Em Direção à Internacional Comunista
O evento que transformou Lenin de um socialdemocrata revolucionário russo no líder fundador do movimento comunista mundial pode ser precisamente datado – 4 de agosto de 1914. Com o começo da Primeira Guerra Mundial, a bancada parlamentar do SPD alemão votou unanimemente em favor de créditos de guerra para o Reich. Tendo agora experimentado mais de 60 anos de traições socialdemocratas e stalinistas dos princípios socialistas, é difícil hoje para nós entender o impacto absolutamente chocante de 4 de agosto sobre os revolucionários da Segunda Internacional. Luxemburgo sofreu um colapso nervoso em reação à onda de nacional-chauvinismo que varreu o movimento socialdemocrata alemão. Lenin a princípio se recusou a acreditar no relatório sobre a votação no Reichstag do órgão do SPD, Vorwärts, descartando aquela edição como uma farsa feita pelo governo do Kaiser.
Para socialdemocratas revolucionários, 4 de agosto não apenas simplesmente destruiu suas ilusões num partido em particular e sua liderança, mas desafiou toda a sua visão política mundial. Para marxistas da geração de Lenin e Luxemburgo, o progresso da socialdemocracia, melhor representado na Alemanha, tinha parecido firme, irreversível e inexorável.
O Significado Histórico da Segunda Internacional
A era da (Segunda) Internacional Socialista (1889-1914) representou um crescimento extraordinariamente rápido no movimento operário europeu e das correntes marxistas dentro dele. Com a exceção dos sindicatos britânicos (que apoiavam os liberais burgueses), as organizações que formavam a Primeira Internacional (1864-74) eram grupos de propaganda que contavam quando muito com alguns milhares. Em 1914, os partidos da Internacional Socialista eram partidos de massa com milhões de apoiadores por toda a Europa.
No período da Primeira Internacional, havia talvez mil marxistas na face da Terra, esmagadoramente concentrados na Alemanha. Significativamente, não havia marxistas franceses na Comuna de Paris de 1871, apenas o húngaro Leo Franckel. Em 1914, o marxismo era a mais importante tendência no movimento internacional dos trabalhadores, a doutrina oficial dos partidos proletários de massa na Europa central e do leste. Pode-se entender portanto que Kautsky e os socialdemocratas poderiam considerar o marxismo como a expressão política natural e inevitável do movimento operário moderno.
A Grã-bretanha, é verdade, tinha um movimento operário de massa que era politicamente liberal e abertamente colaboracionista de classe. Entretanto, os próprios Marx e Engels tinham explicado o atraso do movimento operário britânico como um produto de circunstâncias históricas particulares (por exemplo, a dominação britânica na economia mundial, o antagonismo nacional inglês-irlandês, o Império). Além do mais, marxistas na Segunda Internacional, incluindo Lenin, consideravam a fundação do Partido Trabalhista em 1905 como um passo progressivo significativo em direção a um partido proletário socialista de massa na Grã-bretanha. Assim, o atraso político relativo do movimento dos trabalhadores britânicos não desafiava fundamentalmente a visão de mundo socialdemocrata ortodoxa (ou seja, kautskiana).
É fato consumado que o movimento marxista pré-1914 era familiar com renegados e revisionistas – os seguidores de Bernstein na Alemanha, Struve e os “marxistas legais” na Rússia. Lenin teria adicionado Plekhanov e os Mencheviques a essa lista. Mas essas regressões em direção ao reformismo liberal pareciam afetar apenas os elementos intelectuais no movimento socialdemocrata. O SPD, como um todo, parecia solidamente marxista em suas políticas, enquanto o marxismo era vitorioso contra o radicalismo socialista da velha escola (por exemplo, Jaures) em outras seções da Internacional (por exemplo, francesa, italiana).
4 de Agosto foi a primeira grande contra-revolução interna no movimento operário, e ainda mais destrutiva por que ela não era esperada. O triunfo do chauvinismo e colaboracionismo de classe nos partidos principais da Internacional Socialista despedaçou o otimismo trivial, passivo, do marxismo kautskiano. Depois da grande traição do SPD, indo para o lado de sua “própria” burguesia, os marxistas revolucionários não poderiam mais considerar o oportunismo no movimento dos trabalhadores como um fenômeno episódico ou marginal ou como um produto de um atraso político num caso histórico particular (como na Grã-bretanha).
As lideranças estabelecidas da maioria dos partidos socialistas de massa dificilmente poderiam ser descartados como intelectuais democratas pequeno-burgueses instáveis, como parceiros de viagem da socialdemocracia. Foi assim que Kautsky caracterizou os revisionistas bernisteinianos e como Lenin tinha descartado os Mencheviques. Mas os líderes chauvinistas do SPD em 1914 – Friedrich Ebert, Gustav Noske, Philipp Scheidemann – tinham construído sua trajetória ascendente no partido a partir de sua base, começando como jovens. Todos os três tinham sido trabalhadores: Ebert tinha sido um fabricador de selas, Noske um açougueiro e Scheidemann um tipógrafo. Ebert e Noske começaram suas carreiras no SPD como funcionários locais no sindicato, Scheidemann como um jornalista para um jornal local do partido. Os líderes oportunistas e chauvinistas eram portanto em muito feitos da carne e do sangue da socialdemocracia alemã.
Nem podiam as ações do SPD ser explicadas como um reflexo de um atraso político histórico da classe operária alemã. Ebert, Noske e Scheidemann tinham sido treinados como marxistas pelos seguidores pessoais de Marx e Engels. Eles tinham votado vezes e mais vezes por resoluções socialistas revolucionárias. Ao apoiar a guerra, os líderes do SPD sabiam que estavam violando os princípios socialistas de longa data do seu partido.
Até o momento do fatídico voto do Reichstag, o SPD adentrou em uma agitação anti-guerra de massa. Em 25 de julho de 1914 a executiva do partido lançou uma proclamação que concluía:
“Camaradas, nós apelamos a vocês para expressar nas reuniões de massa sem atraso a firme determinação do proletariado alemão de manter a paz…. As classes dominantes que em tempos de paz enganam vocês, desprezam vocês e os exploram, usariam vocês como comida para os canhões. Em todo lugar deve soar nos ouvidos daqueles no poder: ‘Nós não teremos guerra! Abaixo à guerra! Vida longa à irmandade internacional dos povos!’”
– reproduzido por William English Walling, ed., Os Socialistas e a Guerra (1915)
Ao considerar a traição socialchauvinista da socialdemocracia alemã, Lenin foi levado a perceber que os Bolcheviques não eram simplesmente um equivalente russo do SPD com uma liderança revolucionária principista. A seleção, teste e treinamento dos membros no partido de Lenin eram fundamentalmente diferentes do partido de Bebel e Kautsky. E nessa diferença residia a razão de, em agosto de 1914, os representantes parlamentares do SPD terem apoiado o “seu” Kaiser, enquanto seus equivalentes no Partido Operário Social Democrata Russo (Bolcheviques) foram, ao contrário, trancafiados nas prisões do Czar.
Lenin Rompe com a socialdemocracia
A política básica de Lenin com relação à guerra e ao movimento socialista internacional foi desenvolvida dentro de poucas semanas após o início das hostilidades. Essa política tinha três elementos principais. Um, os socialistas devem lutar pela derrota, acima de tudo, de seus “próprios” Estados burgueses. Dois, a guerra demonstrava que o capitalismo na época imperialista ameaçava destruir a civilização. Os socialistas devem então trabalhar para transformar a guerra imperialista em guerra civil, ou seja, em revolução proletária. E três, a Segunda Internacional tinha sido destruída pelo socialchauvinismo. Uma nova internacional, revolucionária, deveria ser construída através de um completo racha com os oportunistas do movimento socialdemocrata.
Essas políticas, que permaneceram centrais para as atividades de Lenin até o momento da revolução de Outubro, eram claramente expressas em seus primeiros artigos sobre a guerra:
“É dever de cada socialista conduzir propaganda da luta de classes … trabalho dirigido com o objetivo de transformar a guerra de nações em guerra civil é a única atividade socialista na era de um conflito armado imperialista entre todas as nações…. Levantemos bem alto a bandeira da guerra civil! O imperialismo põe em perigo o destino da existência européia: essa guerra será seguida de outras a não ser que haja uma série de revoluções bem-sucedidas….”
“A Segunda Internacional está morta, destruída pelo oportunismo. Abaixo o oportunismo, e longa vida à Terceira Internacional, livre não apenas dos ‘vira-casacas’ …mas dos oportunistas também.”
“A Segunda Internacional fez o seu trabalho útil de preparação na organização preliminar das massas proletárias durante o longo, ‘pacífico’ período da mais brutal escravidão capitalista e mais rápido progresso capitalista no último terço do século dezenove e no começo do século vinte. À Terceira Internacional cabe a tarefa de organizar as forças proletárias para uma sublevação revolucionária contra os governos capitalistas, pela guerra civil contra a burguesia de todos os países, pela captura do poder político, pelo triunfo do socialismo!”
– “A Posição e as Tarefas da Internacional Socialista” (Novembro de 1914)
Enquanto Lenin era otimista sobre ganhar a base de massas dos partidos socialdemocratas oficiais, ele entendia que ele estava reivindicando rachar o movimento dos trabalhadores em dois partidos antagônicos, um revolucionário, o outro reformista. Assim, a demanda de Lenin por uma Terceira Internacional encontrou muito mais oposição entre os socialdemocratas que estavam contra a guerra do que a sua denúncia veemente do socialchauvinismo. De fato, a maioria das polêmicas de Lenin nesse período (1914-16) não estavam direcionadas aos descaradamente socialchauvinistas (Scheidemann, Vandervelde, Plekhanov), mas sim aos centristas que faziam apologia aos socialchauvinistas (Kautsky) ou se recusavam a romper com eles (Martov).
Assim, Lenin foi forçado a se confrontar e rejeitar explicitamente a posição socialdemocrata ortodoxa sobre a questão do partido, o “partido de toda a classe” kautskista:
“A crise criada pela grande guerra tirou todas as máscaras, arrastou embora todas as convenções, expôs um abscesso que há muito chegou à cabeça, e revelou o oportunismo em seu verdadeiro papel de aliado da burguesia. O corte organizativo completo de tais elementos dos partidos operários se tornou imperativo…. A velha teoria de que o oportunismo é um ‘fardo legítimo’ em um partido único que não conhece ‘extremos’ agora se tornou uma tremenda ilusão para os trabalhadores e um tremendo obstáculo para o movimento da classe operária. O oportunismo sem disfarce, que imediatamente repele as massas trabalhadoras, não é tão destrutivo e ameaçador como essa teoria do mal dourado…. Kautsky, o mais célebre representante dessa teoria, e também a autoridade chefe na Segunda Internacional, se mostrou um hipócrita consumado e um velho mestre na arte de prostituir o marxismo.”
– “O Colapso da Segunda Internacional” (maio-junho de 1915)
Ao considerar o crescimento do oportunismo nos partidos socialdemocratas da Europa Ocidental, Lenin naturalmente revisou a história do movimento russo e do bolchevismo. Ele se deu conta de que a organização bolchevique não havia, de fato, sido construída de acordo com a fórmula kautskista. Ela havia se separado organizativamente completamente e de maneira formal dos oportunistas russos, os Mencheviques, dois anos e meio antes do começo da guerra e na prática desde 1912. Lenin agora tomava o Partido Bolchevique como um modelo para uma nova e revolucionária Internacional:
“O Partido Operário Social Democrata Russo há muito saiu da companhia dos seus oportunistas. Além do mais, os oportunistas russos agora se tornaram chauvinistas. Isso apenas fortifica-nos em nossa opinião de que um racha com eles é essencial para os interesses do socialismo…. Nós estamos firmemente convencidos de que, no presente estado das coisas, um racha com os oportunistas e chauvinistas é o dever primário dos revolucionários, assim como um racha com os sindicatos amarelos, anti-semitas, os sindicatos de trabalhadores liberais, foi essencial em ajudar a ganhar velocidade o crescimento de consciência dos trabalhadores atrasados e os lançou nas fileiras do partido socialdemocrata.”
“Em nossa opinião, a Terceira Internacional deveria ser construída sobre esse tipo de base revolucionária. Para nosso partido, a questão da conveniência de um rompimento com os socialchauvinistas não existe, ela foi respondida por uma finalidade. A única questão que existe para o nosso partido é se é possível alcançar isso numa escala internacional num futuro imediato.”
– V.I. Lenin e G. Zinoviev, Socialismo e Guerra (julho-agosto de 1915)
Nós mantivemos ao longo dessa série que o leninismo, como uma extensão qualitativa do marxismo, surgiu em 1914-17, quando Lenin respondeu de uma maneira revolucionária à guerra imperialista e ao colapso da Segunda Internacional em hostis partidos socialchauvinistas. Essa visão foi contestada, por um lado pelos stalinistas que projetaram o culto da clarividência infalível do líder revolucionário desde o início da carreira política de Lenin e, por outro, pelos inúmeros centristas e reformistas de esquerda que querem erradicar ou distorcer a linha que separa o leninismo da socialdemocracia ortodoxa pré-1914 (kautskismo).
Entre os bolcheviques, entretanto, era amplamente reconhecido que o leninismo se originou em 1914 a não antes. Num artigo comemorativo seguido à morte de Lenin, Evgenyi Preobrazhensky, um dos principais intelectuais bolcheviques, escreveu:
“No bolchevismo, ou leninismo, nós devemos fazer uma distinção severa entre dois períodos – o período imediatamente antes da guerra mundial e o período aberto pela guerra mundial. Antes da guerra mundial, o camarada Lenin, apesar de realizar um marxismo revolucionário real, genuíno e sem distorções, não considerava ainda os socialdemocratas como agentes do capital nas fileiras do proletariado. Durante esse período, você encontrará mais de um artigo feito pelo camarada Lenin em que ele defende a socialdemocracia alemã em face das acusações e censuras que ela havia recebido, por exemplo, do campo dos populistas, sindicalistas, etc. de oportunismo contra-revolucionário, de traição do espírito revolucionário do marxismo….”
“Se, para nosso infortúnio, o camarada Lenin tivesse morrido antes da guerra mundial, nunca teria entrado na cabeça de ninguém falar de leninismo, como alguma forma de versão especial de marxismo, como aconteceria posteriormente. Lenin era o mais consistente marxista revolucionário…. Mas não havia nada específico em nosso bolchevismo no reino da teoria … para distinguí-lo de alguma forma do tradicional, ainda que verdadeiramente revolucionário, marxismo….”
“Se o camarada Lenin não tivesse vivido para ver esse período [pós-1914], ele teria entrado para a história como o mais iminente líder da ala esquerda da socialdemocracia russa…. Apenas o ano de 1914 o transformou num líder internacional. Ele foi o primeiro a colocar a questão básica: o que, num sentido amplo, essa guerra significa? Ele respondeu: essa guerra significa o começo da destruição do capitalismo e assim as táticas do movimento dos trabalhadores devem se direcionar a tornar a guerra imperialista uma guerra civil.”
– “Marxismo e Leninismo”, Molodoya Gvardiya, 1924 [nossa tradução]
O Que Significa o Socialchauvinismo?
Dentro de poucas semanas após o início da guerra, Lenin determinou o racha com os socialchauvinistas e que se trabalhasse por uma nova, revolucionária, Internacional. Mas ele não apresentou imediatamente uma explicação teórica (ou seja, histórica e sociológica) de porquê e como os partidos de massa do proletariado da Europa Ocidental tinham sucumbido ao oportunismo.
Aqui pode-se contrastar Marx e Lenin como políticos revolucionários. Marx em geral chegava a generalizações teóricas bem antes das conclusões programáticas, táticas e organizativas imediatas que fluíam das suas premissas sócio-históricas. Assim, no fim de 1848, após nove meses de revolução, Marx concluiu que a burguesia alemã era incapaz de derrubar o absolutismo. Entretanto, foi apenas um ano depois, no exílio, que Marx desenvolveu uma nova estratégia correspondendo à sua visão modificada da sociedade alemã. Em contraste, a confiança revolucionária de Lenin o levou a romper com o oportunismo e políticas falsas bem antes que ele unisse a isso generalizações teóricas correspondentes.
1914-16 foi um período em que a análise teórica de Lenin veio por trás de suas conclusões políticas e ações. Os escritos anteriores de Lenin sobre guerra e a Internacional identificavam o oportunismo socialdemocrata apenas como uma corrente político-ideológica. A única tentativa de relacionar o crescimento do oportunismo com condições históricas objetivas era a de que os partidos socialistas da Europa Ocidental haviam funcionado sob um longo período de legalidade burguesa.
A ausência de uma explicação sociológica e histórica para o oportunismo socialdemocrata era uma séria fraqueza na campanha de Lenin por uma Terceira Internacional. Era preciso demonstrar que 4 de agosto não era um episódio oportunista ou uma política errada reversível, para assim justificar plenamente rachar a socialdemocracia internacional. A luta de Lenin contra os centristas – Kautsky/Haase/Ledebour na Alemanha, Martov/Axelrod na Rússia, a liderança do Partido Socialista Italiano – focava no significado histórico do defensismo nacional na guerra mundial e na profundidade do oportunismo no movimento socialdemocrata. Os centristas mantinham que “defesa da terra natal” era um erro oportunista monumental, mas nada além. A política do defensismo nacional poderia ser revertida, a Segunda Internacional reformada (literalmente assim como figurativamente). Alguns dos extremos chauvinistas provavelmente teriam que ir embora, mas basicamente a “boa e velha Internacional” poderia ser restaurada àquilo que era em julho de 1914. Lenin considerava a Internacional pré-1914 como adoecida com o oportunismo; com a guerra, a doença piorou para o socialchauvinismo e se tornou fatal. Para os centristas, a Internacional pré-guerra era basicamente um corpo saudável. Ela estava agora passando pela doença do socialchauvinismo. A tarefa dos socialistas era curar a doença e salvar o paciente.
O principal porta-voz para a anistiar os socialchauvinistas e minimizar o problema do oportunismo era, é claro, Kautsky. Na Neue Zeit (15 de fevereiro de 1915) ele defendeu uma atitude de tolerância camarada para aqueles que “erraram” em defender o imperialismo alemão:
“É verdade que eu vi desde 4 de agosto que um número de membros do partido estavam continuamente evoluindo mais e mais na direção do imperialismo, mas eu acreditei que essas eram apenas exceções e tomei um ponto de vista otimista. Eu fiz isso para dar confiança aos camaradas e trabalhar contra o pessimismo. E isso foi igualmente importante para clamar os camaradas à tolerância, seguindo o exemplo de [Wilhelm] Liebknecht em 1870.”
– William English Walling, ed., Os Socialistas e a Guerra (1915)
A suavidade centrista com relação à Segunda Internacional também se expressou dentro do Partido Bolchevique bem cedo na guerra. O cabeça do grupo bolchevique na Suíça, V.A. Karpinsky, objetou à posição de Lenin que a Segunda Internacional havia entrado em colapso e que uma Internacional nova, revolucionária, deveria ser construída. Em uma carta (27 de setembro de 1914) para Lenin, ele escreveu:
“Nós acreditamos que seria um exagero definir tudo o que aconteceu com a Internacional como um ‘colapso político-ideológico’. Nem por volume ou conteúdo essa definição corresponderia aos acontecimentos reais. A Internacional … sofreu um colapso político-ideológico, como queira, mas em uma questão apenas, a questão militar. Considerando o restante, não há razão para crer que a posição político-ideológica da Internacional foi abalada ou, ainda mias, que ela foi completamente destruída. Isso significaria que após perder apenas um reduto, nós estaremos desnecessariamente rendendo todos os fortes.”
– Olga Hess Gankin e H.H. Fisher, Os Bolcheviques e a Guerra Mundial (1940)
Para sobrepor tais atitudes centristas, Lenin tinha que demonstrar que 4 de agosto era o ápice de tendências oportunistas profundamente enraizadas nas natureza histórica da socialdemocracia européia.
Imperialismo, Socialchauvinismo e a Burocracia Operária
A análise de Lenin sobre a base social do oportunismo na Segunda Internacional foi primeiramente apresentada numa resolução (“Oportunismo e o Colapso da Segunda Internacional”) para uma conferência bolchevique em Berna, na Suíça em março de 1915:
“Certa camada da classe trabalhadora (a burocracia do movimento operário e a aristocracia operária, que fica com uma fração dos lucros da exploração das colônias e da posição privilegiada de suas ‘terras natais’ no mercado mundial), assim como simpatizantes pequeno-burgueses dentro dos partidos socialistas, proveram o suporte principal dessas tendências [oportunistas], e canais de influência burguesa sobre o proletariado.”
Essa análise simples não foi desenvolvida em nenhuma profundidade teórica ou empírica até o ano seguinte, principalmente no livro de Lenin, Imperialismo: a Fase Superior do Capitalismo (escrito no começo de 1916), e seu artigo, “Imperialismo e o Racha do Socialismo” (outubro de 1916), e no livro de Zinoviev, A Guerra e a Crise do Socialismo (agosto de 1916).
Dado o culto stalinista de Lenin e as interpretações individualistas da historiografia burguesa, não é amplamente reconhecido que Lenin trabalhou como parte de um coletivo. Durante os anos da guerra, ele teve literalmente uma divisão de trabalho com Zinoviev no qual o último se concentrou no movimento alemão. Lendo apenas os escritos de Lenin no período, consegue-se uma figura incompleta da posição bolchevique sobre a guerra imperialista e o movimento socialista internacional. Foi por isso que em 1916 os escritos de guerra de ambos Lenin e Zinoviev foram reunidos num único volume publicado em alemão, intitulado Contra a Corrente. A principal análise leninista do oportunismo na socialdemocracia alemã é oA Guerra e a Crise do Socialismo de Zinoviev, que contém uma longa seção intitulada “As raízes sociais do Oportunismo”. Essa seção chave do importante trabalho de Zinoviev foi reproduzida em inglês pela primeira vez na revista americana da corrente de Max Shachtman, New International (março-junho de 1942).
Marxistas há muito haviam reconhecido a existência de uma burocracia operária pró-burguesa, pró-imperialista na Grã-Bretanha. Engels havia condenado bastante os líderes aburguesados dos sindicatos britânicos, relacionando esse fenômeno à dominação econômica mundial do Império Britânico. Entretanto, marxistas na Segunda Internacional consideravam o movimento operário colaboracionista de classe britânico como uma anomalia histórica, um estágio que a socialdemocracia européia havia rapidamente saltado. Ao começar sua seção sobre a burocracia operária na Alemanha, Zinoviev atesta que os marxistas haviam considerado a socialdemocracia como imune a essa casta social corrupta:
“Quando nós falávamos de burocracia operária antes da guerra, se entendia por isso quase exclusivamente os sindicatos britânicos. Nós tínhamos em mente o trabalho fundamental dos Webbs, o espírito de casta, o papel reacionário da burocracia no velho sindicalismo inglês, e nós dizíamos para nós mesmos: como temos sorte de não termos sido criados por essa imagem, como temos sorte de que este pote de mágoa tenha sido evitado no movimento operário do nosso continente.”
“Mas nós estivemos bebendo por um longo tempo desse pote. No movimento operário daAlemanha – um movimento que servia como um modelo para socialistas de todos os países antes da guerra – surgiu uma casta de burocratas tão numerosa e tão reacionária quanto.” [nossa ênfase]
O triunfo do socialchauvinismo na Segunda Internacional fez Lenin reconsiderar o significado histórico da liderança operária pró-imperialista britânica. Ele chegou à conclusão de que o sindicalismo colaboracionista de classe da Inglaterra vitoriana antecipou tendências que viriam a tona quando outros países, acima de todos a Alemanha, disputassem economicamente com a Grã-bretanha e se tornassem poderes imperialistas competidores.
O crescimento industrial muito rápido da Alemanha, seguindo sua guerra vitoriosa em 1870, simultaneamente criou um poderoso movimento operário socialdemocrata e transformou o país em um agressivo poder mundial imperialista. Os objetivos expansionistas da Alemanha só poderiam ser realizados através de uma grande guerra. E a Alemanha não poderia ganhar uma grande guerra se enfrentasse a oposição ativa de seus poderosos movimentos proletários. Assim, as necessidades objetivas do imperialismo alemão requiriram a cooperação da liderança socialdemocrata. A derrota da revolução democrático-burguesa alemã em 1848 e a estrutura política de classe semi-autocrática resultante, tornaram a reaproximação entre os círculos dominantes e a burocracia operária mais difícil, menos evolucional que na Grã-bretanha. Daí o efeito chocante de 4 de agosto.
Mas Lenin reconhecia que o processo histórico de fundo que levou ao voto por crédito de guerra do SPD em 1914 e às nomeações de ministros de gabinete pelo Partido Operário Inglês era semelhante. EmImperialismo ele escreveu:
“Deve ser observada na Grã-Bretanha a tendência do imperialismo de dividir os trabalhadores, de fortalecer o oportunismo entre eles e causar um decaimento temporário em oportunismo dos interesses gerais e vitais do movimento da classe trabalhadora….”
“O oportunismo não pode ser completamente triunfante no movimento da classe trabalhadora de um país por décadas como foi triunfante na Grã-bretanha na segunda metade do século dezenove; mas em um número de países, ele cresceu maduro, ainda mais maduro e podre, e se tornou completamente mergulhado na política burguesa sob a forma de ‘socialchauvinismo’.” [nossa ênfase]
O Imperialismo de Lenin lida com aquelas mudanças no sistema capitalista mundial que fortaleceram forças oportunistas no movimento internacional dos trabalhadores. É o trabalho de Zinoviev de 1916 que analisa concretamente as forças do oportunismo na socialdemocracia alemã.
Zinoviev mostrou que o enorme tesouro do SPD sustentava um vasto número de funcionários que levavam confortáveis vidas pequeno-burguesas bem longe dos trabalhadores que eles supostamente representavam. Em adição a um padrão de vida relativamente alto, a oficialidade socialdemocrata tinha começado a desfrutar de um status social privilegiado. A elite dominante alemã começava a tratar o SPD e líderes sindicais com respeito, diferenciando entre os “moderados” e os radicais, como Karl Liebknecht. O efeito corruptor sobre um ex-tipógrafo e um ex-fabricante de selas, ao serem tratados como personagens importantes pela aristocracia Junker (fidalga) era considerável. Referindo-se às memórias de Scheidemann no período da guerra, Carl Schorske em seu excelente Socialdemocracia Alemã 1905-1917 (1955) comenta: “Nenhum leitor de Scheidemann pôde perder o prazer genuíno que ele sentiu ao ser convidado a discutir problemas no mesmo patamar que os ministros de Estado.” A socialdemocracia alemã tinha se tornado uma instituição pela qual jovens trabalhadores capazes e ambiciosos poderiam atingir o topo de uma sociedade de classe – e casta – altamente estratificada.
O grande trabalho de Zinoviev de 1916 corrige a ênfase em revisionismo ideológico como a causa do oportunismo que se encontra nos primeiros escritos de guerra de Lenin. De fato, a doutrina oficial e programa do SPD não refletiram sua crescente prática reformista. Muitos dos líderes socialdemocratas, esmagadoramente de origem trabalhadora, mantiveram um apego sentimental à causa socialista muito depois de terem cessado em acreditar nelas como práticas políticas. Apenas a guerra forçou o SPD a romper abertamente com um princípio socialista.
Zinoviev reconheceu a ideologia socialchauvinista como uma falsa consciência surgindo do verdadeiro papel da oficialidade do SPD na sociedade alemã wilhelminiana:
“Quando nós falamos da ‘traição dos líderes’ nós não dizemos com isso que foi uma conspiração profundamente armada, que foi uma venda conscientemente perpetrada dos interesses dos trabalhadores. Longe disso. Mas a consciência é condicionada pela existência, e não vice-versa. A essência social inteira da casta de burocratas do trabalho levou inevitavelmente, através do ritmo moldado pelo movimento no ‘pacífico’ período pré-guerra, ao completo aburguesamento da sua ‘consciência’. A posição social inteira que essa casta numericamente forte escalou subindo nas costas da classe trabalhadora a tornou um grupo social que objetivamente deve ser considerado como uma agência da burguesia imperialista.” [ênfase no original]
Os anarco-sindicalistas aplaudiram o ataque marxista revolucionário contra a burocracia socialdemocrata e proclamou: nós avisamos. Assim, os Bolcheviques, ao atacarem a socialdemocracia oficial, distinguiram sua posição cautelosamente da dos anarco-sindicalistas. Zinoviev colocou que a existência de uma poderosa burocracia era, em certo sentido, um produto do desenvolvimento e da força do movimento operário de massa. A resposta anarco-sindicalista para o burocratismo apontava para a auto-liquidação do movimento dos trabalhadores como uma força organizada objetivamente capaz de destruir o capitalismo. Se a burocracia reformista suprimia o potencial revolucionário do movimento dos trabalhadores, os anarco-sindicalistas propunham desorganizar tal movimento até a impotência.
Zinoviev manteve que a burocracia não era idêntica a uma ampla organização partidária e a funcionários sindicais. Ao contrário, tais aparatos eram necessários para liderar a classe trabalhadora ao poder. A tarefa decisiva era a subordinação dos líderes e funcionários do movimento trabalhista aos interesses históricos do proletariado internacional:
“No tempo da crise sobre a guerra, a burocracia do trabalho atuou no papel de um fator reacionário. Isso está sem dúvida correto. Mas isso não significa que o movimento operário será capaz de se manter sem um grande aparato organizativo, sem um espectro inteiro de pessoas dedicadas especialmente ao serviço nas organizações proletárias. Nós não queremos voltar ao tempo em que o movimento dos trabalhadores era tão fraco que ele podia continuar sem seus próprios empregados e funcionários, mas ir ainda mais adiante para o tempo em que o movimento operário seja algo diferente, em que o forte movimento do proletariado irá subordinar a camada de funcionários a ele próprio, em que a rotina será destruída, a corrosão burocrática chicoteada; um tempo que trará novos homens à superfície, insuflar neles coragem para lutar, completá-los com um novo espírito.”
Não existe uma solução organizativa mecânica para o burocratismo no movimento dos trabalhadores ou mesmo em seu partido de vanguarda. Combater o burocratismo e o reformismo envolve uma luta políticacontínua contra a influências e pressões de todos os lados que a sociedade burguesa busca lavar ao movimento dos trabalhadores, à suas várias camadas e à sua vanguarda.
A Posição Leninista Sobre a Aristocracia Operária
Os marxistas da Segunda Internacional estavam plenamente cientes que a classe operária como um todo não apoiava o socialismo. Muitos trabalhadores aderiam à ideologias burguesas (por exemplo, religião) e apoiavam partidos capitalistas. Socialdemocratas pré-1914 em geral associavam o atraso político com o atraso social. Em particular eles viam que trabalhadores a pouco tirados do campesinato e outros pequenos proprietários tendiam a reter a visão de mundo de sua antiga classe. Assim, Kautsky escreveu em seu A Estrada para o Poder, de 1909:
“Após um grande termo tirados da classe dos pequenos capitalistas e dos pequenos agricultores, muitos proletários carregam as conchas dessas classes sobre eles. Eles não sentem a si próprios como proletários, mas como se fossem donos de propriedade.”
Em outras palavras, a posição socialdemocrata clássica era a de que aqueles trabalhadores que tinham um baixo nível cultural, eram pouco dotados de compreensão, desorganizados, vinham de um passado rural, etc., seriam os mais submissos com relação à autoridade burguesa. No contexto da Alemanha e da França do século XIX, essa generalização político-sociológica era válida.
Entretanto, com o desenvolvimento de um forte movimento sindical, o conservadorismo social e político apareceu no topo da classe trabalhadora e não apenas na base. Trabalhadores dotados de grande poder de entendimento, em sindicatos fortes de ofício, se isolaram a um certo nível do mercado de trabalho e do desemprego cíclico e tenderam a expressar uma visão de mundo estreita e corporativa.
O fenômeno da casta aristocrática operária, como aquele da burocracia do trabalho, se manifestou primeiro na Inglaterra vitoriana. O espírito estreito e corporativo dos sindicatos oficiais britânicos era bem conhecido. Além do mais, a camada superior da classe trabalhadora britânica era quase exclusivamente inglesa e escocesa, enquanto os irlandeses eram uma parte significativa da força de trabalho desqualificada.
A composição da socialdemocracia alemã pré-guerra consistia largamente dos trabalhadores mais bem qualificados. Zinoviev viu nessa composição sociológica uma importante fonte de reformismo:
“… a massa predominante dos membros da organização socialdemocrata de Berlim é composta de trabalhadores treinados, qualificados. Em outras palavras, a massa predominante dos membros da organização socialdemocrata consiste da camada mais bem paga do mundo do trabalho – daquela camada na qual surge a grande seção da aristocracia operária. [ênfase no original]
– A Guerra e a Crise do Socialismo
Zinoviev não faz tentativa alguma de demonstrar empiricamente que a aristocracia operária provia a base para a ala direita do SPD; ele meramente afirma isso. Ele pode então ser criticado por transportar mecanicamente a sociologia política da Grã-bretanha vitoriana para o terreno muito diferente da Alemanha wilhelminiana. O sindicalismo de ofício nunca prestou um papel tão importante na Alemanha quanto na Grã-bretanha. Por outro lado, o atraso rural era amplamente presente na vida política da Alemanha imediatamente antes da guerra. A base sólida da ala de direita do SPD eram as organizações provinciais do partido. Burocratas da ala direita tentavam conter os radicais, que eram sempre concentrados nas grandes cidades, desestabilizando os distritos eleitorais do partido em favor das pequenas cidades. O filho de um camponês, trabalhando como um operário sem qualificação tendia mais a apoiar a direita do SPD, representada por Bernstein e Eduard David, do que um mestre mecânico de Berlim.
Entretanto, se Zinoviev foi muito mecanicista ao impor um modelo britânico da base social do oportunismo no SPD, a posição leninista básica sobre a estratificação da classe trabalhadora na época imperialista permanece válida. Em países capitalistas avançados, com um movimento operário grande e bem estabelecido, a camada mais alta da classe trabalhadora tenderá frequentemente em direção ao conservadorismo político e social em relação à massa do proletariado. Além do mais, com certos limites econômicos, a burguesia e a burocracia do trabalho podem esticar a diferença entre a aristocracia operária e a classe como um todo.
Zinoviev está certamente correto quando ele escreve:
“Para fomentar divisões entre as várias camadas da classe trabalhadora, pra promover competição entre eles, para segregar a camada superior do resto do proletariado corrompendo-a e tornando-a uma agência da ‘respeitabilidade’ – ou seja, inteiramente dentro dos interesses da burguesia…. Eles [os socialchauvinistas] dividem a classe trabalhadora dentro de cada país e dessa forma intensificam e agravam a separação entre as classes trabalhadoras de vários países.”
– Zinoviev (Op. cit.)
A camada mais alta da classe trabalhadora não é sempre e em todo lugar politicamente à direita da massa do proletariado. Algumas vezes a maior segurança econômica dos trabalhadores mais bem qualificados produz uma situação onde eles mantém uma atitude política mais radical do que a massa dos trabalhadores organizados, que estão mais preocupados com as suas necessidades materiais do dia-a-dia. Assim, na Alemanha da República de Weimar nos anos 1920, o apoio comunista entre trabalhadores bem treinados era relativamente maior que entre a força de trabalho simples das fábricas, que buscava os socialdemocratas por reformas imediatas. Franz Borkenau escreveu sobre a composição do Partido Comunista Alemão em 1927:
“… trabalhadores qualificados e pessoas que foram trabalhadores qualificados fazem dois quintos dos membros do partido; se suas companheiras se somassem a essa conta, eles formariam provavelmente quase metade…. Se existe tal coisa como uma aristocracia operária, ela está bem aqui.”
– Comunismo no Mundo (1939)
A posição de Lenin sobre a aristocracia operária foi uma importante correção da orientação positiva, tradicional socialdemocrata para esse setor, uma orientação que era em parte uma reação conservadora ao rápido crescimento da força de trabalho com pouca formação vinda de um campesinato politicamente conservador e socialmente atrasado. Enquanto trabalhadores de origem rural podem ser extremamente militantes, eles são muito instáveis e difíceis de organizar numa base estável. Por exemplo, os operários migrantes e grupos semelhantes (como os camisas-pardas, por exemplo) lançados na organização sindical American Industrial Workers of the World, dos Estados Unidos, antes da Primeira Guerra Mundial, demonstraram grande combatividade, mas também uma grande instabilidade organizativa.
Nenhum auto-professado marxista mantém hoje uma orientação tão positiva com relação às seções mais bem qualificadas, mais bem pagas da classe trabalhadora como fazia a socialdemocracia. Ao contrário, durante o período passado o “marxismo” da Nova Esquerda foi a um extremo oposto, desprezando todo o proletariado organizado nos países capitalistas avançados como “aristocracia operária” comprados pelos espólios do imperialismo. Assim como no tempo em que o ataque dos marxistas revolucionários era explorado pelos anarco-sindicalistas, em nosso tempo a análise crítica de Lenin sobre o papel da aristocracia operária é desvirtuado e explorado para servir ao radicalismo anti-proletário, pequeno burguês, particularmente o nacionalismo.
Um líder inspirador intelectual do terceiro mundismo da Nova Esquerda (mais ou menos associado com o maoísmo) foi Paul Sweezy, da Monthly Review. Sua distorção revisionista da análise de Lenin sobre a aristocracia operária é apresentada com angularidade especial num artigo do centenário da publicação do primeiro volume de O Capital, “Marx e o Proletariado” (Monthly Review, dezembro de 1967). Aqui, Sweezy revindica o Imperialismo de Lenin para propor que a principal força social da revolução passou para as massas rurais nos países atrasados:
“A maior contribuição dele [Lenin] foi seu pequeno livro Imperialismo: A Fase Superior do Capitalismo que, tendo sido publicado em 1917, tem exatamente metade da idade que o primeiro volume de O Capital. Lá ele argumenta que ‘o capitalismo se tornou um sistema mundial de opressão colonial e da estrangulação financeira da esmagadora maioria dos povos do mundo por um punhado de “países avançados”’…. Ele também argumenta que os capitalistas dos países imperialistas podem e usam parte do seu ‘saque’ para subornar e trazer para o seu lado uma aristocracia operária. Tão longe quanto é levada em conta a lógica do argumento, ela pode ser estendida a uma maioria ou ainda a todos os trabalhadores dos países industrializados. De qualquer forma está claro que levando em conta o caráter global do sistema capitalista, nos são fornecidas fortes razões adicionais para acreditar que a tendência nesse estágio do desenvolvimento capitalista será gerar um proletariado cada vez menos do que mais revolucionário.” [nossa ênfase]
A Nova Esquerda está bastante errada em simplesmente identificar a aristocracia operária com os setores mais bem pagos do proletariado. Em primeiro lugar, muitos dos trabalhadores relativamente bem pagos (por exemplo, motoristas ou caminhoneiros nos Estados Unidos) são membros dos sindicatos industriais de trabalhadores sem qualificação ou com pouca qualificação, e ganham seus níveis de salário através de luta militante contra os patrões e não com suborno ou cargo de confiança imperialista. Nem podem todos os sindicatos oficiais serem contados entre a aristocracia operária. Os costureiros e os portuários, organizados em linhas oficiais, estão entre os trabalhadores sindicalizados menos bem pagos nos Estados Unidos.
Em Imperialismo e outros escritos relacionados, Lenin enfatiza de novo e de novo que a aristocracia operária representava uma minoria do proletariado. E isso não era uma estimativa empírica, mas uma proposição sociológica básica. Um grupo só pode ocupar uma posição social privilegiada em relação às massas trabalhadoras da sociedade da qual é parte. A noção da Nova Esquerda terceiro-mundista de que o proletariado nos centros imperialistas é uma aristocracia operária em relação às empobrecidas massas coloniais nega que a classe trabalhadora européia e norte-americana é centralmente definida pela exploração pelas mãos da “sua” burguesia. Isso é metodologicamente similar ao argumento dos apologistas do Apartheid na África do Sul de que os trabalhadores negros nesse país estão melhor do que aqueles no resto da África.
Entretanto, o revisionismo de Sweezy não se limita a estender a categoria de aristocracia operária à maioria dos trabalhadores nos países capitalistas avançados. Ele também distorce a atitude de Lenin com relação à aristocracia operária em si, que é uma categoria sociológica e não política. Para a camada mais alta da classe trabalhadora, a defesa dos seus pequenos privilégios em geral domina sua consciência e ação. É portanto um intermédio cultural para a falsa consciência que enxerga os interesses dos trabalhadores como ligados aos da “sua” burguesia (apoio à guerra imperialista, protecionismo, esquemas de “divisão dos lucros”, etc.). Mas a aristocracia operária também faz parte da classe trabalhadora, dividindo interesses comuns de classe com o resto do proletariado, e assim não pode ser considerada como inerentemente e terminalmente pró-imperialista. Sob condições capitalistas normais, a aristocracia operária poderá muito bem buscar vantagens econômicas de curto prazo sob os custos da classe como um todo. Entretanto, sob o impacto de uma profunda depressão econômica, uma guerra devastadora, etc., os interesses de longo prazo dessa camada como um setor do proletariado tenderão a vir à tona.
Leninistas até mesmo buscam ganhar os setores super-explorados da pequeno-burguesia (por exemplo, professores, pequenos agricultores) para a causa do socialismo revolucionário. Portanto, eles não podem entregar pura e simplesmente um setor da classe trabalhadora, apesar de ser um setor relativamente privilegiado, aburguesado, ao campo da contra-revolução burguesa. Grupos da aristocracia operária podem terminar no lado errado da barricada numa situação revolucionária. Na revolução de outubro, os relativamente bem pagos trabalhadores das ferrovias proveram a base para as atividades contra-revolucionárias dos Mencheviques. Entretanto, os petroleiros do México, sendo um grupo proletário de elite num país atrasado, tem há muito estado entre os setores mais avançados no movimento operário desse país. Em um importante artigo escrito pouco depois de Imperialismo, Lenin explicitamente declara que a fração do proletariado que vai no final ficar do lado da burguesia só pode ser determinado através da luta política:
“Nem nós e nem ninguém pode calcular precisamente que porção do proletariado está seguindo e irá seguir os socialchauvinistas e oportunistas. Isso será revelado apenas pela luta, isso irá definitivamente ser decidido apenas pela revolução socialista.”
– “Imperialismo e o Racha do Socialismo” (outubro de 1916)
A atitude leninista com relação à aristocracia operária é significativamente diferente daquela com relação à sua liderança, a burocracia do trabalho. Na época imperialista, a era da decadência capitalista, reformismo bem sucedido é impossível. Assim, quaisquer que sejam seu passado e sua motivação original, a não ser que eles explicitamente adotem um curso revolucionário, os líderes do movimento operário são forçados por seu papel social a subordinar os interesses dos trabalhadores à burguesia. Como Lenin escreveu posteriormente sobre os “capangas operários da burguesia”:
“O imperialismo do tempo presente (século XX) deu a alguns poucos países avançados uma posição excepcionalmente privilegiada, a qual, em toda a parte da Segunda Internacional, produziu um certo tipo de líderes traidores, oportunistas e socialchauvinistas, que defendem os interesses da sua própria oficialidade, do seu próprio setor da aristocracia operária…. O proletariado revolucionário não pode ser vitorioso a não ser que esse mal seja combatido, a não ser que os líderes oportunistas, social-traidores, sejam expostos, desacreditados e expulsos.”
– Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo (1920)
Em contraste, trabalhadores treinados, bem pagos, enquanto mais suscetíveis à ideologia burguesa conservadora, não são “agentes da burguesia no movimento operário” (Idem). Assim como o resto do proletariado, eles devem ser ganhos para longe dos seus falsos líderes traiçoeiros.
O Marxismo Clássico e o Partido Leninista de Vanguarda
Em 1916, Lenin havia desenvolvido ambas as bases programática e teórica para um racha com a socialdemocracia oficial e a criação de um partido de vanguarda internacional tendo como modelo os Bolcheviques. A verdadeira formação da Internacional Comunista em 1919 foi, é claro, decisivamente afetada pela revolução bolchevique e o estabelecimento do Estado Soviético. Entretanto, esta série analisa a evolução da posição de Lenin na questão organizativa se afastando da socialdemocracia revolucionária tradicional. E esse processo foi essencialmente completado antes da revolução russa. Nós assim concluímos com uma discussão sobre a relação do partido leninista de vanguarda com a experiência marxista anterior na questão organizativa.
No que diz respeito ao partido de vanguarda, a história do movimento marxista parece paradoxal. A primeira organização marxista, a Liga Comunista de 1847-52, era um grupo de propaganda de vanguarda que claramente se demarcava de todas as outras tendências no movimento socialista e no movimento operário (ou seja, o blanquismo, o “real” socialismo alemão, o cartismo britânico). Em contraste, a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional), estabelecida uma geração depois, procurava ser um órgão inclusivo, abarcando todas as organizações da classe trabalhadora. Um pilar central da Primeira Internacional era o movimento sindical inglês, que apoiava politicamente os liberais burgueses. A (Segunda) Internacional Socialista, embora sua seção dominante fosse a socialdemocracia marxista alemã, buscava incluir todos os partidos socialistas operários. Em 1908, a Segunda Internacional admitiu até mesmo o recém-formado Partido Operário Britânico, que não se reivindicava socialista. Assim, a Internacional Comunista de 1919 era em certo sentido uma ressurreição da Liga Comunista de 1848 com uma base de massas.
Como se explica a ausência do princípio do partido de vanguarda no marxismo clássico do fim do século XIX?
Escritores stalinistas algumas vezes negam esse fato, distorcendo a história para fazer de Marx/Engels defensores dos princípios de organização leninistas. Por outro lado, seria idealismo anti-histórico criticar Marx e Engels por sua política organizativa e considerar que o equivalente da Internacional Comunista poderia e deveria ter sido estabelecido entre 1860-90.
A formação da Liga Comunista de 1847 se afirmou diante de uma revolução democrático-burguesa iminente. A tarefa de organizar o povo, incluindo o proletariado urbano-artesão, estava sendo realizada pelo amplo movimento democrático revolucionário. A tarefa da Liga Comunista era competir pela liderança de um movimento revolucionário existente contra os democratas burgueses (assim como os socialistas utópicos). A Liga Comunista definia então a si própria como a vanguarda socialista operária do movimento revolucionário democrático-burguês. Com o fim definitivo do período revolucionário de 1848 (assinalado pelo julgamento dos comunistas de Colônia em 1952), a estratégia de Marx e seu componente organizativo se tornaram inviáveis.
Entre as revoluções de 1848 e a revolução russa de 1905, as possibilidades de uma revolução democrático-burguesa bem sucedida tinham sido esgotadas enquanto as bases econômicas para uma revolução proletário-socialista ainda eram imaturas nos principais países da Europa Ocidental (a Grã-bretanha apresentava seus próprios problemas excepcionais nesse respeito. Entretanto, mesmo que a Grã-bretanha fosse muito mais avançada que a França ou a Alemanha nos anos de 1850, o número de servos domésticos ainda era maior que o de trabalhadores industriais). A tarefa dos socialistas era criar as precondições para uma revolução socialista através da organização do proletariado a partir de uma condição minúscula. Além do mais, nas décadas que se seguiram imediatamente à derrota de 1848, organizações estáveis de massa da classe trabalhadora foram impedidas na Alemanha e na França por uma efetiva repressão do Estado.
Um partido de vanguarda de tipo leninista na Alemanha ou na França entre 1860-90 teria existido num vácuo político desrelacionado a qualquer movimento potencialmente revolucionário mais amplo. Assim, no período seguinte à dissolução da Primeira Internacional, Marx se opôs ao restabelecimento de um centro internacional como uma digressão da tarefa de construir um movimento dos trabalhadores realmente capaz de derrubar o capitalismo. Numa carta (22 de fevereiro de 1881) ao anarquista holandês Ferdinand Domela-Nieuwenhuis, ele escreveu:
“É minha convicção que a conjuntura crítica para uma nova Associação Internacional dos Trabalhadores ainda não chegou e por essa razão eu considero todos os congressos dos trabalhadores ou congressos socialistas, até onde eles não estejam relacionados diretamente às condições existentes nessa ou naquela nação, não como meramente inúteis, mas na verdade danosos. Eles sempre irão terminar de maneira inefetiva com intermináveis e repetidas discussões banais.”
– Marx/Engels, Correspondência Selecionada (1975)
Na Europa ocidental, a transição do movimento revolucionário democrático-burguês para partidos socialistas proletários de massa exigiu uma época inteira envolvendo décadas de atividade preparatória.
A situação que enfrentavam os marxistas na Rússia czarista era fundamentalmente diferente. Lá, uma revolução democrático-burguesa aparecia numa previsão de curto prazo. Existia um movimento revolucionário democrático-burguês na forma de populismo radical-socialista com amplo apoio da intelectualidade.
Em aspectos importantes, as condições diante do grupo Emancipação do Trabalho de Plekhanov nos anos de 1880 eram paralelas àquelas da Liga Comunista antes da revolução de 1848. Plekhanov projetava um partido proletário (iniciado pela intelectualidade socialista) que iria agir como vanguarda na revolução democrático-burguesa, enquanto se demarcando de forma clara de todas as correntes pequeno-burguesas radicais. Essa concepção vanguardista é claramente atestada no programa do grupo Emancipação do Trabalho de 1883:
“Uma das consequências mais danosas do estado de atraso da produção era e ainda é o subdesenvolvimento da classe média, que, em nosso país, é incapaz de tomar a iniciativana luta contra o absolutismo.”
“É por isso que a nossa intelligentsia socialista foi obrigada a liderar o movimento de emancipação dos dias de hoje, o qual a tarefa direta deve ser estabelecer instituições políticas livres no nosso país, os socialistas por sua vez estando na obrigação de prover a classe trabalhadora com a possibilidade de desempenhar um papel ativo e frutífero na futura vida política da Rússia.” [ênfase no original]
– G. Plekhanov, Trabalhos Filosóficos Selecionados, Volume 1 (1961)
Na Alemanha bismarckiana e wilhelminiana, todos os partidos burgueses eram hostis à socialdemocracia, que representava ao mesmo tempo a totalidade do movimento dos trabalhadores e de longe a mais significativa força por mudança política democrática. O Partido Católico de Centro, os Nacional-liberais, e os Progressistas eram vistos apenas episodicamente como um desafio para o governo semi-autocrático. Em contraste, os socialdemocratas russos tinham que competir por militantes e por influência popular, inclusive entre o proletariado industrial, com os populistas radicais e às vezes até mesmo com os liberais. Além do mais, uma vez que a Rússia era um Estado multinacional, os socialdemocratas também tinham que competir com os partidos nacionalistas de esquerda como o Partido Radical Democrático da Ucrânia e o Partido Socialista Polonês, e partidos similares na região báltica e no Cáucaso.
Os princípios organizativos da socialdemocracia de Plekhanov tinham assim um duplo caráter. No que diz respeito ao proletariado, os primeiros socialdemocratas russos buscavam se tornar “o partido de toda a classe”, imitando o SPD. Mas eles também buscavam se tornar a vanguarda de todas as diversas forças anti-czaristas no Império Russo.
Da socialdemocracia de Plekhanov, Lenin herdou as concepções vanguardistas ausentes nos partidos socialistas da Europa Ocidental. O significado da luta contra o economicismo, que foi iniciada por Plekhanov e não Lenin, era preservar o papel de vanguarda da socialdemocracia em relação às amplas, heterogêneas forças democrático-burguesas. Por Lenin ter rachado a socialdemocracia russa (1903) antes de ter atingido uma base de massas, ele não reconheceu inteiramente o significado do que tinha feito. Ele considerou o racha com os Mencheviques como uma legítima continuação da luta para separar o socialismo proletário da democracia pequeno-burguesa. Na realidade, ele tinha separado os revolucionários socialistas dos reformistas, ambos buscando uma base na classe trabalhadora.
O significado mundial histórico do bolchevismo pré-1914 foi que ele antecipou os princípios organizativos requeridos para a vitória na época imperialista do capitalismo e na revolução proletária. Como a época da degeneração capitalista se abriu com a Primeira Guerra Mundial,
o principal obstáculo para a revolução proletária não era mais o subdesenvolvimento da sociedade burguesa e do movimento dos trabalhadores. Era agora a reacionária burocracia do trabalho, descansando sobre um poderoso movimento operário, que preservava um sistema social obsoleto. A primeira tarefa dos revolucionários socialistas era, dessa forma, derrotar e substituir os reformistas como a liderança do movimento de massa dos trabalhadores, a precondição para liderar tal movimento para a vitória sobre o capitalismo e lançar as bases para uma sociedade socialista. Essa tarefa tem um caráter duplo. O estabelecimento de um partido revolucionário de vanguarda
divide o movimento da classe trabalhadora politicamente. Entretanto, um partido de vanguarda busca liderar as massas do proletariado
unidas através de organizações econômicas na luta de classes, os sindicatos. Numa situação revolucionária, um partido de vanguarda busca liderar uma classe trabalhadora unida para tomar o poder através de sovietes, a base organizativa de um governo direto dos trabalhadores.