A Questão Nacional na União Soviética

A Questão Nacional na União Soviética

O presente texto foi originalmente publicado em 1991, pela então revolucionária Tendência Bolchevique Internacional, em seu periódico 1917 No. 10. Sua tradução para o português foi feita pelo Reagrupamento Revolucionário em julho de 2013.

A questão nacional sempre foi um tópico central na política soviética desde os tempos de Lenin. Ao garantir aos povos subjugados pelo antigo império czarista o direito de se separar e formar seus próprios estados caso desejassem, os bolcheviques ganharam importantes aliados na guerra civil que emergiu depois da Revolução.

Todos os povos não-russos da URSS foram oprimidos pelo estalinismo. O censo soviético realizado em 1979 listou 102 nacionalidades, 22 das quais possuíam populações superiores a um milhão de indivíduos. 15 possuem as suas próprias repúblicas, 20 gozam de relativa autonomia na situação de república autônoma, e 18 outras vivem nas chamadas regiões autônomas e áreas nacionais.

A oligarquia do Kremlin, transbordando com chauvinismo russo, tem por décadas tentado extinguir as culturas e os idiomas das minorias nacionais da URSS. Muitas vezes os estalinistas recorrem às prisões, deportações e à repressão policial, porém também foram aplicadas uma série de técnicas sutis para promover a “russificação” desses povos. Os russos étnicos compõem apenas metade da população soviética, mas isso não impede que mais de 80 por cento dos livros e jornais sejam publicados em russo. Acesso a diversos ramos da educação superior é restrito apenas aos falantes da língua russa.

Deparando-se com o ressurgimento de sentimentos separatistas por toda União Soviética, Gorbachev tem buscado a “resolução” da questão nacional que conteria todas as atuais 15 repúblicas dentro de um Estado unitário. Diferente da burocracia chauvinista que governa a URSS, nós trotskistas somos internacionalistas. Como tais, somos indiferentes à questão das fronteiras entre países. Lenin deixou isso bem claro em 1917:

“Dizem-nos que a Rússia será dividida, que se desmanchará em diversas repúblicas separadas, mas nós não temos razão para temer isso. Não importa quantas repúblicas diferentes surgirem, nós não deveremos temer. O que importa para nós não pode ser o traçado das linhas de fronteiras que dividem os países, e sim que a união dos trabalhadores de todo o mundo deve ser preservada para lutar com a burguesia de qualquer nação.”

Desenvolvimento livre e igual para os povos da URSS depende em ultima análise da extensão da revolução socialista no mundo. Apenas através de uma planificação da economia internacional, com base na democracia operária, será possível obter a base material para abolir a escassez material, que é a raiz por trás de todas as formas de opressão. Na URSS a extensão internacional da revolução está ligada intrinsecamente com a luta pela revolução política que irá derrubar a burocracia russo-chauvinista que reside no Kremlin e devolver o poder ao proletariado. Um programa chave dessa revolução será a defesa intransigente da igualdade entre todas as nacionalidades e, em particular, o direito de autodeterminação das nações oprimidas.

Apesar de defendermos o direito democrático de autodeterminação das nações oprimidas, nós marxistas não apoiamos automaticamente as demandas de todas as correntes nacionalistas. Movimentos separatistas que usam os sentimentos das populações das nações oprimidas para levar a cabo a restauração do capitalismo sempre terão como resultado a brutal subordinação desses povos ao imperialismo. É o dever de todo leninista denunciar esses movimentos. Apesar disso, essa distinção vital é ignorada por grande parte das organizações de esquerda que se autodenominam trotskistas. O consenso entre esses grupos tem sido a exaltação dos movimentos separatistas, desconsiderando totalmente o fato do programa desses últimos levar à restauração do capitalismo.
 
Em seu tempo, Trotsky rejeitou os argumentos desses “socialistas” que, em nome da “democracia”, faziam da autodeterminação dos povos seu critério absoluto:

“A questão nacional, se vista de maneira isolada das relações de classe, é uma ficção, uma mentira, um nó para estrangular o proletariado.”
“… frequentemente os pensadores formais ao mesmo tempo negam o todo e se apegam a uma parte em específico. A luta pela autodeterminação dos povos é um elemento chave da democracia. Essa luta, assim como a luta pela democracia em geral, cumpre um papel importante na vida dos povos, em especial na vida do proletariado. É um revolucionário ruim aquele que não sabe como utilizar as formas e instituições democráticas, incluindo o parlamento, em defesa dos interesses do proletariado. Mas do ponto de vista do proletariado, a democracia, assim como a questão nacional como uma parte integral dessa mesma, não pode ser posta acima da identidade de classes e nem ser usada como critério máximo da política revolucionária.”
— “Defesa da República Soviética e da Oposição”, 1929.

Respondendo ao ressurgimento do nacionalismo ucraniano na década de 1930, Trotsky acreditava que o chamado por uma “Ucrânia Soviética Independente” iria provocar o racha entre aqueles que desejavam a restauração capitalista e os que apenas se opunham à oligarquia do Kremlin. Essa palavra de ordem era claramente oposta a qualquer tentativa de contrarrevolução capitalista, mesmo aquelas que se escondiam atrás do sentimento de resistência à opressão nacional. Também funcionava para conectar a luta contra a opressão às minorias nacionais e a luta contra a casta parasitária formada pela burocracia estalinista que governava a União Soviética.

Lituânia: Nacionalismo e Contrarrevolução

Atualmente na União Soviética, são os Países Bálticos que colocam a questão nacional em pauta de forma mais aguda. Em março de 1990, a Lituânia declarou a sua independência, separando-se do restante da URSS. O governo nacionalista-burguês do Sajudis declara abertamente seu interesse em reinstaurar o país à condição de satélite imperialista na fronteira com a União Soviética. Os imperialistas, em troca, têm proclamado em alto e bom som o seu apoio à autodeterminação lituana.
 
Os problemas crônicos de corrupção e ineficiência na gestão pública, combinados com a opressão burocrática e nacional, contribuíram para que, na ausência de uma oposição socialista ao regime de Moscou, os movimentos nacionalistas que surgem em toda a URSS se tornem veículos para a hostilidade generalizada que se volta contra o estalinismo. Num resultado chocante, o referendo realizado em fevereiro passado na Lituânia sobre a questão da independência, revelou que “mais da metade dos russos, poloneses, e integrantes de outras minorias étnicas na república Soviética, votaram junto com eles [os separatistas]” (Manchester Guardian Weekly, 17 de Fevereiro). Esse resultado é um indicativo da frustração com Moscou sentida por grande parte da população soviética, que assiste o seu país se afundar cada vez mais no caos econômico. Tragicamente, esse sentimento se traduz na difundida resignação das massas à “inevitabilidade” da restauração capitalista, que se apresenta como a única salvação para a crise que se instaurou.
 
É nessa conjuntura que os centristas da Liga por uma Internacional Comunista Revolucionária (LRCI em inglês) [predecessora da atual Liga Pela Quinta Internacional, grupo internacional do Workers Power britânico e da Liga Socialista brasileira] argumentam que os revolucionários devem apoiar os movimentos de independência pró-capitalistas, uma vez que esse é o desejo da maioria dos trabalhadores lituanos. Em uma polêmica com nossos companheiros, a sessão alemã da LRCI escreveu:
 
“Nós dizemos: por um estado operário independente, deixem que as massas passem por sua própria experiência com esses falsos líderes. Se ficarmos neutros, ou pior, apoiarmos as tentativas do governo central de manter o controle, nós iremos empurrar as massas cada vez mais para as mãos de elementos mais radicais da extrema-direita. Claro que existe o perigo imediato da contrarrevolução capitalista. Mas nós podemos lutar contra essa ameaça cortando o apoio da base às lideranças burguesas…”.
— “A crítica e a frase” (“Kritik und Phrase”, no original em alemão)
 
Esse é um exemplo típico de confusão centrista. A chamada “por um estado operário independente” serve para encobertar a capitulação da LRCI aos “falsos líderes [ou seja, pró-capitalistas]”. A LRCI apoia os restauracionistas burgueses por que teme que a neutralidade vá “empurrar as massas” mais para a direita! Em nenhum momento passou pela cabeça desses centristas em se opor à contrarrevolução que vem sendo perpetrada pelo Sajudis.

A principal seção da LRCI (o grupo britânico Workers Power) não é melhor. Eles admitem que a vitória da restauração na Lituânia significaria o desastre para os trabalhadores que “sofrerão enquanto a Lituânia é empurrada para a servidão semicolonial” (“Deixem a Lituânia em Paz”, “Let Lithuania Go!” no original em inglês publicado na edição de abril de 1990 periódico de Workers Power). Apesar dessa afirmação, eles mantêm que em um eventual confronto: “Um partido trotskista na Lituânia… iria se colocar ao lado dos nacionalistas em sua luta contra Moscou, inclusive combater as tropas soviéticas enviadas para esmagar a república independente.” Novamente, pode-se observar uma tentativa de camuflar essa capitulação ao nacionalismo burguês. Dessa vez, a cortina de fumaça assume a forma de uma ridícula promessa de realizar uma suposta “luta determinada contra os nacionalistas, se e quando eles começarem o desmonte das relações de propriedade estatais e restaurarem o capitalismo.” Essa afirmação ignora que para os restauracionistas do governo do Sajudis, a separação da URSS é uma etapa crucial e indispensável em seu projeto de destruição das formas de propriedade coletivizadas.
 
Quando Gorbachev respondeu aos separatistas através do embargo econômico à Lituânia, o Workers Power exigiu que os imperialistas quebrassem o bloqueio soviético. Em maio de 1990, alertavam: “Nós devemos exigir que o governo britânico reconheça a Lituânia e inicie o envio dos suprimentos requisitados pela Lituânia de maneira incondicional.” Eles denunciaram o imperialismo por oferecer apenas um apoio simbólico aos separatistas bálticos.
 
A luta para defender o proletariado de todas as formas de restauração capitalista não se contrapõe, mas se complementa, com luta pelo direito de qualquer nação na URSS de estabelecer uma república socialista independente. A luta contra o chauvinismo grão-russo da burocracia estalinista será um fator vital em mobilizar os trabalhadores para a revolução política. Nós trotskistas nos opomos a qualquer forma de opressão: política, econômica e cultural. Também nos opomos à “união” forçada a ferro e fogo pelos burocratas do Kremlin. Ao defender a união voluntária de todos os povos da União Soviética com base em repúblicas socialistas, os revolucionários acabam por defender o direito à autodeterminação desses povos, ou seja, o direito de nações como a Lituânia de se separarem do restante da URSS. Esse direito não pode ser confundido com o direito a estabelecer um estado burguês independente. Para o proletariado lituano, assim como o proletariado das demais nações oprimidas da URSS, independência ganha ao custo da restauração capitalista seria uma profunda derrota. O trabalho dos marxistas não consiste em pensar de forma sonhadora, ou tentar embelezar as forças reacionárias, e sim “falar a verdade às massas, não importa quão amarga ela seja.” Apenas quando entendemos a realidade é que somos capazes de mudá-la.