira de origem colonial, contribui em muito para gerar descrédito do proletariado de Hong Kong pelas ideias socialistas.
As manifestações em Hong Kong em 2019 começaram como uma resposta a um acordo de extradição de prisioneiros entre Hong Kong e a China. Nós do Reagrupamento Revolucionário nos posicionamos contrariamente a tal lei, pois ela facilitaria a extradição de qualquer perseguido político chinês refugiado em Hong Kong, inclusive os proletários e comunistas que lutam heroicamente contra a burocracia chinesa e sua ditadura policial. Tais manifestações foram instigadas, portanto, pela inquestionável falta de transparência do sistema judicial chinês e a colaboração do governo de Hong Kong.
Porém, rapidamente as passeatas foram alinhadas aos interesses da extrema-direita de Hong Kong, uma oposição ao “colaboracionismo de classe” do governo chinês com os capitalistas de Hong Kong, mas num sentido reacionário. Os organizadores das manifestações querem uma “independência capitalista” da cidade e desejam também a queda do “comunismo” na China, e sua substituição por uma democracia de tipo ocidental. Obviamente, tal regime significaria uma plena liberdade de exploração para os imperialistas americanos, seguido de seus sócios ingleses e de outras potências.
Formalmente, os protestos defendem uma lista de pautas “pró-democracia”: a libertação dos presos durante as manifestações, a suspensão da sua caracterização como “distúrbio”, a realização de um inquérito sobre as ações policiais. Não há lideranças centralizadas, mas é evidente que se formaram blocos políticos, organizados por fóruns e aplicativos de internet. A mídia de Hong Kong fala em um setor moderado, e outro “radical”, que realizou inúmeras ações violentas, que tiveram o pico em janeiro de 2020, incluindo ataques incendiários a prédios, ônibus e vagões de metrô (com pessoas dentro). Os manifestantes também exigiam a renúncia de Carrie Lam, Secretária-Chefe de Administração de Hong Kong (governante da cidade).
A lei sobre o acordo de extradição foi abandonada pela pressão das manifestações em junho de 2019. Mas as manifestações a partir de então intensificaram o seu tom anticomunista. Passaram a ser comuns bandeiras da época colonial de Hong Kong, como quando da ocupação violenta Conselho Legislativo em 1º de julho, onde tal bandeira foi erguida no pódio. Apareceram muitas bandeiras americanas e britânicas em meio aos protestos. Houve também inúmeras expressões de xenofobia contra os chineses do continente entre os “mascarados de preto”, que é como o setor dito mais radical passou a se vestir. Foram realizados ataques com bomba contra um conjunto habitacional de chineses próximo à fronteira. Turistas e repórteres da China continental foram agredidos nas ruas por grupos de manifestantes em setembro e outubro.
Além disso, há claramente uma infiltração dos interesses pró-americanos. A organização oficial dos protestos partiu da “Frente Civil dos Direitos Humanos”, um bloco de ONGs e organizações políticas, das quais a maioria recebe financiamento do governo americano, por meio do “Incentivo Nacional pela Democracia” (NED), gerido pelo Departamento de Estado. Com ligações com as agências de espionagem, a NED financia grupos para fomentar rebeliões e manifestações no interesse do governo americano. Em novembro de 2019, o congresso americano passou uma “Lei dos Direitos Humanos de Hong Kong” para apoiar e conceder mais financiamento aos grupos organizadores das manifestações. Os comunistas sabem bem que quando os EUA têm uma postura tão “benevolente” em relação a rebeliões e protestos, isso geralmente significa que estão articuladas com os interesses da sua classe dominante.
Qual deve ser a postura dos revolucionários? O repúdio ao regime policial do PCC e aos crimes de seus dirigentes é absolutamente legítimo, assim como é a luta por mais direitos democráticos contra a brutalidade da polícia de Hong Kong, o que incluía oposição à lei de extradição. Se houvesse um partido revolucionário com influência entre os trabalhadores e a juventude, teria sido possível tornar as marchas ações de solidariedade ao proletariado chinês, contra a burocracia e principalmente contra o imperialismo, chamando pela expropriação da burguesia de Hong Kong.
Mas obviamente, não foi isso que aconteceu. Assim como as manifestações dos guarda-chuvas em 2014, esta se tornou uma onda reacionária diante da hegemonia dos grupos pró-imperialistas e direitistas, o que ficou patente pelo menos desde julho de 2019. A defesa dos direitos democráticos dos trabalhadores está também submetida ao caráter de classe dos manifestantes e à sua perspectiva política geral, que nesse caso se opunha diretamente à defesa das conquistas remanescentes da revolução chinesa. As passeatas deveriam ser denunciadas, e os trabalhadores deveriam boicotar e realizar contramanifestações. Algumas destas chegaram a acontecer, geralmente associadas ao governo chinês.
Nós nos opomos à mentalidade de apoio acrítico aos governantes nacionalistas ou estalinistas, que afirma que qualquer manifestação de protesto contra eles deva ser esmagada com força policial. Nós não temos nada além de ódio pelos governantes de Hong Kong, e denunciamos o uso brutal de violência policial, que seria também usada contra trabalhadores em luta. Mas é preciso ter clareza sobre o grau de seriedade atingido pela onda de protestos. Em alguns momentos, as manifestações se aproximaram de uma derrubada violenta do governo, como no evento de 26 de setembro, quando manifestantes cercaram a comitiva de Carrie Lam por quatro horas após uma reunião pública no Estádio Rainha Elizabeth, antes que ela pudesse escapar.
No caso de um confronto violento entre o bloco que dirige as manifestações, com o objetivo de provocar a separação de Hong Kong, e o status quo, nós defenderíamos o último, ainda que hegemonizado pelo PCC e seus aliados de Hong Kong. Isso não implica deixar de denunciar o regime chinês como o principal culpado por esta ameaça, diante de sua covardia em expropriar os capitalistas da cidade.
Nós rechaçamos a posição daqueles na esquerda que elogiam e apoiam as manifestações direitistas, como supostamente “progressivas”, incluindo muitos autodeclarados “trotskistas”. Eles escondem o verdadeiro caráter político e social de tais protestos, para realizar seu programa de apoio a qualquer campanha “pró-democracia”, mesmo que hegemonizada e no interesse dos imperialistas. Muitos repetem a postura que tiveram na destruição dos Estados operários burocratizados do Leste Europeu e da URSS, quando apoiaram as forças contrarrevolucionárias do Solidarność (Solidariedade) polonês, o grupo ao redor de Yeltsin na Rússia e outros.
Após a derrota do bloco de colaboração de classes “pró-China” nas eleições, e a chegada ao poder do bloco de partidos mais diretamente associados ao imperialismo americano, os protestos continuaram, com uma pauta clara de “libertação de Hong Kong” da China (para ser aprisionada pelos imperialistas). A epidemia do coronavírus levou a uma trégua, conforme foram feitos alertas para o isolamento social e muitas pessoas passaram a ter receio de ir às ruas.
A única forma de derrotar essa campanha reacionária de forma definitiva, e não de forma paliativa (burocrático-policial), é construindo uma forte campanha que ligue o combate por direitos democráticos à defesa da propriedade estatal chinesa; que combine a denúncia dos crimes da burocracia de Xi com a solidariedade entre os trabalhadores chineses do continente e de Hong Kong; que una o repúdio aos governantes da cidade com a luta por uma sociedade administrada democraticamente pelas organizações de trabalhadores em toda a China, baseada na expropriação dos capitalistas. Essa será a campanha capaz de levantar o proletariado da cidade e cumprir um papel progressivo na luta do proletariado internacional.
3. Coronavírus, burocracia e empresas estatais.
Foi na China que se iniciou o contágio de humanos pelo coronavírus, que agora se tornou uma pandemia global. Provavelmente, era um dos países mais preparados do mundo para lidar com tal ameaça, pois já tem larga experiência com epidemias menos perigosas similares, como a da Gripe A (2009) e da SARS (2003). Ocorre um monitoramento constante de doenças infectocontagiosas por parte dos médicos e órgãos de medicina. A forma como as instituições de saúde e as autoridades chinesas lidaram com o surgimento do vírus mostra o pior e o melhor lado do Estado operário burocratizado.
Um dos primeiros pacientes conhecidos, Wei Guixiam, foi atendido em 10 de dezembro de 2019. No dia 16, vários pacientes já tinham dado entrada no Hospital Central de Wuhan, capital da província de Hubei. No fim desse mês, médicos já sabiam que se tratava de uma nova variedade de coronavírus, detectaram sua origem em pessoas que haviam tido contato com mercados de animais locais, e publicavam informações para alertar às autoridades, assim como aos escritórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) na China.
Fen, diretora médica no Hospital Central de Wuhan, divulgou informações na internet sobre o novo vírus, especialmente para colegas da área médica, em um aplicativo de mensagens. Ela foi repreendida por seus superiores, que lhe disseram para não compartilhar mais nada a respeito. Pouco depois, outro médico de Wuhan e membro do Partido Comunista, Li Wenliang, também circulou mensagens sobre o novo vírus por mensagem. Ele foi chamado para interrogatório logo depois. Tragicamente, Li foi um dos profissionais de saúde infectados pelo vírus, e veio a falecer em 7 de fevereiro de 2020, aos 33 anos de idade. Posteriormente, o PCC teve de se retratar pela acusação que havia sido lançada a ele, de “espalhar rumores”.
No início de 2020, a comissão de saúde de Wuhan notificou os hospitais sobre uma “pneumonia de causa pouco clara” e ordenou que qualquer informação fosse reportada unicamente a ela. Depois, levou para interrogatório oito médicos que postaram informações sobre a doença em aplicativos de mensagens. Um funcionário da Comissão Provincial de Saúde de Hubei ordenou depois que os laboratórios públicos que já haviam determinado de forma autônoma que o novo vírus era semelhante ao SARS, parassem de testar amostras e destruíssem amostras existentes. Testes seriam realizados de forma centralizada apenas com autorização governamental.
Em 21 de janeiro, o novo vírus finalmente foi reconhecido como um risco grave. O jornal principal do PCC, Diário do Povo, mencionou a epidemia e as ações de Xi para combatê-la. Wuhan e outras três cidades entraram em quarentena em 23 de janeiro, mas o vírus já havia se espalhado para outras regiões, e inclusive chegado em outros países, como Tailândia, Japão, Coreia do Sul e Estados Unidos. A China ampliou depois o bloqueio para cobrir 36 milhões de pessoas na província de Hubei e começou a construir rapidamente um novo hospital em Wuhan, que ficou pronto em menos de dez dias, com três mil novos leitos. A partir deste ponto, medidas muito rigorosas continuaram a ser tomadas em todo o país no controle da epidemia. Isso se deu durante as comemorações do ano novo chinês, entre 24 e 30 de janeiro, o que é impressionante, considerando as dimensões de tal comemoração no país.
No momento em que este texto foi escrito, em abril de 2020, a epidemia parece praticamente contida na China, em tempo recorde. A combinação de um isolamento social bastante eficiente, com uma política de testagem massiva, obviamente deu resultados. Além disso, a construção rápida dos hospitais com os recursos das empresas estatais, e o deslocamento de equipamentos e funcionários de saúde de um sistema quase integralmente público, foram responsáveis por salvar muitas vidas. Enquanto países como Espanha, Itália e os Estados Unidos rapidamente superaram a China em número de infectados e de mortes, abandonam enormes populações sem cuidados de saúde e não veem ainda saída para a doença, o Estado operário burocratizado chinês lidou de forma muito mais capaz com esse desafio.
Os motivos para que o PCC buscasse esconder o problema no início sem dúvida envolviam preocupação diante do atual momento complexo, desde a disputa comercial com os Estados Unidos até os protestos em Hong Kong, e os possíveis impactos disso na estabilidade de seu regime. Isso não tem nada a ver com os problemas do “sistema comunista”, mas sim com a falta de transparência de governantes que colocam seu prestígio burocrático acima das vidas dos trabalhadores. Se medidas de segurança tivessem sido tomadas logo no começo do ano, o que já era concebível (portanto três semanas antes do que fez o governo chinês), talvez a pandemia pudesse ter sido controlada ainda no seu nascedouro.
Por outro lado, uma vez que a crise se mostrou impossível de ser “escondida”, e foi tratada, os elementos planejados da economia chinesa, sobretudo suas enormes e dominante empresas estatais, demonstraram a sua superioridade sobre os países capitalistas. A construção do hospital com tamanha rapidez foi possível apenas pela existência de grandes estatais em Wuhan, que não estão voltadas predominantemente para o lucro. O governo de Wuhan ordenou a uma dessas empresas que projetasse e construísse instalações de emergência. Isso prova que a predominância do setor estatal na economia chinesa, apesar de enormes aberturas ao capital privado, é uma conquista importante, que possibilitou enfrentar o coronavírus de forma mais resoluta.
Os investimentos e alocação de recursos na área da saúde fazem parte da “tigela de arroz de ferro” dos subsídios estatais aos trabalhadores, que está ficando mais frágil a cada dia, apesar de algumas melhorias parciais. O tratamento de saúde na China é subsidiado pelo Estado, muitas vezes em grande porcentagem, mas não é gratuito. Com uma vitória dos trabalhadores contra a elite burocrática (revolução política), seria uma tarefa garantir um sistema público universal, inclusive nacionalizando os recursos de milhares de hospitais privados hoje existentes na China, que realizam um pequeníssimo número de atendimentos (para os que podem pagar) e que certamente poderiam ser mais bem utilizados se postos a serviço dos interesses dos trabalhadores.
Como relatado pela própria OMS, houve um massivo deslocamento de recursos, com muitos médicos realizando consultas online, para que as pessoas não precisassem sair de casa. Cestas básicas e remédios foram entregues em casa. Mais de um milhão de testes rápidos foram produzidos por dia para controlar o vírus, com os resultados saindo em menos de 4 horas. No total, mais de 40 mil profissionais de saúde foram deslocados de outras regiões para Hubei. O sistema de saúde público da China emprega pelo menos 89% dos trabalhadores urbanos que trabalham neste setor (dados de 2011), inclusive centenas de médicos, técnicos e enfermeiros que foram deslocados para esse esforço. Isso sem considerar empresas de municipalidades e cooperativas que também são controladas pelo Estado. Os hospitais públicos foram responsáveis por 85% dos atendimentos em 2017. Hoje, a China não possui um sistema de saúde capaz de cobrir a todos (especialmente nas áreas rurais). Mas a saúde ainda tem um amplo predomínio estatal.
“De acordo com estatísticas da Comissão Nacional de Saúde, no final de 2017, havia mais de 18.000 hospitais privados na China, representando 60% do número total de hospitais. O número de hospitais privados excedia o de hospitais públicos, mas eles foram responsáveis por apenas 490 milhões de atendimentos, menos de 15% do total. Yang concordou com a falta de confiança em hospitais particulares. ‘Especialmente para doenças complexas, a primeira escolha dos pacientes é um grande hospital público, onde especialistas trabalham. Além disso, a maioria dos hospitais privados não é coberta por seguro médico e os pacientes têm encargos financeiros relativamente pesados’. Atualmente, os hospitais públicos ainda desempenham um papel dominante na China. Por outro lado, os hospitais privados estão em uma posição fraca, limitada pela falta de recursos, baixa cobertura de seguro médico e fraca imagem da marca”.
— O futuro das instituições médicas privadas parece promissor, China Daily, setembro de 2018.
Nós rejeitamos a narrativa reacionária que culpa a China pela pandemia do coronavírus, e que fomenta o racismo e a xenofobia contra os chineses em várias partes do mundo. Se a doença tivesse surgido em qualquer outro país do mundo, a lentidão da detecção e tragédia subsequente teria provavelmente sido bem maior. Ao mesmo tempo, não aceitamos a narrativa de uma postura supostamente “exemplar” dos dirigentes do PCC. Como mostrado, falharam no tempo da resposta e buscaram intimidar aqueles que alertavam para o problema de forma precoce. Mas acima de tudo, destacamos a superioridade dos elementos de transição ao socialismo, ainda existentes na economia e sociedade chinesas, apesar de corroídos pela burocracia, para enfrentar grandes crises. Enquanto dezenas de milhares de mortos já se somam na Itália, Espanha e Estados Unidos, a China conseguiu parar o número de mortos em torno cerca de três mil, e conter a propagação do vírus.
4. O caso da indústria automotiva e o da indústria de telefonia móvel
Vamos analisar dois casos que ilustram bem a situação presente da economia chinesa: a propriedade estatal dos meios de produção estratégicos, mantida e controlada pela burocracia, ainda que em joint-ventures com empresas capitalistas em alguns casos; e a abertura à exploração privada de outros setores, vistos como “não estratégicos”. Nenhuma dessas duas formas corresponde ao interesse dos trabalhadores, que devem ter como perspectiva o controle das empresas por comissões proletárias, eleitas nos locais de trabalho, associada ao planejamento econômico central que leve em conta as correções feitas localmente e na esfera do consumo. Porém, a primeira forma contém um passo dado na transição ao socialismo num contexto em que a burguesia foi removida do poder político – a propriedade privada foi eliminada desse setor. Outro passo importante é a existência de um planejamento central, nesse caso burocraticamente definido.
Em muitos casos, o burocrata funciona como um “patrão” e o trabalhador não sente menor pressão para trabalhar e cumprir metas do que se reportasse a um capitalista. Porém, um burocrata não tem a propriedade assegurada para si e seus descendentes. Há inúmeros casos de dirigentes destituídos de seus cargos em momentos de viradas políticas ou por conta de disputas. Nesses casos, eles são substituídos por outros representantes ou apadrinhados do PCC. Essa é uma diferença marcada entre a propriedade estatal e a propriedade privada. Para uma democracia proletária, na preparação para a transição ao socialismo, bastaria colocar representantes diretos das comissões e conselhos de trabalhadores no comando dessa propriedade já arrancada dos capitalistas e tomar controle do planejamento econômico central. Isso não é uma conquista menor.
A indústria automotiva chinesa é dominada por grandes empresas estatais. Há outras estatais menores e também algumas indústrias privadas. A maior parte dessas estatais está em joint-ventures com empresas automotivas americanas, japonesas, francesas e alemãs. As indústrias têm milhares de filiais, as quais são organizadas pelo tipo de modelo das empresas estrangeiras fabricam, havendo também protótipos próprios. O Estado é proprietário majoritário em todos os casos.
Desde os anos 1990, a China tem se apropriado gradualmente das técnicas de produção e protótipos estrangeiros, de formas legais e ilegais, denúncia que aparece em diferentes fontes que defendem os interesses das companhias. Recentemente, o governo chinês começou a exigir plena abertura das marcas com relação aos protótipos. Em 2015, por exemplo, empresas chinesas começaram a fabricar protótipos de carros elétricos, mas as marcas tinham que compartilhar abertamente seus “segredos” como pressuposto para as joint-ventures, provocando a ira das empresas capitalistas. Os capitalistas sabem que não tem o poder e o controle sobre a produção de veículos, para os quais eles devem obrigatoriamente se associar a uma estatal e tem uma parcela reduzida dos lucros que teriam se explorassem de forma “livre” os trabalhadores. Eis uma lista das maiores produtoras de veículos da China (dados de produção do ano de 2017).
- SAIC – Estatal em joint-venture com a GM americana (Xangai) — 6,9 milhões de veículos produzidos.
- Dongfeng Motor Corporation – Estatal em joint-venture com várias empresas, dentre as quais Honda, Nissan, PSA Peugeot Citroën, Renault e Kia (Wuhan) – 4,1 milhões de veículos produzidos.
- FAW Group Corporation – Estatal com marcas próprias, mas minoritariamente produz com marcas de empresas estrangeiras (Changchun) – 3,3 milhões de veículos produzidos.
- Grupo Automotivo Chang – Estatal em joint-ventures com Suzuki, Ford, Mazda e Peugeot (Chongqing) – 2,8 milhões de veículos produzidos.
- Grupo BAIC – Estatal produtora de veículos de marca própria e veículos militares. Minoritariamente, tem joint-ventures com Hyundai e Mercedes. Responde diretamente à Comissão de Administração e Supervisão dos Recursos das Estatais (SASAC). (Beijing) – 2,5 milhões de veículos produzidos.
- Grupo Automotivo de Guangzhou – Estatal em joint-venture com Fiat, Honda, Mitsubishi e Toyota. (Guangzhou) – 2 milhões de veículos produzidos.
- Geely – Privada chinesa, que produz em parceria com a marca sueca Volvo, além de marcas próprias. – 780 mil veículos produzidos.
As empresas seguintes na lista seriam também estatais, como a Brilliance Auto e a Cherry.
Enquanto isso, na produção de telefones celulares, a situação é completamente oposta. Existe uma estatal na China que está entre as grandes fabricantes, que é o Grupo Telecom Datang, de Beijing. Trata-se de uma grande empresa, mas que é sustentada pelos bancos estatais, pois o mercado de telefonia passou a ser dominado por empresas estrangeiras nos anos 1990, e hoje passa a ser hegemonizado pelas companhias privadas chinesas:
“Apesar da recente desaceleração no crescimento do mercado nos últimos anos, a China continua sendo o maior mercado mundial de smartphones desde 2012. Em 2019, a venda de smartphones na China atingiu mais de 366 milhões de unidades, representando quase 27% do volume total de smartphones vendidos no mundo. Prevê-se que o número de usuários de smartphones na China atinja cerca de 0,78 bilhão até 2020, enquanto as assinaturas de planos de telefonia em setembro de 2019 já atingiram cerca de 1,6 bilhão. O serviço de telefonia móvel na China é fornecido por três operadoras de rede de telecomunicações domésticas, a saber, a China Mobile, a China Unicom e a China Telecom”.
“O grande mercado de smartphones na China também levou a uma concorrência acirrada entre vários fabricantes. Apple e Samsung eram líderes no mercado desde o início da tendência dos smartphones, mas vinham perdendo gradualmente participação de mercado para fabricantes de smartphones domésticos na China, como Huawei, Oppo, Vivo e Xiaomi. No terceiro trimestre de 2019, enquanto a marca chinesa Huawei ficou em primeiro lugar com um volume de remessa de cerca de 41,5 milhões de unidades, o volume de remessas do iPhone caiu para aproximadamente 8,1 milhões de unidades, o que era aproximadamente metade do pico de cerca de 17 milhões cinco anos atrás. As empresas chinesas há muito deixam o segmento barato e estão produzindo cada vez mais smartphones de ponta, com considerável sucesso. Eles se beneficiaram de um rico ecossistema local de fabricação e design de smartphones, o que lhes permite competir com marcas estrangeiras de smartphones.”
— Samantha Wong, O mercado de smartphones na China – Estatísticas e Fatos.
Enquanto as empresas privadas como Huawei, Oppo, Vivo (não confundir com a operadora brasileira) e Xiaomi têm dominado a fabricação dos aparelhos, o fornecimento dos serviços de telecomunicação é exclusivo das três empresas estatais citadas, China Mobile, a China Unicom e a China Telecom. A China Mobile, que retém 70% das contas, especialmente, é controlada diretamente pelo governo central chinês por meio da SASAC. Ela é a maior prestadora de serviços de telefonia do mundo, com mais de 900 milhões de contas. Esse é um elemento visto também como estratégico, e não menos para os fins de controle e repressão da burocracia do PCC.
Os fabricantes de celulares estão entre os setores da nova burguesia chinesa que mais tem se destacado nos últimos anos. A burocracia os vê como “aliados” no crescimento da China e mostra a despreocupação dos governantes para com a classe trabalhadora que é brutalmente explorada em suas fábricas. É comum que as condições de trabalho nas companhias privadas chinesas sejam ainda piores que nas empresas estrangeiras. Mesmo assim, isso expõe a fraqueza da tese a respeito de como o capitalismo estaria “restaurado” na China. Não é o que pensam os capitalistas que gostariam de vender serviços de telefonia celular ou os que gostariam de vender veículos sem deixar a parte significativa do rendimento nas mãos do Estado operário burocratizado.
5. As nacionalidades e o caso dos uigures
O grupo étnico Han compõe 92% da população chinesa, e há minorias de uigures, tibetanos, mongóis, etc. Esses grupos sofreram opressão histórica pela maioria Han por séculos antes da revolução de 1949. A revolução chinesa, embora tenha levado tecnologia e desenvolvimento social a essas nacionalidades ao serem assimiladas ao território chinês, não encerrou tal opressão. Embora o PCC tenha cumprido um papel progressivo em defender um regime secular e uma modernização contra as castas religiosas, isso foi feito de forma violenta, não por meio do convencimento e desconstrução das ideologias religiosas dominantes. Posteriormente, tampouco foram feitos esforços de uma integração legítima que não significasse a imposição da superioridade Han. Isso acabou significando um tiro pela culatra, pois em muitos casos levou à radicalização de parcelas dos povos, que se colocaram em apoio a versões mais agressivas de ideologias reacionárias.
Os uigures, por exemplo, são uma etnia de origem turcomena que soma mais de 11 milhões de pessoas na China, principalmente na região autônoma de Xinjiang. É um povo de religião majoritariamente muçulmana. Desde a revolução chinesa, tem havido um estímulo à imigração Han para Xinjiang como uma forma de contrabalancear a pressão separatista. Hoje, a população é composta por 45% uigures, 40% Han, 6,5% cazaques e o restante entre outras etnias.
O movimento de maior destaque pela separação dos uigures atualmente é o “Movimento de Liberação do Turquestão Oriental”, uma frente guarda-chuva para vários grupos distintos. Os principais recebem financiamento imperialista de formas variadas, como o Partido do Congresso Uigur, que recebe fundos do Incentivo Nacional pela Democracia (NED) do governo americano, ou o Governo Exilado do Turquestão Oriental, sediado em Washington e com relações íntimas com os congressistas. Nos anos 2000, a bandeira de independência do Turquestão Oriental uigur foi levantada também pelo Partido Islâmico do Turquestão, uma organização com vínculos com o Al-Qaeda e que já realizou mais de 200 atentados terroristas.
Desde 2017, o governo chinês iniciou um programa de campos de reeducação para os uigures em Xinjiang. Oficialmente, os campos são chamados de “Centros de treinamento e educação vocacional”. O governo chinês afirma que eles têm o objetivo de integração dos indivíduos à sociedade e de combater influência do terrorismo islâmico. Porém, há inúmeros relatos de casos de violência dentro desses centros. É preciso ter cautela, pois existe muita desinformação imperialista disfarçada de preocupação com os direitos humanos. Obviamente, os imperialistas só se preocupam com os direitos humanos nos países onde querem realizar invasões ou golpes de Estado, como um desculpa, nunca em seus próprios territórios ou países aliados, onde costumam estar entre os maiores transgressores de tais direitos.
Mas os números, que não são disputados pelas autoridades chinesas, não deixam dúvida do caráter de perseguição racial da medida, já que até um milhão de uigures foram presos por períodos variados ao longo dos últimos três anos, inclusive muitos menores de idade. Nenhuma “guerra ao terrorismo” pode justificar uma política de encarceramento em massa como essa, apenas o caráter policial da ditadura burocrática do PCC. Mais uma vez, isso só vai provocar ódio em uma geração de uigures, que vão associar tal política ao “comunismo” e jogar água no moinho da contrarrevolução.
Nós não defendemos que nenhum povo seja forçosamente assimilado ao Estado chinês. Opomos as ações discriminatórias contra as nacionalidades, sejam elas feitas por indivíduos ou pelo Estado. As medidas repressivas em massa devem ser denunciadas pelos marxistas como crimes da burocracia, que terão como efeito a desmoralização do socialismo e um empurrão de amplos setores para os braços da reação.
Porém, os movimentos pela separação dessas regiões devem também passar por um escrutínio. Os imperialistas usam demagogicamente a causa da independência nacional. Esse também tem sido o caso com os principais movimentos pela independência do Tibete, região onde vivem mais de 3 milhões de pessoas. Os principais movimentos que veem o líder religioso Dalai Lama como governante legítimo da região (sejam eles sinceros em defender isso ou o façam com a intenção de impor outro tipo de regime contra a China) receberam apoio ideológico e financeiro das agências de inteligência dos EUA. Se essa independência for realizada sob seu domínio, levará ao fortalecimento de tentativas de contrarrevolução contra os interesses dos trabalhadores e camponeses chineses e tibetanos. Isso vale também para os independentistas, tanto os “democráticos” (apoiados pelos imperialistas) quanto os fundamentalistas islâmicos, em Xinjiang.
Nosso programa é pelo estabelecimento de um regime socialista, laico e independente em regiões como o Tibete e Xinjiang. Tal consigna deixa claro que defendemos o direito de tais povos à autodeterminação, mas que tal direito é dependente, nesse caso, de uma postura de rechaço às ideologias reacionárias e ao imperialismo. Uma vez que seja estabelecido um regime como esse, ele poderia discutir sua adesão ou não a uma federação com a China, e sob quais condições. Trata-se de uma perspectiva que se opõe, em primeiro lugar, à “independência” que sirva como uma ponta de lança imperialista contra a China; e em segundo lugar, contra a perspectiva de assimilação forçada ao Estado chinês.