Carta-Resposta à Transição Socialista
Sobre a iniciativa de formação do Comitê de Enlace (leia aqui o Chamado à conformação de uma nova organização revolucionária)
Dezembro de 2021
Estimados camaradas, ao tempo que os saudamos, adiantamos nossas honestas desculpas pela demora em respondê-los. Em primeiro lugar, reivindicamos a iniciativa dos companheiros da Transição Socialista em tentar encontrar caminhos que tirem os revolucionários do isolamento organizativo. Entendemos esse movimento de reagrupamento dos revolucionários como fundamental para qualquer transformação do atual estado da esquerda socialista, no Brasil e no mundo. Entretanto, justamente por se tratar de um movimento relevante, acreditamos que ele não possa ocorrer sem que as diferenças políticas sejam colocadas de forma fraterna, mas franca e clara, tal como devem ser os diálogos entre revolucionários.
De maneira correta os companheiros caracterizam que vivemos um dos períodos mais difíceis já enfrentados pela classe trabalhadora brasileira, período esse que cruza a crise econômica, sanitária e social com a crise política-histórica de uma República em decomposição. Frente às mais de 600 mil mortes de trabalhadores, não nos resta dúvidas que, depois dos séculos de extermínio das nações indígenas pela colonização ibérica e da escravidão de milhões de negros, estamos diante de uma das maiores tragédias da história do país, e que a “esquerda” da ordem reduziu seu papel a contar os mortos com a mesma precisão com que conta o coeficiente eleitoral, aceitando tacitamente a legalidade e a continuação do poder burguês e mesmo do governo Bolsonaro.
No entanto, é preciso explicar sob a luz da luta de classes por qual razão mesmo diante de sua paralisia em um cenário tão drástico o PT, em especial Lula, conseguiram retomar sua liderança “como se a história se repetisse num ciclo sem fim”, tal como caracterizam os camaradas da TS. Em nosso juízo, a retomada do PT ocorre por duas determinações centrais, sendo que uma decorre da outra: o fôlego que o PT ganhou após o impeachment diante das sucessivas crises do governo Bolsonaro e da estagnação econômica; e o reaparecimento de Lula após suas vitórias na Justiça depois de um longo processo de disputas. Seu ressurgimento vem da necessidade de um nome que seja uma síntese das necessidades da grande burguesia no próximo período, isto é, aplicar ataques de austeridade contra a classe trabalhadora, ao passo que a contenha diante desses mesmos ataques, com expectativas na estabilidade e num novo ciclo de crescimento econômico para a burguesia, cenário esse que parece longe de ser verdade em médio prazo.
O golpe contra Dilma em 2016 (caracterização essa não reconhecida pela TS) acelerou uma série de ataques contra o proletariado. Não porque o governo petista era um governo dos trabalhadores e se negava a atacar a classe trabalhadora, mas sim porque o segundo mandato de Dilma nasceu com uma série de contradições e percalços que não a permitiram avançar de forma acelerada com todas as medidas desejadas pelos capitalistas, daí a necessidade da burguesia em derrubá-la. Para efeito de exemplo, podemos citar que Dilma carregava a contradição de ter sido eleita (por pequeníssima margem) pelo decisivo apoio do movimento sindical e popular, mas que reconduzida ao poder teria que encontrar um meio de se colocar contra as bases desses movimentos. Ademais, o golpe orquestrado entre o judiciário, legislativo, Forças Armadas e pelo grande capital interrompeu a experiência que os trabalhadores brasileiros estavam a fazer com um governo de conciliação de classes e levou depois, a partir da canalização política das reacionárias manifestações do “Fora Dilma”, ao surgimento do primeiro governo de extrema-direita pós-redemocratização que combina o autoritarismo e a reacionarismo com a aplicação integral da agenda capitalista. Foi a vitória do golpe que ajudou a criar uma mitologia de que os governos petistas eram “amigos dos trabalhadores” ou que “tudo era diferente antes”, escondendo a enorme parcela de continuidade que também existe entre essas duas formas de gestão do capitalismo brasileiro (o que inclui desde os mesmos partidos na base de apoio, até mesmo muitas das mesmas figuras).
Diferente da TS, não nos somamos às fileiras que apoiaram as manifestações promovidas e impulsionadas pelos setores reacionários nas manifestações “Fora Dilma” e nem apoiamos demais ataques judiciários contra o PT. Por mais que fossemos críticos à gestão burguesa e aos ataques contra os trabalhadores perpetrados pelo governo Dilma, nossa posição foi de que a base social que se manifestava era claramente de direita, e suas reivindicações em nada estavam associadas às da classe trabalhadora. Em tal cenário, inerte à queda do Governo Dilma, mas sem participar das manifestações “verde-amarelo”, parte significativa da classe trabalhadora, sem completar sua experiência com o petismo, voltou a ver o PT como “o mal menor”. Enquanto não somos parte do enorme leque de organizações que viu nisso a necessidade de conferir algum tipo de apoio eleitoral ao PT, fosse em primeiro ou segundo turno, por motivos “táticos” ou “técnicos”, enxergamos que tal movimento que buscou a remoção do PT entre 2015-2016 jamais deveria ter sido composto ou apoiado por revolucionários. Somar-se a tal movimento, nesse contexto, equivalia a ser um joguete da intenção dos setores mais reacionários da política brasileira naquele momento, parte de uma “rebelião reacionária” liderada por setores da burguesia, pequena-burguesia e funcionários do alto escalão do Estado, que falavam abertamente seu programa reacionário (por mais que insatisfações sociais mais gerais se mesclassem entre os aderentes que iam às ruas). Esse nos parece um ponto central de desacordo com os companheiros da TS.
Mediante as contribuições sobre a fase imperialista do capital, escritas pelo camarada Lenin e a concepção da Revolução Permanente, elaborada pelo camarada Trotsky, não negamos que países dependentes como o Brasil e o conjunto da América Latina tenham tarefas democráticas elementares a serem realizadas. Afinal diferentemente de outros países, a burguesia logrou se consolidar nessa região sem precisar realizar uma destruição profunda das relações pré-capitalistas da escravidão, servidão indígena e eliminação da antiga classe proprietária. O capitalismo tomou, na periferia do sistema, aspectos contraditórios muito mais fortes. Elementos como a distribuição da terra e de fim da espoliação imperialista permanecem absolutamente atuais, e só podem se resolver mediante a expropriação dos capitalistas (tanto nacionais quanto estrangeiros).
Num eixo que não é idêntico, mas com o qual existe relação, já havíamos divergido em outras ocasiões à posição defendida pelos companheiros do então Movimento Negação da Negação de não considerar como prioritárias demandas tomadas por setores oprimidos e marginalizados como negros, mulheres e LGBTQIA+. Em vez de dividir a classe trabalhadora, aliar-se a esses setores é trazê-los à luta, reconhecer sua condição subalterna no sistema capitalista e defender que não buscamos apenas um sistema econômico diferente, mas a construção de uma nova sociedade, sem classes, sem exploração e sem opressão. Para nós, o enfrentamento a essas formas de opressão, ligando-as à necessidade de superar o sistema capitalista e destruir o Estado burguês, é um eixo chave para a revolução socialista em nosso país.
Trotsky e Lenin nunca negaram a necessidade de realizar tarefas democráticas em países subjugados economicamente e/ou politicamente pelo imperialismo, mas apontaram que a realização de tais tarefas só pode ocorrer sob a direção do proletariado em um movimento ininterrupto ao socialismo. Por isso denunciamos a cooptação pelos liberais que transformam as lutas de setores oprimidos em meras demandas “identitárias”.
Não há base no pensamento de Trotsky que permita associar a defesa das tarefas democráticas à capitulação ao campo burguês “progressista” ou nacionalista. Por essa razão, não temos acordo com os camaradas a respeito de que uma das supostas origens da capitulação da esquerda ao petismo estaria “na defesa das tarefas democráticas”, mas sim a adaptação dessa esquerda ao Estado burguês (seja pelo caminho eleitoral, seja pelo sindicalismo atrelado ao Estado ou pela adoção de posições liberais). Não à toa, praticamente toda a esquerda brasileira, mesmo aquela que se reivindica socialista, encara o Estado burguês como entidade a ser ocupada por eles mesmos, e que com isso poderia “sanar” o caos gerado pelo capitalismo; em vez disso, o Estado é o máximo organizador da ordem burguesa, que nos países dependentes subjuga a nossa classe e também mantém a submissão ao imperialismo, e que precisa ser esmagado pela insurreição proletária.
Cabe a nós revolucionários ajudar a classe trabalhadora brasileira a trilhar pelo programa da revolução permanente em âmbito interno, ou seja, ajudá-la a ultrapassar todas as tarefas imediatas e construir um Estado Operário, que ao mesmo tempo será apenas um entre tantos exigidos para o triunfo da revolução socialista internacional.
É justamente pela importância que damos a esse chamado que nos ocupamos de respondê-lo da maneira mais honesta possível. Entendemos que não é possível uma aproximação responsável e coerente entre os grupos sem um debate sobre as posições tomadas pela TS, que nos possibilitassem compreender nossas convergências e divergências, verificando suas origens e sua profundidade. Além disso, um processo como esse deve ser pautado pelo amplo diálogo, só assim seria possível que o Comitê de Enlace passe como um processo maduro de debates pautados sob a luz da teoria e da prática revolucionária, e mesmo para companheiros e companheiras que estão em busca de se reorganizarem e que a duras penas vêm tentando manter acesa a luz do programa revolucionário.
Saudações revolucionárias,
Reagrupamento Revolucionário