Tendência Vern-Ryan
A Colaboração de Classes Ganha um Recruta
[Publicamos a seguir o segundo de três documentos escritos entre 1952 e 1954 por Sam Ryan e apoiados por Denis Vern, militantes da filial de Los Angeles do SWP norte-americano. A “fração Vern-Ryan”, como ficaram conhecidos, foi a única voz a criticar, à época, a postura do Partido Obrero Revolucionario boliviano (POR) ante a Revolução Boliviana deflagrada a partir de abril de 1952, bem como a conivência com a mesma por parte dos órgãos dirigentes da Quarta Internacional – já então sob direção pablista. Tais documentos são de grande importante histórica na luta contra o revisionismo, ainda que possuam falhas e insuficiências. Sua tradução para o português foi realizada pelo Reagrupamento Revolucionário a partir da versão em inglês disponível na publicação da Liga pelo Partido Revolucionário (LRP/EUA), “Bolivia: The Revolution the ‘Fourth International’ Betrayed” (1987).]
Sam Ryan, de Los Angeles
4 de Agosto de 1953
“Sem teoria revolucionária, não existe movimento revolucionário.”
― Lenin
1. O QUE NÓS SABEMOS SOBRE A BOLÍVIA
Faz agora dezesseis meses desde que a revolução boliviana começou. Faz dezesseis meses que essa pequena nação, de três e meio milhões de pessoas, apresentou para a Quarta Internacional a oportunidade de provar que o marxismo – trotskismo – pode conquistar as massas e dessa forma leva-las à vitória.
Considerando o fato de que um partido trotskista de massas, o POR, está envolvido em uma situação revolucionária, nós deveríamos esperar ter nesse período uma leva de informações da Bolívia, tanta informação que iria enriquecer imensuravelmente, aprofundar e concretizar a nossa teoria marxista.
Como tem ido o POR na tarefa de ganhar dos traidores do movimento operário, do naipe de Lechín, as massas que seguem o MNR?
Como o POR lidou com as várias questões concretas que surgem com os vários estágios da luta?
Quem controla a COB? Qual é a força de Lechín? E a do POR? E a dos stalinistas? Como as suas forças variaram no curso dos últimos dezesseis meses?
E quanto aos altos e baixos nas lutas grevistas? Como variou com isso a força do POR? Greves políticas têm aumentado em intensidade? Se não, por quê? Qual tem sido o papel do POR? E o de Lechín?
Surgiu alguma disputa dentro do POR? Ou o POR permaneceu, numa situação revolucionária, completamente monolítico?
Essas são apenas algumas da muitas perguntas para as quais nós já deveríamos agora ter um rico tesouro de informações.
Na verdade, nós não recebemos quase nenhuma informação prática sobre a situação na Bolívia – a única revolução em que os trotskistas estão desempenhando um papel importante.
Não é verdade, entretanto, que nós não saibamos nada sobre o que está acontecendo na Bolívia. Isso porque no mês passado relatos detalhados têm circulado sobre as atividades do POR. De acordo com esses relatos, recebidos de fontes não-trotskistas, o POR está aceitando posições no aparelho governamental; Guillermo Lora, ex-secretário do partido, foi indicado para o Ministério da Estabilização; o camarada Moller, atual secretário do POR, é diretor do Banco de Reserva dos Trabalhadores, que é controlado por Juan Lechín, um membro do gabinete; Alayo Mercado, outro líder do POR, é membro da comissão agrária. Diante desses relatos, o silêncio do Comitê Político do SWP e do Secretariado Internacional deveria causar grande preocupação aos camaradas.
Quem cala consente. E aqueles que permanecem em silêncio diante de uma política que desarma politicamente os trabalhadores e camponeses diante dos seus inimigos de classe compartilham da responsabilidade pelos resultados inevitáveis.
Os relatos de coalicionismo e colaboração de classes por parte do POR não caem como um raio de um céu azul. É essa a direção da política adotada pelo POR, com o encorajamento dos camaradas de liderança da Internacional, desde a revolução de 9 abril de 1952.
Em maio de 1952 o jornal publicou uma entrevista do camarada Lora. Eu escrevi uma carta para o Comitê Político, que foi impressa no Boletim Interno de junho de 1952, expressando um agudo desacordo com a linha política de Lora. Eu afirmei então que eu achava que era uma linha conciliacionista e de colaboração de classes, ao invés da linha do marxismo revolucionário; e eu perguntei se essa era mesmo a linha do POR. O Comitê Político respondeu que isso era “obviamente uma diferença de opinião entre você e o camarada Lora” e ele, o Comitê Político, não estava em posição de participar da discussão.
Agora nós temos a posição oficial do POR, na forma de um artigo não-assinado da nossa revista (“Um Ano da Revolução Boliviana” [Fourth International, janeiro-fevereiro de 1953]). Esse artigo, que segue a linha de Lora, estabelece inequivocamente a base não para liderar a revolução proletária, mas para fortalecer o Estado burguês. Imediatamente depois de ler o artigo, eu preparei uma crítica, com o objetivo de leva-la ao Boletim Interno. Mas ao ouvir sobre os verdadeiros passos que o POR tem tomado em direção a entrar no governo, eu decidi me conter de enviar meu artigo, esperando que fossem desmentidos, ou por uma explicação, ou por uma crítica, fosse pelo Comitê Político ou pelo Secretariado Internacional. Entretanto, nenhum comentário foi anunciado até o momento; e isso é por si só um grave indício não apenas da política do POR, mas também da linha do Comitê Político e do Secretariado Internacional.
2. UMA REVOLUÇÃO “CLÁSSICA” – UMA POLÍTICA NADA CLÁSSICA
Desde a Segunda Guerra Mundial, a Internacional tem tido o hábito de encontrar situações “excepcionais” nas quais, “excepcionalmente”, as leis “clássicas” e tradições do leninismo não se aplicariam. Na Europa Oriental, a negação do caráter de guerra-revolução na guerra entre União Soviética e Alemanha levou a Internacional a ver o estabelecimento de Estados operários sem revolução proletária. Na China, a Internacional vê um Estado transitório, nem burguês nem proletário, batizado de poder dual e de “governo operário e camponês”. Além disso, a Internacional vê o partido stalinista chinês sendo reformado em um partido que ela espera que vai liderar a “demonstração do poder proletário”; o papel do trotskismo é reduzido desde a luta pelo poder para um de “empurrar” o PC e as massas. Para essas situações “excepcionais”, a Internacional tem adotado os conceitos e métodos do reformismo. Mas uma vez embarcada em um curso reformista, ela não pode voltar atrás; não é nem um pouco difícil passar a enxergar todas as situações como “excepcionais”.
Mas o artigo (“Um Ano da Revolução Boliviana”) aponta que aqui nós não temos nenhuma situação excepcional. Ele vê a semelhança próxima do curso da revolução boliviana com o da revolução russa. Alguém poderia pensar que muito poderia ser aprendido estudando a estratégia e as táticas – acima de tudo as concepções – dos bolcheviques no período de fevereiro a outubro.
A linha política do POR, entretanto, não é a de Lenin, mas sim a dos seus oponentes colaboracionistas de classes, Kamenev e Zinoviev. Os últimos, de fato, não foram tão longe quanto o POR: eles não aceitaram postos no governo burguês.
“Se essa política (de Kamenev e Zinoviev) tivesse prevalecido”, diz Trotsky, “o desenvolvimento da revolução teria passado por cima da cabeça do nosso partido e, no fim, a insurreição das massas operárias e camponesas teria acontecido sem a liderança do partido; em outras palavras, nós teríamos tido a repetição dos dias de julho em uma escala colossal, ou seja, dessa vez não como um episódio, mas como uma catástrofe. É perfeitamente óbvio que a consequência imediata de tal catástrofe teria sido a destruição física do nosso partido. Isso nos oferece uma medida de quão profundas eram nossas diferenças de opinião”.
A mesma medida deveria nos indicar a penalidade extremamente séria na qual nosso movimento vai incorrer como resultado de uma política errada. Deixe-me citar os três parágrafos centrais do artigo na revista:
“O POR começou concedendo justificadamente um apoio crítico ao governo do MNR. Isto é, ele deixou de lado a agitação da palavra de ordem de ‘abaixo o governo’; ele deu ao governo apoio crítico contra os ataques do imperialismo e da reação, e ele apoiou todas as medidas progressivas. Mas ao mesmo tempo ele evitou qualquer tipo de expressão de confiança no governo. Pelo contrário, ele propagou a atividade revolucionária e a organização independente das massas tanto quanto pôde.”
“O POR limita seu apoio e acentua suas críticas enquanto o governo se mostra incapaz de completar o programa nacional-democrático da revolução, enquanto ele hesita, capitula, joga indiretamente o jogo do imperialismo e da reação, se prepara para trair e por isso tenta perseguir e ridicularizar os revolucionários.”
“O POR têm aplicado essa atitude flexível que exige uma ênfase cuidadosamente considerada a cada momento, uma que não seja nem confusa e nem sectária, e ao aplicar essa atitude, o POR está demonstrando uma formidável maturidade política. O POR adotou uma atitude de crítica construtiva em relação à base proletária e popular do MNR com o objetivo de facilitar uma progressiva diferenciação dentro dela.”
Cada frase nesses três parágrafos contém pelo menos um ataque contra a teoria e a prática do marxismo revolucionário; a política que é delineada é o oposto direto daquela que foi conduzida por Lenin. Tornou-se moda aqui em Los Angeles falar que Lenin está morto; mas nós podemos facilmente julgar que tipo de caracterizações enérgicas ele faria de qualquer um que chamasse qualquer tipo de apoio a um governo burguês como algo “justificável”.
“‘Por que vocês não puseram Rodzianko e companhia (o Governo Provisório) na cadeia?’ ele perguntou amargamente aos líderes bolcheviques no dia da sua chegada em Petrogrado. No dia seguinte ele escreveu: ‘Nenhum tipo de apoio ao governo provisório ’. Nos protestos de massas por volta do fim de abril, os bolcheviques levantaram a palavra de ordem: ‘Abaixo o governo provisório’.”
Lenin retirou a palavra de ordem “Abaixo o Governo Provisório”. Mas isso não tinha nada em comum, como aponta Trotsky em “Lições de Outubro”, com a posição de Kamenev de que a palavra de ordem era, em si, um erro aventureiro.
“Uma vez efetuado o reconhecimento”, diz Trotsky, “Lenin retirou a palavra de ordem de derrube imediato do Governo Provisório; retirou-a, contudo, temporariamente, por algumas semanas ou meses, de acordo com a maior ou menor rapidez com que crescesse a indignação das massas com os conciliadores. A oposição (que defendia apoio crítico ao Governo Provisório – S. Ryan), pelo contrário, considerava esta palavra de ordem como um erro. O recuo provisório de Lenin não comportava a menor modificação na sua linha. Lenin não se baseava no fato de ainda não ter terminado a revolução democrática, mas tão somente em que a massa ainda não era capaz de derrubar o governo provisório, para o que devia prepará-la o mais depressa possível”.
A “flexibilidade” de Lenin nas táticas não tem nada em comum com a “atitude flexível” do POR em relação ao governo do MNR. Lenin não era nem um pouco flexível, mas muito rígido em sua atitude com relação ao Governo Provisório. Todas as táticas flexíveis de Lenin eram parte de uma linha inalterável: derrubada do Governo Provisório.
Lenin não depositou nenhuma confiança no Governo Provisório, nem nos partidos que o compunham; sua confiança estava inteiramente reservada ao partido Bolchevique. Declarar isso é um pleonasmo, quase uma tautologia. O artigo da revista, entretanto, se sente obrigado a protestar dizendo que o POR “evitou (!) qualquer tipo de expressão de confiança no governo”. O que seria isso além da linguagem diplomática puramente formal? E como toda linguagem diplomática, essa passagem é mais útil em esconder do que em esclarecer o que está por trás dela.
O que significa essa frase? Que o POR jamais afirmou: “Nós confiamos no governo”? Mas existem muitas formas de expressar a essência da confiança, acima de tudo nas ações, enquanto se “evita” formalmente. Antes de tudo, na revolução de 9 abril de 1952, o POR, ao invés de lutar pelo poder por si próprio, pela classe trabalhadora, propôs que o MNR tomasse o poder; isto é, o POR propôs manter a burguesia no poder.
Se não se confia na classe trabalhadora e em seu partido, que eles podem tomar e exercer o poder, tal confiança passa a ser dada, queira-se ou não, para o governo burguês. Lenin entendia isso. Quando, em resposta à sua demanda de que o governo burguês fosse derrubado, os mencheviques perguntaram o que, para eles, era uma pergunta retórica – “Quem dentre nós vai formar um governo e comandar a nação?” – Lenin respondeu imediatamente – “Nós iremos!”. E ele recebeu em resposta risadas zombeteiras, já que os Bolcheviques não passavam de uma pequena minoria no soviete e no país.
O próprio artigo da revista expõe o claro contraste entre a atitude do POR e a de Lenin.
“A direção da revolução boliviana até agora confirma passo a passo a linha geral desse tipo de desenvolvimento clássico da revolução proletária em nossa época. Ela tem mais semelhança com o curso da revolução russa, embora em miniatura, do que com a revolução chinesa, por exemplo. Ela começou levando o partido radical da pequeno-burguesia ao poder (como foi o caso com a revolução russa em um momento particular antes de outubro) com o apoio das massas revolucionárias… e ainda do partido revolucionário do proletariado, o POR.”
Isso não é “evitar qualquer tipo de expressão de confiança no governo” do MNR! Além do mais, é completamente falso implicar que os Bolcheviques deram algum apoio a qualquer “partido radical da pequeno-burguesia” que governou a Rússia em algum “momento particular antes de outubro”.
3. DANDO COBERTURA AOS CONCILIADORES DO MOVIMENTO OPERÁRIO
A classe trabalhadora podia ter tomado o poder em abril de 1952? O paragrafo citado acima implica que uma revolução proletária não era possível. Mas isso é ver a questão de forma desesperançosamente formalista. A classe trabalhadora estava armada e havia derrotado o exército e a polícia. Nada a impedia de tomar o poder a não ser suas próprias ilusões e a sua liderança capitulacionista. Exatamente como na Rússia! O poder da classe trabalhadora é demonstrado pelo fato de que ela foi capaz de forçar o MNR a aceitar dois de seus líderes no governo.
Nada sobre isso é dito no artigo da revista. O autor fala de uma futura diferenciação com o MNR, de uma futura ala revolucionária emergindo de dentro do MNR, mas não diz nada sobre o fato de que essa diferenciação já está um ano atrasada; que o que as massas apoiaram em abril de 1952 não foi o MNR, mas a sua ala esquerda (colaboracionista de classe). Quais eram e quais são as relações entre o POR e essa ala esquerda já existente? Essa questão nem sequer é discutida. O artigo “evita” mencionar a “expressão de confiança” que o POR estendeu aos líderes operários conciliadores (e ao governo) quando ele apoiou a entrada deles no governo. E até hoje o POR não levantou a demanda de que os líderes operários rompam com o governo burguês e tomem o poder.
A questão decisiva da revolução nem mesmo é mencionada! A luta do POR pelo poder transforma-se concretamente na luta contra a ala esquerda do MNR pela liderança dos trabalhadores e camponeses. Antes que os marxistas possam tomar o poder eles devem derrotar os conciliadores ideológica e politicamente. Essa é uma parte integral e inevitável da luta de classes; os conciliadores representam a influência do inimigo de classe dentro da classe trabalhadora.
Como os Bolcheviques derrotaram os conciliadores russos? Os Mencheviques e Socialistas-Revolucionários também tinham o apoio da maioria dos trabalhadores e camponeses. Eles também entraram no governo burguês. Os Bolcheviques atacaram impiedosamente os conciliadores por sua traição de classe. Eles intransigentemente se opuseram à colaboração dos Mencheviques e dos SR no governo burguês. Quando os bolcheviques estavam em pequena minoria, eles insistentemente demandaram que os mencheviques e SR rompessem com os políticos burgueses e tomassem o poder, não em algum momento no futuro, mas na hora, imediatamente. Mesmo se os Mencheviques e SR tivessem tomado o poder na primavera de 1917, isso não teria lhes proporcionado a confiança dos Bolcheviques, nem uma coalizão governamental com eles; os Bolcheviques prometeram apenas tirá-los do poder pacificamente, contanto que isso fosse possível.
Como o POR vai expor e derrotar os conciliadores bolivianos? Longe de atacar a sua traição de classe, o POR exigiu a sua inclusão no governo do MNR. Longe de chama-los a romper com o MNR e a tomar o poder (estabelecer um “governo operário e camponês”), o POR relega o governo operário e camponês ao “objetivo final da luta”. O POR fala da “colaboração com uma ala revolucionária emergindo de dentro do MNR” em um futuro governo operário e camponês. Então ele resolveu o problema – verbalmente. Se a futura ala esquerda é revolucionária, tudo que temos que fazer é fundir com ela e formar um partido revolucionário maior. Mas lutar contra a atual ala esquerda reformista? Isso o POR falha em fazer.
A premissa de que um governo do POR era inevitável é uma tentativa de acobertar os falsos e traiçoeiros líderes da classe trabalhadora ao colocar a culpa da sua traição no “atraso” das massas.
4. APOIO CRÍTICO E COLABORAÇÃO DE CLASSES
A questão do apoio crítico tem se tornado uma coisa difícil de discutir no nosso partido; seu sentido se tornou obscuro desde que a Internacional resolveu dar apoio crítico ao governo de Mao na China e ao governo do MNR na Bolívia. Apoio crítico é apoio político? Apoio crítico é defesa material contra uma contrarrevolução armada? Apoio crítico a um governo é meramente apoiar as suas medidas progressivas? Todas essas definições estão incluídas em uma passagem muito curta e muito confusa do artigo da revista.
Na Guerra Civil espanhola, os trotskistas foram bem claros sobre a distinção entre ajuda material e apoio crítico. Nós demos ajuda material ao governo Legalista burguês; mas nós não lhe demos nem um centímetro de apoio crítico. Shachtman foi duramente repreendido por Trotsky por propor isso. Nossa atitude em relação aos partidos da classe trabalhadora, incluindo o POUM, o mais à esquerda dentre todos, era a mesma: nós nos recusamos a lhes dar apoio crítico.
Lenin, da mesma forma, delimitou uma linha bastante clara entre defesa e apoio. Na época da tentativa de Kornilov para derrubar Kerensky, ele escreveu:
“Nós não devemos apoiar nem mesmo agora o governo de Kerensky. Isso seria falta de princípios. Vão nos perguntar: ‘Não devemos combater Kornilov?’ É claro que sim. Mas isso não é a mesma coisa. Há um limite aqui. Alguns dos Bolcheviques estão cruzando-o, se envolvendo em compromissos, sendo carregados pelo fluxo dos acontecimentos”.
A defesa de Kerensky por Lenin foi uma parte integral da sua luta para derrubar Kerensky.
Na concepção do POR, como exemplificado pelo artigo da revista em discussão, a palavra “defesa” enquanto aplicada ao governo burguês, não aparece em lugar nenhum. A palavra “apoio” é usada indiscriminadamente para significar ambos apoio político e defesa material. Além de ser um empobrecimento da nossa herança teórica, essa confusão dá respaldo e conforto a todos os conciliadores.
“O POR limita seu apoio e acentua suas críticas enquanto o governo se mostra incapaz de completar o programa nacional-democrático da revolução, enquanto ele hesita, capitula, joga indiretamente o jogo do imperialismo e da reação, se prepara para trair e por isso tenta perseguir e ridicularizar os revolucionários.”
O que é isso senão apoio político – ou seja, apoio à política do governo do MNR, enquanto ele levar adiante o programa nacional-democrático da revolução? Quantas lembranças do “enquanto” de Stalin e Kamenev que, antes da chegada de Lenin em Petrogrado, proclamaram sua disposição em apoiar o Governo Provisório “enquanto ele fortaleça as conquistas da revolução”.
O que há de errado com ambos os exemplos de “enquanto”? Apenas isso – correlacionar “apoio” e “críticas” significa que o apoio é político; como é possível misturar defesa física com críticas políticas?
Se, entretanto, o POR quer dizer que nós temos que “limitar” nossa defesa material dos aliados traiçoeiros dependendo da sua política ou da sua atitude conosco, então isso só poderia resultar em um isolamento sectário e passividade no exato momento em que a defesa material é necessária. Essa é outra instância do bem conhecido fato de que oportunismo e sectarismo compartilham a mesma carcaça teórica. Deixe-nos lembrar que a investida de Kornilov contra Kerensky veio em agosto, precisamente durante a repressão de Kerensky contra os Bolcheviques; Trotsky estava na prisão, Lenin estava escondido. Kerensky certamente tinha “se mostrado incapaz de completar o programa nacional-democrático da revolução”; ele certamente estava “perseguindo e ridicularizando os revolucionários”. Além disso, Kerensky estava de fato mancomunando com Kornilov para destruir os sovietes. Não seria esse o momento ideal para Lenin “limitar seu apoio”? Entretanto, se ele tivesse “se vingado” dessa forma de Kerensky, a revolução teria sofrido uma derrota esmagadora.
Antes do recente plenário do nosso Comitê Nacional, o núcleo de Los Angeles realizou uma discussão na qual a questão do apoio crítico ao governo de Mao Tse-tung se destacou. “Apoio crítico”, disse Myra Tanner, “não é apoio político”. “Apoio crítico”, disse Murray Weiss, também um apoiador da posição do Comitê Executivo Internacional, “é apoio político”. E ele castigou a tendência Vern como sectários sem solução por se oporem a dar apoio crítico a um partido da classe trabalhadora que liderou a revolução. Junto com o camarada Vern, eu escrevi uma resposta a essa posição que foi enviada, mas ainda não publicada no Boletim Interno (“Carta Aberta ao Comitê Nacional”).
Mas o argumento de Murray Weiss não se aplica à Bolívia; e isso foi apontado diversas vezes no curso da discussão. Quando nós perguntamos “E quanto à Bolívia?”, nossa única resposta foi um embaraçoso silêncio. E esse silêncio foi mantido por Murray Weiss e por todos os camaradas que apoiam a posição do CEI durante toda a discussão e até o dia de hoje!
A pergunta sobre se o apoio crítico é apoio político só pôde surgir porque a posição trotskista tradicional sobre o apoio crítico foi derrubada. A questão não podia surgir no passado porque os trotskistas nunca antes deram apoio crítico a um partido ou a um governo. Nós nunca hesitamos, entretanto, em dar apoio crítico a todas as medidas progressivas de qualquer partido, qualquer governo. Dar apoio crítico à sugestão do presidente Truman por um aumento do salário mínimo, por exemplo, não implica nenhum apoio crítico para o Partido Democrata e não fez levantar a questão de se nós estamos dando apoio político ao governo.
5. O TERCEIRO CAMPO GOVERNA A BOLÍVIA?
O governo boliviano é um governo burguês? Ele serve a uma das duas classes sociais rivais da sociedade moderna? Sobre essa questão, o POR abandonou a posição tradicional e principista do marxismo. E ao fazer essa “exceção”, ele encontra apoio em outras “exceções” que foram encontradas pela Internacional no “status intermediário” da Europa Oriental entre 1945-48 e no “governo operário e camponês” que o CEI enxerga na China.
“O MNR”, diz o POR, “é um partido de massas, sendo a maioria da sua liderança pequeno-burguesa, mas tendo à sua margem alguns representantes conscientes da nascente burguesia industrial, um dos quais, por exemplo, é o próprio Paz Estenssoro!”. E o governo é, naturalmente, caracterizado como um governo “pequeno-burguês”, “tendo à sua margem agentes conscientes dos capitalistas-feudais nativos e do imperialismo”. Os agentes do imperialismo e da classe capitalista estão à margem do partido e o governo. Tal afirmação ridícula é possível apenas em uma atmosfera de neo-reformismo envenenado. Os políticos burgueses estão à margemdo MNR exatamente da mesma forma com a qual Henry Ford está à margemda companhia Ford Motor.
Como os líderes do POR explicam o fato de que esses agentes da burguesia e do imperialismo controlam o governo, incluindo em suas fileiras um proeminente habitante da “margem”, o presidente da Bolívia? Toda revolução vitoriosa e fracassada desde 1917 nos ensina que a pequeno-burguesia (e isso se aplica duplamente para a pequeno-burguesia urbana) não pode ter um partido próprio; não pode estabelecer o seu próprio governo. Essa é a pedra de toque da Revolução Permanente.
Compare-se a explicação superficial do POR com a de Trotsky:
“A revolução”, ele diz em Lições de Outubro, “provocou deslocamentos políticos nos dois sentidos; os reacionários tornaram-se cadetes e os cadetes, republicanos (deslocamento para a esquerda); os Socialistas-Revolucionários e os Mencheviques tornaram-se o partido burguês dirigente (deslocamento para a direita). É através de processos deste gênero que a sociedade burguesa tenta criar uma nova ossatura para o seu poder, estabilidade e ordem”.
Nós não deveríamos esquecer que o equivalente dos Mencheviques e dos SR não é o MNR, mas as sua ala esquerda. Trotsky não falha em caracterizar aqueles Bolcheviques que defendiam o apoio crítico ao governo:
“Mas enquanto os mencheviques abandonam o seu socialismo formal pela democracia vulgar, a direita dos bolcheviques passa ao socialismo formal, quer dizer, à posição ocupada ainda na véspera pelos mencheviques.”
6. O MNR É NOSSO INIMIGO MORTAL
Por que é tão importante entender que o governo do MNR é burguês (e não pequeno-burguês)? Porque os trotskistas devem ser absolutamente claros em que o governo é o seu inimigo mortal. E os trotskistas devem ser os inimigos mortais do MNR e de seu governo. Essa não é a concepção do POR.
“Em um estágio mais avançado da revolução”, diz o artigo da revista, “ele (o governo de Paz Estenssoro) vai cair sob condução da direita que quer impor uma ditadura militar, ou então da esquerda para o estabelecimento de um genuíno governo operário e camponês, a ditadura do proletariado aliado ao campesinato pobre e à pequeno-burguesia urbana.”
O que o MNR vai fazer? Esperar ser derrubado?
Não. O MNR vai atar as mãos da classe trabalhadora, enchê-la de legalismo burguês e burocracia, usando seus ajudantes do movimento operário para isso. Ele vai perseguir os militantes revolucionários, desarmar os trabalhadores politicamente (novamente, usando seus ajudantes) e depois fisicamente.
E as forças da “direita que quer impor uma ditadura militar”, quem são elas? Com que vão impor uma ditadura militar? Não são eles os oficiais, o aparato geral precisamente desse governo “pequeno-burguês”? Não é o caso que os democratas pequeno-burgueses como Kerensky, como Azaña, como Paz Estenssoro, sempre colaboram e conspiram com seus próprios generais? Kornilov era o comandante-em-chefe de Kerensky. Franco era o dirigente militar de Azaña no Norte da África. E não vamos esquecer aquele democrata mais à esquerda, o queridinho da Internacional Comunista estalinizada, Chiang Kai-shek, que foi seu próprio Kornilov. Que o futuro aspirante a ditador militar da Bolívia está no presente momento preparando as suas forças sob a proteção de Paz Estenssoro é indicado pela recente tentativa de golpe de Estado por oficiais do exército e da polícia.
O governo do MNR é o inimigo mortal da classe trabalhadora. A sua derrubada é uma necessidade urgente.
7. PLANEJAMENTO CONSCIENTE OU OTIMISMO FATALISTA?
Uma das características mais chocantes da linha do POR é o seu otimismo fatalista. Um exemplo:
“A pequeno-burguesia urbana”, diz o artigo da revista, “está dividida entre uma maioria muito pobre, altamente radicalizada em razão de suas condições instáveis e sempre disposta (minha ênfase – S. Ryan) aliada do proletariado revolucionário…”.
Mas a pequeno-burguesia empobrecida não está sempre disposta como aliada do proletariado revolucionário. Uma das maiores lições do outubro russo, e da revolução alemã abortada de 1923, e da ascensão de Hitler, é exatamente essa: a pequeno-burguesia radicalizada, e também a classe trabalhadora por sinal, não pode ser considerada como uma mina de ouro, sempre disponível ao Partido uma vez que tenham sido convencidas da necessidade de uma mudança revolucionária. Elas se viram primeiro para os social-reformistas. Desapontadas, vão aos marxistas criticamente, cheias de suspeitas. Se os marxistas se provam receosos, hesitam em realizar sua tarefa proclamada de derrubar o governo burguês, o apoio das massas rapidamente se esvai. A pequeno-burguesia radicalizada torna-se então uma presa fácil para um demagogo fascista; a pequeno-burguesia fica então “disposta” não para a revolução, mas para a contrarrevolução.
É por isso que a insurreição é tão necessária como parte da revolução. É por isso que o momento da insurreição é o momento decisivo na vida do partido revolucionário. É por isso que Lenin foi tão insistente para que o Comitê Central Bolchevique tratasse a insurreição como uma arte.
“A pressão instante, contínua, incansável, exercida por Lenin no Comitê Central durante os meses de setembro e outubro justificava-se pelo receio de que deixássemos escapar o momento”. Este é Trotsky em Lições de Outubro. “O que significava deixar escapar o momento?… A correlação das forças varia em função do estado de espírito das massas proletárias, do naufrágio das suas ilusões, da acumulação da sua experiência política, do abalo de confiança no poder estatal das classes e grupos intermediários e, finalmente, do enfraquecimento da confiança deste em si próprio. Em épocas revolucionárias estes processos decorrem rapidamente. Toda a arte tática consiste em saber aproveitar o momento em que combinação das condições é mais favorável para nós… Nem a desagregação do poder estatal, nem tampouco o afluxo espontâneo da confiança impaciente e exigente das massas nos bolcheviques, podiam ser de longa duração; de uma maneira ou de outra, a crise tinha que desembocar numa solução. Agora ou nunca! repetia Lenin.”
Não existe nada desse sentido de urgência na linha do POR, como expresso no artigo da revista. “O objetivo final da luta” é expresso como:
“a formação de um genuíno governo operário e camponês. Esse governo vai surgir não mecanicamente, mas dialeticamente, baseando-se nos organismos de duplo poder criados pelo próprio movimento de massas… O governo operário e camponês vai aparecer amanhã como a emanação natural de todos esses organismos no qual ele vai se basear.”
Todas as expressões usadas – “formação”, “surgir dialeticamente”, “aparecer” – podem descrever um processo evolutivo. A questão decisiva, entretanto, não é como o Estado operário irá aparecer, surgir, ou ser formado, mas como ele vai tomar o poder, tornar-se a força dominante do país. O que está faltando é a consumação da revolução, a insurreição conscientemente organizada.
Uma possível resposta à minha crítica (se alguém for respondê-la) pode ser a de que eu sou crítico demais com relação ao POR; que os líderes do POR sabem o que deve ser feito em uma revolução; que eles simplesmente não querem contar todos os seus planos.
Infelizmente, tal argumento, sedutor como parece ser, exige um exercício de fé que rivaliza com aquele de quem acredita na Imaculada Conceição. Isso porque não são as intenções subjetivas dos líderes do POR que estão em questão (eu posso admitir que elas sejam as melhores), mas sim os resultados objetivos das suas concepções neo-reformistas.
É algo muito difícil mudar a linha do partido de paz para guerra, de apoio crítico para derrubada revolucionária. Mesmo se o POR tivesse a linha de oposição irreconciliável ao governo desde o começo, a mudança desde a preparação para a verdadeira derrubada traria consigo uma crise de liderança, tal qual a que afetou os Bolcheviques em outubro, quando uma seção do Comitê Central, liderada por Kamenev e Zinoviev, saiu a público em oposição à insurreição.
“Qualquer partido”, diz Trotsky, “mesmo o mais revolucionário, elabora inevitavelmente o seu conservadorismo de organização; caso contrário, não alcançaria a estabilidade necessária… Lenin – como vimos – dizia que quando sobrevinha uma mudança brusca na situação e, portanto nas tarefas, os partidos, mesmo os mais revolucionários, continuavam na maior parte dos casos a seguir a sua linha anterior, tornando-se ou ameaçando tornar-se, por isso mesmo, uma trava para o desenvolvimento revolucionário. O conservadorismo do Partido, tal como a sua iniciativa revolucionária, encontram nos órgãos da direção a sua expressão mais concentrada”.
Para vencer a oposição de Zinoviev e Kamenev, Lenin teve essa vantagem: a linha pública oficial do partido estava do seu lado. Seis meses antes, em abril, Lenin havia rearmado o partido; ele havia derrotado decisivamente aqueles que queriam dar apoio crítico para o Governo Provisório. Desde então o partido havia agitado abertamente pela preparação da derrubada de tal governo.
8. A SEMENTE E O FRUTO
Quem vai ter a vantagem no POR – os partidários do conservadorismo, ou os partidários da iniciativa revolucionária? A questão já está respondida. O POR está à direita da ala direita daqueles Bolcheviques que, como diz Trotsky, adotaram uma posição socialista formal.
O POR ocupa, em todas as questões principais, as posições ocupadas pelo menchevismo na revolução russa, e pelo stalinismo na segunda revolução chinesa de 1925-27.
O POR, em suas concepções reformistas, na sua atitude conciliacionista, e com seus métodos de colaboração de classes, se baseia e se apoia na posição neo-reformista adotada pela Internacional desde a Segunda Guerra Mundial. Tal é a teoria adotada pela Internacional para explicar as transformações na Europa Oriental. Essa teoria, que desde a sua adoção não recebeu defesa nas nossas publicações, sejam públicas ou internas, sustenta de fato que o reformismo funcionou na Europa Oriental; que o caráter de classe do Estado foi modificado sem revolução proletária, por manipulações nos círculos de poder; que por três anos o Estado estava em um status intermediário. Essa revisão do marxismo tinha suas raízes, como todo o revisionismo desde 1917, na questão russa; e a incapacidade ou falta de vontade de ver a guerra entre a Alemanha e a União Soviética como uma guerra de classe – ou seja, como revolução ou contrarrevolução.
A linha política da Internacional na China trouxe esse neo-reformismo do reino da teoria (ou terminologia) para o da atividade política. A ideia de um Estado transitório, um Estado que não é nem burguês e nem operário, se torna mais explícita; através do “apoio crítico” ao governo de Mao, afirma-se o papel de liderança do stalinismo, enquanto a necessidade crucial da consciência marxista incorporada no partido trotskista é jogada no lixo. A consciência revolucionária deve ser substituída pela “pressão das massas”.
O POR não introduziu nada de novo. Ele está aplicando na Bolívia a linha revisionista da Internacional – ainda mais, com o apoio e o encorajamento da Internacional.
Eu não tenho dúvidas de que a maioria dos camaradas esteja desconfortável com o curso que está sendo seguido na Bolívia; que eles não concordam com a linha do POR. Mas um silêncio embaraçoso não é o suficiente. Aqueles que permanecem em silêncio pelo bem de uma falsa harmonia não podem escapar da responsabilidade pelas consequências de uma linha política errada.