PSTU, Fração Trotskista e a Defesa da Líbia Contra o Imperialismo
De que Lado da Trincheira?
Por Rodolfo Kaleb
Novembro de 2011
Nenhuma corrente da esquerda brasileira tem influência política ou seção na Líbia. No entanto, a análise do processo de guerra civil e depois de intervenção imperialista que se abateu sobre o país é muito mais do que um exercício de teoria. As posições práticas das diversas organizações da esquerda indicam o quanto elas estão próximas ou distantes de uma aplicação revolucionária do marxismo, ou seja, quão estão preparadas para lutar pela revolução nos países onde estão presentes. Assim, mesmo com a guerra tendo chegado ao fim com uma vitória das forças apoiadas pelos imperialismos sobre os exércitos do ditador Kadafi, um dos eventos mais dramáticos da luta de classes deste ano exige um estudo profundo e um balanço da esquerda que se posicionou sobre esses eventos [1].
O maior partido que reivindica o trotskismo no Brasil, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), teve uma posição de apoio aos rebeldes que tomaram Bengasi como sua capital e depois receberam apoio militar OTAN em sua luta contra Kadafi. Em todo o momento, o partido fez questão de classificar os rebeldes como um movimento “revolucionário” e não se abateram nem mesmo quando a “revolução” passou a se coordenar com os imperialismos francês, norte-americano e britânico para derrubar o regime decrépito de 42 anos do ditador líbio.
Já a Fração Trotskista, representada no Brasil pela Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional (LER-QI) não apoiou a vitória dos rebeldes aliados com a OTAN no fim da guerra, mas nutriu muitas ilusões com esse movimento nos seus períodos iniciais e mesmo após o início da sua colaboração com a OTAN. Isso a levou a não tomar a posição política consistente de defesa da Líbia, ou seja, o mesmo lado militar das forças leais a Muammar Kadafi mantendo contra ele o combate político. Essa posição estranha à tradição trotskista, que orientou os trabalhadores a uma aparente necessidade de combater com armas os dois lados do conflito, acaba igualando um regime autoritário numa nação oprimida com a opressão incomparavelmente maior das potências capitalistas, interessadas na exploração do trabalho e das riquezas naturais de uma semicolônia moderna.
“Primavera Árabe”
Os movimentos que emergiram em alguns países no norte da África e no Oriente Médio, tendo como maiores exemplos até o momento a Tunísia e o Egito, tiveram características gerais similares. Eles são movimentos de revolta popular, que realizam protestos, atos de rua e outras ações radicalizadas contra a exploração e a repressão política de ditaduras burguesas de longa data. Tais revoltas também são sintomas da crise capitalista sobre as nações desta região pobre do globo, onde os governos vinham realizando “ajustes econômicos” (ataques à classe trabalhadora) como forma de sustentar as dívidas estatais e capitalistas. A base social desses movimentos é policlassista, com um componente destacado de juventude, contando com alguns setores proletários que não tiveram um papel de liderança até o momento. Em geral, os movimentos como o da Praça da Libertação (Tahrir) no Egito, não se utilizaram dos métodos históricos de luta dos trabalhadores. Quando o componente de apoio proletário se fez minimamente presente, ficou evidente, inclusive, o peso social da classe trabalhadora [2].
Entretanto, os movimentos sociais não se definem somente pela composição da sua base. Também é necessário analisar quem dirige politicamente essa base, qual é o seu programa político e qual é a dinâmica entre a base e a liderança para determinar a intervenção prática dos marxistas. Nesses países, devido à ausência de um partido revolucionário capaz de disputar as bases desses movimentos, a liderança que se colocou à frente das massas foi burguesa, personificada em antigos opositores democráticos. Essas lideranças burguesas, que prometiam “democracia”, buscaram evitar que qualquer liderança da classe trabalhadora pudesse tomar o seu lugar. Afinal, tinham o objetivo de garantir uma transição pacífica e tranquila para uma democracia onde só seriam concedidos os direitos democráticos que coubessem na ordem capitalista que lhes interessa, uma democracia da burguesia.
Ficou claro que essas lideranças oposicionistas tinham uma diferença de nuance com as ditaduras e podiam conviver muito bem com elas. Já a base do movimento tinha objetivos variados de liberdades democráticas e melhorias sociais. Mas enquanto essa base confiar que o caminho para seus objetivos (eles próprios postos de maneira vaga) se dará através do projeto da oposição burguesa, eles tendem a fracassar. Não foi à toa que todos os líderes oposicionistas no Egito e na Tunísia adotaram um discurso de “retorno aos lares e ao trabalho” assim que se viram ameaçados pela radicalização crescente do movimento.
É importante notar que isso aconteceu mesmo onde o máximo conseguido foi o afastamento pessoal do ditador e a manutenção de todo o aparato de governo (e de repressão) com a promessa de eleições futuras. Em outras palavras, não apenas a covarde liderança burguesa tem objetivos extremamente limitados, como não tem convicção suficiente nem nos próprios objetivos – teve mais medo do próprio movimento de massas que liderava do que das ditaduras, e preferiram chegar a acordos com estas do que arriscar abrir espaço para “radicais” advindos da massa. Esse foi o caso, por exemplo, do movimento de El-Baradei no Egito.
Nesse cenário de um movimento de luta por direitos democráticos (uma luta absolutamente justa e do interesse dos proletários) os comunistas devem intervir para desmascarar as lideranças burguesas e mostrar que os marxistas são os mais competentes para arrancar conquistas democráticas. Além disso, devem elevar a consciência de classe dos trabalhadores, mostrando que o seu objetivo não deve ser um “capitalismo mais humano” ou a democracia da burguesia, e sim o poder direto dos trabalhadores. Estes não devem dar o menor apoio a líderes do movimento que eventualmente componham um governo burguês.
É essencial o papel de vanguarda da classe proletária (sobretudo o seu componente industrial) dentre as massas. Rechaçamos qualquer ilusão sobre a necessidade (ou possibilidade) de uma etapa burguesa “democrática” na luta pelo socialismo. Qualquer suposta etapa democrática “necessária” se trata de um engodo para manter os proletários sob domínio burguês por tempo indeterminado. Da mesma forma, combatemos aqueles que, mesmo dizendo formalmente que lutam pelo socialismo, apostam ou tem uma postura ambígua diante das oposições burguesas, ou dão prioridade às demandas democrático-burguesas comuns entre todos os setores do movimento e não àquelas que preparam a moral e a consciência dos trabalhadores para a sua tarefa principal.
O método do marxismo na Líbia
O caso líbio foi, na maioria dos aspectos, muito diferente dos demais países da região. É inegável que houve um princípio de ações de protesto no leste do país, em janeiro e nos primeiros dias de fevereiro, com alguns setores populares lutando por direitos democráticos. Os trabalhadores petroleiros, inclusive, estavam presentes nesses primeiros protestos. Muitos apologistas de Kadafi tentam fazer crer que todos que contra ele lutam são “agentes do imperialismo”. Mas não havia nenhuma disputa econômica específica entre os imperialismos e o regime kadafista naquele momento (nem mesmo as querelas passadas envolvendo as nacionalizações da década de 1970) que justificasse a predisposição dos imperialistas para tal.
A diferença inicial no processo líbio se deu pelo fato de que a liderança das primeiras movimentações no país possuía um programa e uma estratégia diferente daquele dos outros movimentos da região. A liderança da oposição líbia, que veio depois a ser o núcleo formador do CNT, não adotou a estratégia de uma transição segura, em colaboração com o governo. O leste do país era o centro de várias tribos donas de propriedades que mantinham uma convivência pouco diplomática com o regime kadafista (que derrubou a monarquia líbia em 1969).
Esses líderes tribais pensavam na monarquia pré-Kadafi com nostalgia e perceberam na onda de protestos que aconteciam nos países vizinhos uma oportunidade para se alçar ao poder e acabar com a desgastada “república do Livro Verde”. Assim como as lideranças burguesas no Egito e na Tunísia, as tribos representavam interesses econômicos de certas alas da burguesia, ao buscar retirar do poder regimes que não mantinham mais a ordem econômica e social do seu interesse. Entretanto, pela sua história e desenvolvimento, a oposição líbia estava muito mais organizada e disposta a ações insurrecionais.
Os acontecimentos de 17 de fevereiro em Bengasi não são claros devido à ausência de informações. No entanto, é bastante improvável que os setores populares tenham espontaneamente obtido armas e organizado milícias que derrubaram o governo da cidade. Sem dúvida é muito mais crível que setores submetidos aos líderes tribais tenham organizado os destacamentos que tiraram Bengasi (assim como outras cidades menores) do controle do aparato kadafista. De qualquer forma, a tomada de Bengasi se colocou em menos de dois dias sob o comando do embrião do CNT, que logo receberia apoio de ministros do alto escalão do governo de Kadafi, incluindo o proeminente ex-ministro da justiça Mustafá Abdul Jalil (que se tornaria presidente do Conselho). Com a tomada de Bengasi, já não havia mais na Líbia um movimento popular, e sim um governo burguês instalado nas cidades a leste, que passou a disputar com Kadafi o comando do país. Também ocorre nesse momento um racha no exército líbio e se conformam todas as características de uma guerra civil encabeçada por duas frações da burguesia.
Não é impossível que tenha havido destacamentos rebeldes relativamente independentes da liderança reacionária durante um período curto. No entanto é evidente que todas as forças rebeldes foram rapidamente unificadas sob o comando do CNT. Não havia “povo armado” de forma independente, e sim combatentes (profissionais e não-profissionais) comandados pelo CNT. Por isso, para nós não havia no exército do CNT nenhuma investida “revolucionária”, como formularam correntes oportunistas. Dizer que é “revolucionário” um processo sem o protagonismo da classe trabalhadora e onde as massas são lideradas e tem amplas ilusões com um setor reacionário da burguesia é subestimar o fator essencial de consciência necessário para uma revolução. Não existe movimento “objetivamente revolucionário” que acontece mesmo que os seus agentes estejam presos à consciência burguesa, como discutiremos melhor mais à frente.
Nesse primeiro momento de guerra civil, não havia nenhum interesse objetivo para o proletariado em tomar qualquer uma das duas trincheiras. Tanto a ditadura kadafista quanto um regime das tribos buscariam oprimir e explorar a classe trabalhadora em colaboração com o imperialismo. A defesa da classe trabalhadora não estava associada a nenhum dos campos militares (como ficou evidente com a repressão desencadeada pelos rebeldes contra os trabalhadores negros). Tratava-se, pelo contrário, de uma disputa de interesses entre a burguesia líbia onde os trabalhadores só poderiam ter seus interesses objetivos realizados com a derrota de ambos os lados. Nesse momento, a tarefa dos revolucionários era lutar pela independência do proletariado nesse conflito, a luta de classes contra ambos os lados e a sua preparação revolucionária para o futuro.
Parece evidente agora que desde aquele momento os líderes tribais do CNT buscavam formar alianças, através da oferta de garantias econômicas, com as nações imperialistas. A possibilidade de uma intervenção imperialista foi amplamente anunciada, apesar de durante algum tempo líderes do CNT negarem que estivessem buscando por isso. Diante da boa vontade e de relativos sucessos do CNT no combate contra Kadafi, os imperialismos foram bastante rápidos em lhe dar apoio diplomático e reconhecimento. A diplomacia imperialista somente leva em conta os seus interesses econômicos e políticos. Obviamente não havia em nenhum dos líderes imperialistas qualquer interesse “humanitário” em derrubar Kadafi. Até porque os “amantes da paz” da Casa Branca e de Bengasi teriam muito que explicar sobre suas ações pouco “humanitárias” na própria Líbia e em outros países do Oriente Médio. Isso indicou a possibilidade (ainda não concreta nesse momento) de uma mudança no contexto da guerra.
Há relatos de que Kadafi bombardeou protestos de rua da oposição rebelde, matando civis desarmados [3]. Se não havia lado para os trabalhadores no conflito armado entre o CNT e o ditador, isso não significa que não havia interesses democráticos básicos a serem defendidos. Nós nos oporíamos com todos os meios disponíveis a atentados armados contra protestos de rua. Tais ataques, inclusive, impediriam a tarefa de intervenção dos comunistas nos setores de trabalhadores que pudessem romper com os líderes tribais. Mas isso não significaria nenhum apoio militar à luta do CNT pelo poder de Estado. A posição dos comunistas diante do governo de Bengasi era de oposição irreconciliável, um princípio que foi absolutamente traído pela maioria dos que se reivindicam trotskistas.
Ao mesmo tempo, desde o início da guerra civil, a oposição rebelde teve uma postura racista com relação aos emigrados negros de países do sul da África, que compõem uma parcela significativa da classe trabalhadora da Líbia. Milhares de negros, acusados de emigrar para compor exércitos de mercenários para Kadafi, foram revistados, presos e mesmo mortos sem nenhuma prova de que fossem “mercenários contratados” [4]. Os revolucionários deveriam se opor a tais ações pelo mesmo princípio. Nem precisamos dizer que os carniceiros imperialistas como Obama, que são responsáveis pelas mortes de milhares de trabalhadores e oprimidos todos os anos nas suas guerras no Iraque e Afeganistão, não têm a menor autoridade para justificar mais um atentado sob a desculpa de buscar a “paz e a liberdade” do povo líbio sob o cano do fuzil e a explosão das bombas.
Nesse momento, em plena guerra civil, o PSTU já classificava como “revolução” o que acontecia na Líbia. Ignorava que faltava à classe trabalhadora a mínima independência de classe, a orientação de um partido marxista revolucionário, órgãos (ou ao menos embriões) de duplo poder. Em outras palavras, faltavam os meios práticos e subjetivos para lutar pelo poder como classe. Mas os morenistas (apelido em razão de a corrente do PSTU ter sido fundada por Nahuel Moreno), já consideram há muito que pode haver uma etapa de “revolução socialista” sob comando da burguesia ou pequeno-burguesia enquanto ante-sala da luta revolucionária [5]. Foi com essa perspectiva que proclamaram:
“Neste processo, acontece uma unidade de ação muito ampla contra a ditadura, da qual participam trabalhadores, setores populares e, inclusive, com a adesão de setores burgueses, mais oficiais e tropas desertoras das forças armadas, e agora se agregam, também, altos funcionários do regime. Está claro que é necessária a mais ampla unidade de ação com todos os setores, inclusive os burgueses descolados do regime, para acabar com esta ditadura genocida e entrincheirada.”
Líbia a sangue e fogo, 24 de fevereiro de 2011.
“Acabar com uma ditadura genocida e entrincheirada” aliando-se à empreitada militar de líderes tribais reacionários e ex-membros do alto escalão de Kadafi que desejam tomar para si o poder só pode ter o efeito de criar outra ditadura da burguesia. A estratégia revolucionária de Lenin e Trotsky era o oposto dessa posição criminosa da liderança do PSTU. Colocavam a todo o tempo a necessidade de lutar pela independência da classe trabalhadora diante da burguesia. Essa foi a postura dos bolcheviques na revolução de Outubro desde que prevaleceu a posição das Teses de Abril, em que o grupo ao redor de Lenin corrigiu a linha vacilante do partido. Também foi a metodologia adotada pela Quarta Internacional em oposição aos blocos políticos do stalinismo e da socialdemocracia com a burguesia.
“A acusação capital que a IV Internacional lança contra as organizações tradicionais do proletariado é a de que elas não querem separar-se do semicadáver da burguesia.”
“De todos os partidos e organizações que se apóiam nos operários e nos camponeses falando em seu nome, nós exigimos que rompam politicamente com a burguesia e entrem no caminho da luta pelo governo operário e camponês.”
Programa de Transição, setembro de 1938.
Com sua posição, o PSTU preparou a capitulação vergonhosa quando a “revolução com a burguesia” recebeu também apoio dos imperialismos através da OTAN. Como discutiremos mais à frente, a OTAN foi essencial para garantir a vitória militar dos rebeldes, que consistiu em uma derrota para os povos oprimidos de todo o mundo.
A OTAN e os “revolucionários” de Bengasi
A intervenção da OTAN, iniciada em 20 de março, marcou uma mudança qualitativa na tendência do imperialismo de preferir o Conselho Nacional de Transição ao impopular e decadente regime kadafista. Ela significou que havia interesses econômicos tão sérios em jogo para o imperialismo, que valia a pena subsidiar mais uma incursão quando os gastos econômicos de muitos dos países envolvidos com duas guerras (Iraque e Afeganistão) já são imensos. Esses interesses econômicos, sobretudo o petróleo líbio, ficam evidentes agora quando, mal terminado o conflito, já começa a divisão dos direitos de exploração do país pelas burguesias imperialistas, havendo uma redistribuição em favor das nações que participaram dos bombardeios [6].
Dias antes de a OTAN iniciar os ataques, a guerra civil parecia estar pendendo para Kadafi. Foi fundamental que se iniciassem os bombardeios contra alvos do governo e do exército leais a Trípoli e o treinamento com armas pesadas que o recém-reunido exército do CNT recebeu das nações imperialistas. Diante desses eventos, a posição dos revolucionários mudou. Não se tratava mais de uma guerra entre dois setores da burguesia líbia e sim o confronto entre um setor da burguesia líbia contra um bloco de outro setor dessa mesma burguesia com várias nações imperialistas. Nessa guerra, a classe trabalhadora definitivamente tinha um lado.
A vitória do bloco CNT/OTAN significa a imposição de mais exploração e opressão sobre a população, mais barreiras ao desenvolvimento de uma nação independente, mais laços com o imperialismo. Obviamente Kadafi havia construído muitos desses laços. Sua colaboração com o imperialismo e seu regime ditatorial foram o que manteve a classe trabalhadora desmobilizada, sem partidos, sem sindicatos. Sem dúvida o tirano é o maior responsável pela prostração do país perante o imperialismo. Mas existe uma diferença qualitativa entre dois blocos da burguesia quando um deles é apoiado pelo maior inimigo dos povos. Nenhuma revolução autêntica (em oposição ao que são os rebeldes) pode triunfar enquanto não for derrotado o imperialismo, que é um opressor muito maior que Kadafi e cuja derrota é mais importante.
“A pressão do imperialismo sobre os paises atrasados não muda, na verdade, seu caráter social fundamental, já que o sujeito e o objeto da pressão não representam mais do que níveis diferentes do desenvolvimento de uma só e mesma sociedade burguesa. No entanto, a diferença entre Inglaterra e Índia, o Japão e a China, os EUA e o México, é tão grande, que estabelecemos uma rigorosa distinção entre os países burgueses opressores e oprimidos e consideramos nosso dever defender os segundos contra os primeiros. A burguesia dos países coloniais e semi-coloniais representa uma classe semi-dirigente e semi-oprimida.”
Um Estado não-operário e não-burguês
Leon Trotsky, novembro de 1937.
Nessa guerra, a classe trabalhadora deveria defender incondicionalmente a nação oprimida da Líbia. Isso não significa apoiar as ações do regime Kadafi que fossem contra a classe trabalhadora, mas sim que a sua vitória militar contra um inimigo maior seria uma vitória para o povo líbio e vantajosa para o proletariado. Obviamente uma independência real da semicolônia somente será conseguida quando a classe trabalhadora tomar o poder e romper com o imperialismo. Mas ainda que limitada, uma vitória do ditador líbio contra o imperialismo seria um passo adiante nesse caminho, pois ao menos derrotaria um enorme obstáculo para a emancipação da classe trabalhadora. Como nós discutiremos melhor posteriormente, a tarefa dos revolucionários era defender o combate armado contra o Conselho Nacional de Transição e seus aliados imperialistas sem deixar de denunciar Kadafi, usando os métodos da classe operária e buscando a sua organização independente.
O que nos disseram as lideranças do PSTU? Obviamente a intervenção imperialista pegou esses senhores sem as calças. O que poderiam dizer aos seus próprios militantes e aos trabalhadores quando a sua “revolução” começou a receber apoio dos imperialismos através da OTAN, com bombardeios coordenados e treinamento militar? É demais sustentar que uma “revolução”, além de ser liderada pela burguesia, está sendo também apoiada pelo imperialismo. Em razão disso, foi necessário falsificar inteiramente a realidade.
Os líderes do PSTU aceitam formalmente que o apoio imperialista é uma contradição, mas não desenvolvem uma política coerente, não reconhecem que a intervenção imperialista mudou o caráter (que eles já enxergavam de maneira incorreta) dos rebeldes. Completamente confuso, o PSTU escreveu:
“A contradição é que, no terreno militar, existiu uma unidade de ação entre o imperialismo e as massas para derrubar Kadafi, mas com objetivos totalmente opostos: as massas querem libertar o país da opressão, mas o imperialismo quer deter a revolução para prosseguir o saque das riquezas líbias e do Oriente Médio.”
Grande vitória do povo líbio e da revolução árabe, 24 de agosto.
“Aqueles [nós] que dizemos ‘Otan não, fora Kadafi’, longe de neutralismo, deixamos clara nossa posição: estamos contra a intervenção imperialista e a favor de que a insurreição derrote Kadafi. Deixamos claro que estamos contra a intervenção imperialista, mas não somos neutros na guerra civil aberta, queremos que os rebeldes líbios não deixem nem rastro do regime pró-imperialista e tirano de Kadafi.”
Opinião Socialista 421, abril de 2011.
Não se pode simplesmente enumerar os combatentes e dizer “somos contra a OTAN, mas apoiamos os rebeldes” ignorando a relação que existe entre eles. Os marxistas não tomam posições diante de uma análise superficial da realidade. A OTAN não estava agindo de maneira concorrente, nem mesmo separada das tropas de CNT. Não havia uma disputa para ver quem derrubava Kadafi primeiro. Houve uma completa coordenação. Da mesma forma a guerra civil não seguiu em paralelo, como se a intervenção da OTAN fosse independente dos lados em luta. Ficou claro que a OTAN estava em profundo arranjo com o CNT.
“A mira da OTAN ficou mais precisa, disse um diplomata sênior, conforme os Estados Unidos estabeleceram uma vigilância a toda hora sobre as áreas decrescentes que as forças militares líbias ainda controlavam, usando drones [aviões não tripulados] Predator para detectar, rastrear e ocasionalmente atirar nessas forças. Ao mesmo tempo, a Grã-Bretanha, França e outras nações implantaram forças especiais no solo dentro da Líbia para ajudar a treinar e armar os rebeldes, o diplomata e outro oficial disseram.”
Surveillance and Coordination With NATO Aided Rebels
The New York Times, 21 de agosto de 2011.
Os bombardeios da OTAN ocorreram para preparar o terreno das investidas terrestres do CNT. A OTAN apoiou e se coordenou com o Conselho para levá-lo à vitória sobre Trípoli e o restante do país. Através da sua direção pró-imperialista, os rebeldes passaram a ser nada mais do que a força armada na Líbia sob comando dos imperialismos. Dizer que está contra os bombardeios da OTAN dando apoio às suas tropas na superfície é uma contradição incrível. Se estivesse na Líbia, o PSTU seria uma ala esquerda do exército do CNT, que se oporia formalmente à OTAN, mas cumpriria um papel submetido aos interesses dos países imperialistas na prática.
A forma desenvolvida pela liderança do PSTU para justificar essa posição foi aprofundar as suas concepções sobre movimentos “objetivamente revolucionários” com lideranças reacionárias. Em um de seus artigos, o PSTU comparou a situação na Líbia às revoltas populares no Egito e na Tunísia para afirmar que “Definir a natureza de um movimento por sua direção é tão comum entre alguns setores da esquerda como alheio ao marxismo” [7]. Em outras palavras, que é “anti-marxista” levar em conta o fator da direção política de um movimento.
Para nós não se trata de negar que há setores populares (e mesmo alguns proletários) na base dos rebeldes. Nem mesmo de reconhecer que há pouco em comum entre a base dos rebeldes e os líderes do CNT. Mas sim que, no caso do Egito e da Tunísia, as lideranças burguesas manobraram as massas (com algum sucesso) em protestos de rua e ocupações de praça. Já na Líbia, a liderança se usou da base para tomar em suas mãos o poder no país junto com o apoio militar das nações imperialistas. Sem dúvida julgar um movimento apenas pela sua direção é anti-marxista, sem considerar quem são os indivíduos que compõem a base, quais são seus anseios e objetivos, ideologias, etc. Fazer isso impediria uma intervenção prática dos marxistas em qualquer processo. Mas da mesma forma é anti-marxista julgar um movimento apenas pelos anseios da base, sem considerar que existe no movimento uma ligação orgânica entre os membros e a liderança, nesse caso burguesa, que tomou o rumo dos acontecimentos e usou as bases para chegar ao poder.
Há uma diferença marcante entre intervir num movimento popular por demandas democráticas e melhorias sociais que tem ilusões numa liderança burguesa e “apoiar as massas” quando elas estão organizadas numa força armada lutando para colocar uma liderança burguesa no poder. Os trotskistas deveriam alertar aos trabalhadores para não lutarem sob comando de um Conselho que invariavelmente trairia as suas aspirações, que iria desarmar e assassinar a todos que forem contra os seus interesses. Colocar o CNT e a OTAN no poder era o único resultado possível de dar apoio a uma força armada que luta sob o comando deles.
Se amanhã a liderança egípcia de El-Baradei reunisse uma milícia, um racha do exército, e tomasse o poder da junta militar com apoio suficiente das massas, o PSTU iria enfaticamente apoiar esse movimento. Nós também nutrimos ódio à junta militar egípcia, mas achamos que ela deve ser substituída pela democracia proletária, não por outro governo burguês. Buscaríamos romper os trabalhadores de qualquer ilusão com El-Baradei e por isso não apoiaríamos esse movimento que o colocasse no poder, nem nenhum governo burguês que daí emergisse.
Não existe tomada do poder independente de (ou sem) liderança. Ao entrar em uma guerra civil, os lados em luta refletem sempre interesses de classe, ou posições diferentes dentro da mesma classe. Os rebeldes líbios não são um contingente de vanguarda proletária e nem a sua liderança burguesa pode levá-los a realizar uma revolução socialista. No caso líbio, a base não tem uma independência “revolucionária” contra a sua própria liderança burguesa reacionária. Os laços que unem a base à sua direção são moldados pela ideologia, e não uma mera formalidade.
Ao estarem iludidos pelo CNT, os setores populares dos rebeldes (sem esquecer que os rebeldes também incluem combatentes profissionais) agem segundo os interesses dessa liderança. Somente poderia ser diferente se houvesse uma transformação de consciência nesses setores, o que exige a presença (inexistente nesse caso) de um movimento operário forte liderado por um partido revolucionário. Por isso, é fundamental um chamado que se faz ausente nas publicações do PSTU: pela construção de um partido revolucionário de trabalhadores líbios!
Diferente do PSTU, um partido revolucionário na Líbia não confiaria numa suposta “objetividade revolucionária” de setores populares liderados pelo imperialismo e sim lutaria por consciência comunista no seio da classe trabalhadora. A necessidade de uma liderança revolucionária é o centro da afirmação trotskista de que a “crise de liderança proletária é a principal causa da miséria da humanidade”. Mas essa é uma lição que o morenismo e PSTU nunca aprenderam.
Ao “apoiar a base apesar da sua direção”, o PSTU está inventando uma manobra para justificar o seu método, que leva diretamente a apoiar uma liderança reacionária bancada pelo imperialismo. Uma coisa é intervir num movimento para tentar quebrar as ilusões dos setores proletários e populares, mas isso não significa apoiar as demandas incorretas das massas, inclusive quando elas apóiam um governo burguês. O PSTU tentou através de inúmeras insinuações dar a entender que o governo apoiado pelos rebeldes é um governo “popular”, que a sua força armada é “o povo em armas”. Isso obscurece o fato de que o governo sediado em Bengasi é um governo burguês apoiado pelo imperialismo. Não existe “povo em armas” num sentido de duplo poder operário. O “povo” nesse caso está sob controle de uma força burguesa. O PSTU ignora isso para surfar na onda de popularidade dos rebeldes.
Os movimentos não devem ser analisados pelas ilusões (ainda que sejam aspirações justas) da sua base. Se grande parte da população líbia, iludida pelo CNT, acha que o caminho está em apoiar esse Conselho, é tarefa dos marxistas quebrar as suas ilusões com tal liderança reacionária e mostrar a necessidade de um partido revolucionário e da luta independente da classe trabalhadora. Ignorando que a base armada é nesse caso uma ferramenta nas mãos da burguesia reacionária aliada aos imperialistas, os líderes do PSTU puseram na cabeça que se trata de uma “revolução” e nada pode convencê-los do contrário. Assim, são levados a apoiar o lado errado da guerra. O PSTU chegou a proclamar a vitória da OTAN com o CNT em Trípoli como uma “grande vitória do povo líbio”.
Assim, as lideranças do PSTU abandonam completamente o método marxista de análise das forças de classe em luta, sua trajetória e sua transformação dialética, suas lideranças, etc. em troca de um apoio incondicional à “revolução”… apoiada pela OTAN. Ao fazerem isso, demonstram com clareza que preferem seguir cegamente um fenômeno reacionário que tem popularidade, ao invés de buscarem se posicionar corretamente para atrair os trabalhadores para uma perspectiva socialista. Fazendo isso, afastam a vanguarda trotskista de uma compreensão correta da sua tarefa. Ao invés de defenderem a nação oprimida e combaterem a investida do CNT/OTAN, os dirigentes oportunistas do PSTU levam os membros do seu partido a se considerarem parte da investida dos rebeldes, pintada como uma “revolução” inexistente nesse momento. Já as insinuações segundo as quais a intervenção imperialista foi para “desmobilizar os rebeldes”, não passam de cinismo barato, em completo desacordo com a realidade.
Como defender a Líbia sem capitular a Kadafi
A Fração Trotskista/LER-QI reconheceu muitas das contradições na posição do PSTU quando ocorreu a vitória do CNT/OTAN no fim de setembro. Em inúmeras polêmicas recentes, ela explicitou que o cerne da questão – a saber, o fato de que liderados pelo CNT, os rebeldes eram uma força armada que cumpriu objetivos reacionários junto ao imperialismo – era ignorado pelo PSTU. Da mesma forma ela apontou que os rebeldes haviam, pela dinâmica dos eventos, se tornado, na prática, a força terrestre da OTAN:
“Entretanto, em fins de fevereiro se constitui em Bengasi o Conselho Nacional de Transição, que reúne quarenta integrantes, dentre os quais muitos ex-membros do próprio governo de Kadafi (…) Isso marca um ponto de inflexão crucial para o desenvolvimento e a mudança do caráter do processo líbio. A partir de então, a direção burguesa do CNT passaria paulatinamente a tornar os rebeldes reféns de sua política, reprimindo a formação de brigadas independentes, levando a mobilização ao beco sem saída do chamado à OTAN para intervir no país.”
“Novamente aqui vemos a operação lógica que a LIT [organização internacional liderada pelo PSTU] está acostumada a fazer: o reconhecimento meramente formal das contradições existentes, e a ruptura da dialética como fundamento de uma apreciação marxista. A dialética existente na Líbia é que apesar de haver caído uma ditadura sangrenta, isso não se transformou em uma vitória para as massas, posto que está sendo capitalizado pelos imperialismo e pelo CNT. Esta conclusão é a derivação do fato de que não se pode separar a queda da ditadura da maneira como ela se deu. E não aconteceu a partir da ação independente das massas, mas sob o apoio da OTAN. A derrubada de uma ditadura não pode ser considerada em si um ‘tremendo triunfo para as massas’, se quem se beneficia são os imperialismos.”
Até quando a LIT-PSTU seguirão insistindo em seus erros?, outubro de 2011
“A preponderância da ação imperialista não foi um ‘detalhe’, como quer fazer parecer a LIT: ela negou a possibilidade de uma atuação independente das massas, fazendo com que os ‘rebeldes’ atuassem enquanto ‘tropa terrestre’ da intervenção aérea das potências, seguindo seus planos (…)”
A LIT acha progressista a “unidade de ação entre as massas e o imperialismo” na Líbia?, setembro de 2011
Mas apesar disso, a posição da Fração Trotskista no conflito, que passou a ter um caráter imperialista com a intervenção militar da OTAN em 20 de março (um mês após o início da guerra civil), foi combater militarmente os dois lados. A FT não priorizou o combate ao bloco do CNT com a OTAN e está ausente das suas declarações e artigos qualquer perspectiva de estar do mesmo lado militar que Kadafi. A primeira declaração da FT após o início da intervenção imperialista afirmou:
“Os marxistas revolucionários (sic) colocamos claramente que o imperialismo não intervém para que triunfe o levantamento popular contra Kadafi, senão para tratar de impor um governo títere a serviço dos seus interesses, como fez trás a invasão no Afeganistão e no Iraque. Tão pouco a saída é, como colocou Chávez e outros ‘progressistas’, se subordinar a Kadafi, que não só se transformou em um ditador pró-imperialista, senão que está em uma guerra contrarrevolucionária para esmagar o levantamento popular que colocou em questão seu domínio, como parte dos levantamentos da região. A única saída progressista para o povo líbio é lutar energicamente tanto contra a intervenção imperialista como para derrotar a reacionária ditadura de Kadafi.”
23 de março de 2011
Ao fim, essa declaração resume a sua perspectiva com a consigna “Abaixo a intervenção militar imperialista na Líbia! Abaixo Kadafi!”. Na hora de determinar o lado correto no conflito, parece que a Fração Trotskista resolveu adotar a tese segundo a qual os rebeldes são um “levantamento popular” e parte dos “outros processos da região”. A crítica a Chávez só faria sentido se fosse direcionada ao fato de o Bonaparte venezuelano sair por aí aos namoricos com Kadafi dizendo que “para a Líbia, Kadafi é o que Bolívar é para nós”. Mas isso não significa que os trotskistas não tenham um lado a tomar no conflito. Num confronto, como a LER-QI reconheceu se tratar, entre nações imperialistas e um país oprimido (onde os rebeldes são a “tropa terrestre” do imperialismo), a posição da Quarta Internacional não era nem de se subordinar à burguesia nacional e nem igualar os dois lados em luta:
“Ao mesmo tempo em que sustenta um país colonial ou a URSS na guerra, o proletariado não deve solidarizar-se no que quer que seja com o governo burguês do país colonial nem com a burocracia Termidoriana da URSS. Ao contrário, deve manter sua completa independência política em relação a ambos. Ajudando uma guerra justa e progressiva, o proletariado revolucionário conquista as simpatias dos trabalhadores das colônias e da URSS e, deste modo, torna mais firme a autoridade e a influência da IV Internacional, podendo colaborar melhor na derrubada do governo burguês do país colonial, da burocracia reacionária da URSS.”
Programa de Transição, setembro de 1938.
De forma alguma os revolucionários poderiam colocar no mesmo patamar combater Kadafi e os imperialismos. Se, como Trotsky colocou (e a LER-QI cita frequentemente) a guerra é a continuação da política por outros meios, então isso levaria a crer que, para a LER-QI, o imperialismo e a burguesia da Líbia são inimigos do mesmo calibre. Isso é alheio ao trotskismo. Como a LER-QI reconhece, a intervenção da OTAN atenta contra uma nação subjugada. Portanto, diferente da posição da Fração Trotskista, essa nação deve ser defendida pelos revolucionários apesar do seu regime ditatorial brutal, pois é interesse dos trabalhadores livrarem a Líbia do CNT/OTAN. Numa situação assim, os revolucionários devem se colocar do mesmo lado da barricada que o regime do ditador líbio (que pelos seus próprios interesses burgueses se vê combatendo o imperialismo) sem lhe dar a menor confiança, e lutar através dos métodos históricos da classe proletária: greves, ocupações de fábrica, destacamentos proletários independentes.
“Mas isso não significa capitular a Kadafi?” podem questionar. Capitular a Kadafi seria assumir compromissos com o seu regime decrépito. Seria se abster das formas proletárias de luta e se unir ao seu exército burguês, seria elogiar o seu papel, sua política ou deixar de denunciá-lo como o maior culpado pela intervenção da OTAN e pelo seu regime ditatorial burguês. Não é isso que estamos colocando. Os revolucionários fariam todo o possível para polarizar a classe trabalhadora, com o objetivo de levá-la a conclusões revolucionárias, levantando demandas transitórias e democráticas contra seu governo. Os métodos de agitação e propaganda buscariam mostrar a necessidade não apenas de vencer o CNT/OTAN, mas de forjar uma democracia proletária contra Kadafi. No entanto, no campo militar, o combate se daria lado a lado com as tropas kadafistas, buscando vencer o inimigo principal imperialista. Uma forma de resumir essa perspectiva é “Defender a Líbia! Derrotar o CNT/OTAN! Nenhuma confiança no ditador Kadafi!” Uma vitória contra a OTAN seria um grande impulso para os povos oprimidos do mundo. De imediato, levantaria rebeliões nos países imperialistas que realizam a intervenção na Líbia. Os trabalhadores franceses, por exemplo, que desde 2010 vem travando lutas encarniçadas contra os ataques de Sarkozy, veriam na humilhação militar das tropas francesas a oportunidade perfeita de avançar contra este governo que ataca os trabalhadores dentro e fora das suas fronteiras.
No momento da intervenção, a única força social combatendo o imperialismo na Líbia era o governo de Kadafi. Numa situação como essa, não era possível realizar uma frente única no sentido clássico de “bater juntos” contra o imperialismo e “marchar separados” para objetivos diferentes. Os revolucionários devem formar uma frente única (mesmo com setores burgueses) sempre que for do interesse da classe trabalhadora, como era esse caso. Mas a ausência de uma organização proletária de peso, por culpa das décadas de repressão ao movimento operário pelo próprio Kadafi, impediu essa possibilidade. De qualquer forma, ainda somos pela vitória militar das forças de Kadafi contra o CNT/OTAN, mas dizemos em alto e bom som que a principal tarefa para o proletariado líbio na guerra contra o CNT/OTAN era armar-se em destacamentos politicamente independentes de Kadafi e lutar pela expropriação das empresas estrangeiras e nacionais sob controle dos trabalhadores, sem indenização. Poderia ocorrer até mesmo uma colaboração tática com os exércitos do ditador, mas sem nenhuma subordinação política, buscando sempre os interesses dos trabalhadores, jamais os da burguesia líbia. Ao mesmo tempo levantaríamos contra Kadafi demandas pelas liberdades democráticas suprimidas pelo ditador, como a liberdade de imprensa, organização política e uma assembleia constituinte eleita por sufrágio universal.
Não importa o quão assassino e corrupto é um governo burguês numa nação oprimida, os revolucionários estão do mesmo lado militar que eles se estes se confrontam com o imperialismo, sem lhes dar um milímetro de confiança ou de respaldo político. Para nós não se trata de discutir qual governo é mais tirano, se o governo de Kadafi ou Obama, Cameron e Sarkozy e sim que a vitória da Líbia é do interesse dos trabalhadores e nações oprimidas do mundo, já que o papel dos Estados imperialistas é infinitamente mais perverso (e um obstáculo muito maior ao socialismo). Nós tomamos o lado militar de todos os setores (mesmo os mais reacionários da burguesia) que estejam lutando contra o imperialismo, não importa o quão sejam tiranos ou impopulares. Certa vez em uma entrevista, Trotsky disse:
“Existe atualmente no Brasil um regime semi-fascista que qualquer revolucionário só pode encarar com ódio. Suponhamos, entretanto que, amanhã, a Inglaterra entre em conflito militar com o Brasil. Eu pergunto a você de que do conflito estará a classe operária? Eu responderia: nesse caso eu estaria do lado do Brasil ‘fascista’ contra a Inglaterra ‘democrática’. Por que? Porque o conflito entre os dois países não será uma questão de democracia ou fascismo. Se a Inglaterra triunfasse ela colocaria um outro fascista no Rio de Janeiro e fortaleceria o controle sobre o Brasil. No caso contrário, se o Brasil triunfasse, isso daria um poderoso impulso à consciência nacional e democrática do país e levaria à derrubada da ditadura de Vargas. A derrota da Inglaterra, ao mesmo tempo, representaria um duro golpe para o imperialismo britânico e daria um grande impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês.”
Entrevista de Leon Trotsky a Mateo Fossa, setembro de 1938.
Obviamente a intervenção imperialista se somou a uma situação de guerra civil precedente. A desculpa colocada pela Fração Trotskista é que Kadafi estava agindo de maneira contra-revolucionária, suprimindo um “levante popular”. Em primeiro lugar, isso é uma influência da política incorreta do PSTU e de outros na esquerda, como o influente Partido Obrero argentino (o maior partido reivindicando o trotskismo nesse país, onde está localizada a principal seção da FT) com relação aos rebeldes. Ela revela o quão a política da FT andava gravitando em torno de concepções oportunistas. A corrente tomou o lado dos levantes contra Kadafi desde a tomada de Bengasi, embora reconhecendo hoje que com o domínio do CNT, os rebeldes mudaram de natureza, embora não haja clareza sob quando essa transformação tenha se dado qualitativamente.
Num artigo publicado em 28 de março, uma semana após o início da intervenção da OTAN, a FT mostra que ainda não tinha clareza se os rebeldes eram um movimento popular independente da burguesia ou a força armada do CNT/OTAN e dizem que ambos os caminhos eram possíveis, elogiando o papel inicial dos rebeldes.
“Se for pela via da OTAN e da direção burguesa do CNT, a heróica ofensiva das massas e dos trabalhadores líbios será usurpada (…). Se for pela atuação independente da classe trabalhadora e do povo, seria um avanço importantíssimo para todos os processos parte da primavera árabe, e para os trabalhadores e povos de todo o mundo.”
“Viemos desde o início do conflito defendendo que a única saída de fundo capaz de responder aos anseios das massas e trabalhadores líbios, que heroicamente se levantaram contra a ditadura de Gadafi, é confiar em suas próprias forças, e atuar de maneira independente de quaisquer direções burguesas da CNT.”
Nem ofensiva criminosa da OTAN, nem apoio à entreguista CNT. Pela queda revolucionária de Gadafi, 28 de março de 2011.
No entanto, em setembro, a LER-QI parecia não ter dúvidas de que desde antes da intervenção imperialista os rebeldes já não eram uma força progressiva, nem um movimento “em disputa” que pudesse ser preenchido com qualquer conteúdo, levando em conta inclusive a opressão exercida pelos rebeldes contra os negros da Líbia.
“Havia uma possibilidade de que o levante popular iniciado em Bengasi se estendesse e derrubasse a ditadura de Kadafi por uma ação independente do movimento de massas, que nos primeiros dias passou a se armar espontaneamente. Mas essa possibilidade foi abortada. Rapidamente, o CNT, sob o qual passaram a ter crescente peso setores burgueses, lideranças das tribos opositoras, ministros e chefes militares que rompiam com Kadafi, tratou de conter a espontaneidade dos primeiros dias de levante e centralizar milícias sob sua completa e rigorosa direção. (…) O caráter reacionário rapidamente assumido pelo CNT, contraposto pelo vértice a qualquer ação emancipatória genuína das massas líbias, se demonstra não só em sua política de completa subordinação aos ditames do imperialismo, mas também em sua nefasta política em relação aos 2 milhões de negros imigrantes que compunham a classe trabalhadora no país.”
A LIT acha progressista a “unidade de ação entre as massas e o imperialismo” na Líbia?, setembro de 2011
Discordamos da certeza com que a LER-QI afirma que os primeiros dias os movimento dos rebeldes foi “espontâneo”, devido à pouca quantidade de informações disponíveis. Mas de qualquer forma, isso demonstra que a LER-QI hoje concorda que, no mínimo “rapidamente” após a tomada de Bengasi, não havia nenhum movimento independente na Líbia, ao não ser que possamos falar de um “levante popular” submetido ao CNT e que desde então perseguia os imigrantes negros.
Sem decidir se o que ocorria no país era um levante popular (até mesmo “processo revolucionário” como descreveu em algumas declarações) ou uma guerra civil dominada por setores da burguesia, quando se tornou necessário combater o imperialismo que tomava um dos lados, a FT estava a voltas com um “levante popular” que era uma força armada do CNT. Assim, não levou em conta as consequências de um posicionamento correto com relação a Kadafi e continuou levantando a “derrubada revolucionária” do tirano. Mas quem faria isso naquele momento? Os rebeldes?
Somos contra a palavra de ordem “Abaixo Kadafi” em face da intervenção imperialista, precisamente porque naquele momento a única força existente buscando derrotar Kadafi era o CNT/OTAN. Obviamente a derrubada revolucionária de Kadafi era uma perspectiva estratégica para a classe trabalhadora, que deveria ser preparada para essa tarefa mesmo enquanto combatia o imperialismo. Mas usar essa consigna quando o ditador era atacado pelos rebeldes dirigidos pela OTAN só pode gerar confusão. Nesse caso, mostra que a Fração Trotskista ainda não tinha assimilado com precisão o que eram os rebeldes e, apesar de não ter apoiado a vitória do CNT/OTAN quando ela se deu, foi incompetente para defender a Líbia contra o imperialismo quando se deu a intervenção e não tomou lado nenhum na barricada.
Se a Fração Trotskista/LER-QI concorda que os rebeldes eram um movimento “capitalizado pelo CNT”, “tropa terrestre” das potências e que quem se “beneficia da sua vitória são os imperialismos”, então porque não estavam do outro lado da barricada, ainda que hegemonizada pela ditadura de Kadafi, defendendo a Líbia ao mesmo tempo em que denunciavam o regime do tirano? Em razão dessa vacilação, a Fração Trotskista não defendeu na prática o princípio bolchevique de defesa dos povos oprimidos contra os países opressores, temendo assim ir contra um “levante popular” inexistente.
Os motivos da Fração Trotskista
Nesse momento, muitos dos dirigentes da FT podem se fazer de desentendidos sobre qualquer possibilidade de estar do mesmo lado militar que Kadafi sem capitular a ele. Mas quando os Estados Unidos ocuparam o Iraque em 2003, a LER-QI foi bastante capaz de explicar essa perspectiva. A situação na Líbia hoje não é idêntica ao Iraque de 2003 (quando se tratou de uma ocupação terrestre), mas estava colocado o mesmo paradigma: defender a derrota dos EUA sem ter ilusões em Saddam Hussein e manter o combate político contra ele, preparando a consciência e a moral da classe para tomar o poder uma vez que o imperialismo fosse vencido.
“Por isso, o ponto de partida do programa revolucionário é definir que a guerra do Iraque é uma clara guerra de agressão imperialista contra uma nação oprimida. (…) Toda guerra de defesa e libertação nacional de uma nação oprimida é, para os revolucionários, uma guerra justa e legítima, como foi – por exemplo – a luta pela libertação nacional da Argélia contra os colonialistas franceses ou a guerra do Vietnã. Neste tipo de guerras, os revolucionários nos localizamos no campo militar dos países semicoloniais, independentemente do caráter do regime que os governe porque o triunfo do país imperialista significará duplas correntes para o povo da nação semicolonial, e padecimentos piores ainda do que com sua ditadura doméstica. No caso do Iraque nos localizávamos pela derrota militar do imperialismo norte-americano e de sua coalizão, apesar do caráter reacionário e ditatorial de Saddam Hussein.”
O movimento anti-guerra e a guerra/ocupação do Iraque, junho de 2005.
Essa posição da Fração Trotskista na Líbia, deliberadamente vaga e incoerente, é o reflexo da aproximação centrista que a corrente tem com partidos ditos trotskistas maiores: o PSTU no Brasil e o Partido Obrero na Argentina (locais em que estão suas duas maiores seções, o PTS e a LER-QI). O PO e o PSTU foram os campeões em saudar os rebeldes de Bengasi como “revolucionários” [8]. Obviamente a busca incessante que a Fração Trotskista realiza para formar blocos e estar politicamente próxima dos dois partidos tem efeitos na consciência dos seus membros e liderança. As posições do PO e do PSTU, ainda que recebam críticas, tem uma enorme influência na sua formulação, que nem sempre, como este caso demonstra, passa pelo filtro de uma visão crítica.
Nas últimas eleições burguesas argentinas, por exemplo, o Partido de los Trabajadores por el Socialismo (PTS) formou um bloco eleitoral com o Partido Obrero e outras organizações de esquerda (inclusive o PSTU argentino) – a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT). Essa foi a realização de uma política que o PTS vinha buscando há muitos anos, mas que só nas últimas eleições o PO aceitou [9]. Em um dos artigos de seu jornal, a LER-QI, comentando sobre o bloco formado pelos seus camaradas argentinos fez a seguinte caracterização:
“A FIT se coloca também como uma alternativa de esquerda classista e revolucionária em nível internacional. Entre as outras experiências da esquerda, como o NPA francês, o Respect inglês, a Frente de Esquerda em Portugal, ou mesmo a Frente de Esquerda (que se formou no Brasil em 2006 e 2008) a FIT argentina é a única que não mistura os interesses dos trabalhadores com nenhuma variante burguesa ou reformista. Que coloca seu centro na organização dos trabalhadores, em aliança com a juventude e os intelectuais de esquerda, que proclama abertamente sua posição revolucionária.”
A Frente de Esquerda e dos Trabalhadores na Argentina e algumas lições para a esquerda no Brasil, junho de 2011.
Está claro que a FIT argentina esteve muito à esquerda de formações eleitorais de colaboração de classes: ela era composta somente por partidos da classe trabalhadora. Também se posicionou melhor que formações dominantemente reformistas ao não defender políticas econômicas presas aos limites do capitalismo. Porém, existem posições localizadas entre o reformismo e uma consistente perspectiva revolucionária. Como explicar o fato de que o PO, o maior partido em um bloco “revolucionário” que “não capitula a nenhuma variante burguesa” tenha apoiado o lado do imperialismo nas trincheiras líbias, além de outras posições centristas ao longo de sua história, como ter apoiado a frente popular burguesa de Evo Morales (posições essas que a própria FT critica)?
Ainda mais importante: porque a Fração Trotskista deve seguir fazendo os seus numerosos esforços de construção internacional, recrutar militantes, ter publicações periódicas próprias, etc. se um bloco com o Partido Obrero é “revolucionário”? Não faria sentido simplesmente fundir com ele e dar origem a bloco permanente, um partido “revolucionário” maior?
Da mesma forma, a LER-QI no Brasil busca blocos eleitorais com o PSTU, faz chamados para que o partido cumpra um papel classista ou assuma a liderança em processos de mobilização. Por exemplo, no texto citado acima, fez um chamado ao PSTU para que “aprendesse” com seus camaradas argentinos – ou seja, propôs um bloco eleitoral com o PSTU nas próximas eleições burguesas no Brasil. Tais ações, que a liderança da LER-QI rotula como “táticas” estão submetidas não a uma estratégia revolucionária independente do centrismo, mas uma estratégia de quem deseja ser um flanco esquerdo do PSTU e isso acaba levando (ainda que esta não seja uma intenção premeditada) a uma adaptação política a esse partido.
Qual seria, por exemplo, a posição desse bloco da LER-QI com o PSTU sobre questões chave da luta de classes como as “greves” policiais, o Estado cubano ou a própria guerra imperialista sobre a Líbia, onde possuem posições divergentes? A liderança da Fração Trotskista, perseguindo uma unidade política com outras organizações que já rasgaram com muito mais vigor os princípios bolcheviques, é incapaz de uma perspectiva revolucionária. Os militantes críticos da Fração Trotskista (LER-QI) devem analisar de maneira séria a política da sua organização. As posições traiçoeiras, se não combatidas, certamente abrirão precedentes. Nesse caso, a posição do grupo em uma questão tão básica pode gerar efeitos imprevisíveis no futuro. Contra essa adaptação, levantamos o princípio imortal de Lenin e Trotsky de defesa incondicional dos povos oprimidos contra o imperialismo.
Notas
[1] Para críticas a outras posições da esquerda frente aos eventos aqui analisados, conferir Sobre a Vitória do Bloco CNT/OTAN na Líbia e o Centrismo do Coletivo Lenin, de setembro de 2011 (sobre apoiar ou não o CNT antes da investida imperialista) e Um Tirano Sem Aspas (sobre a capitulação política a Kadafi), de novembro de 2011.
[2] Em 8 de fevereiro de 2011, após mais de um mês da ocupação da Praça da Libertação, entraram em greve 6 mil trabalhadores do canal de Suez, em diferentes companhias e várias cidades. Nos dias que se seguiram, outras centenas de fábricas e plantas por todo o país cruzaram os braços, totalizando milhares de grevistas por todo o Egito. Os trabalhadores de praticamente todas as categorias, usando o método da greve geral, deram o golpe fatal e foram a principal força social na derrubada do ditador egípcio Hosni Mubarak, em 11 de fevereiro. Apesar disso, os proletários não assumiram um papel de liderança política no movimento, o que levou a manutenção de muitos aparatos da ditadura e mesmo do capitalismo.
[3] Um apanhado dos relatos divulgados por diferentes jornais pode ser encontrado na página Firedoglake(em inglês).
[4] Conferir Imigrantes negros enfrentam risco de prisão e morte sob acusação de apoiarem Kadafi – O Globo Online, 30 de agosto de 2011.
[5] Central na teoria de Nahuel Moreno, uma “revolução de fevereiro” seria caracterizada enquanto uma “revolução socialista” onde as massas trabalhadoras não são lideradas por partidos revolucionários (nesse caso são lideradas até mesmo pela burguesia) e não possuiriam consciência marxista. Para os morenistas, a sua principal tarefa é empurrar os partidos oportunistas para cumprirem tal função, ao invés de lutarem para desmascarar os líderes traidores das massas e ganhar os trabalhadores para uma perspectiva de oposição revolucionária (conferir MORENO, Nahuel. As Revoluções do Século XX. 1984). Isso leva os morenistas a uma série de adaptações às lideranças existentes no movimento e a enxergarem transformações “revolucionárias” onde elas não existiram. Frequentemente a “revolução de fevereiro” é identificada como uma revolução democrática que pode ser liderada por partidos burgueses, aos quais os morenistas estão prontos para apoiar.
[6] Conferir Líbia: França já assegurou um terço do petróleo futuro – Expresso, de 22 de agosto de 2011.
[7] Citado de Todo apoio ao povo líbio contra Kadafi, mas não à intervenção da Otan em Opinião Socialista 421, de abril de 2011.
[8] O Partido Obrero encerrou um artigo de 23 de março dizendo: “Nossa consigna é: fora Otan; armas para os revolucionários líbios; pela extensão e aprofundamento da revolução árabe. Desejamos que o Oriente Médio se converta na tumba do imperialismo mundial”.
[9] Nas duas eleições burguesas anteriores, o PTS havia conformado uma frente com a Esquerda Socialista (IS), corrente ligada à CST/PSOL brasileira e vinha fazendo chamados ao PO, que recusou. Nas eleições de 2010, foi posta em prática uma legislação eleitoral que proibiu a participação de chapas com menos que 1,5% de apoio nas primárias na disputa para a presidência. Isso acabou levando o PO a conformar a FIT para poder participar do processo eleitoral. Apesar de combatermos essa legislação reacionária, direcionada claramente aos partidos de esquerda, ela por si só não justifica a busca do PTS pela formação do bloco com o Partido Obrero.