Resposta à “Carta Aberta de Trabalhadores Independentes Em Defesa da Reorganização da Esquerda Classista e Combativa”
Escrito por Gabriel Diaz, março de 2019. Pequenas modificações foram realizadas em abril de 2019 para maior clareza do conteúdo.
Em 28 de janeiro, uma assembleia de militantes independentes, impulsionada por um núcleo de ex-militantes do MRT, em São Paulo, lançou um blog chamado Esquerda Classista e publicou uma Carta Aberta sobre a necessidade de reorganização da esquerda (disponível em: http://tinyurl.com/esquerdaclassista). Concordamos com o essencial da análise da conjuntura da Carta, de que vivemos um momento de duros ataques do capital; da falta de interesse do PT e da direção do PSOL em realizar uma resistência efetiva nas ruas e locais de trabalho; e da necessidade de organizar essa resistência sem ilusões na Justiça ou Parlamento do Estado burguês. Todavia, discordamos profundamente do método proposto de como levar a cabo essas tarefas, o de criar uma “frente de esquerda dos trabalhadores”, ou um “partido de trabalhadores independente”, que sejam um bloco programático entre os grupos da esquerda que se reivindica socialista. Infelizmente não pudemos estar presentes na assembleia para apresentar nosso ponto de vista, e também houve uma série de atitudes negativas da parte dos impulsionares da proposta diante da nossa discordância.
Essa perspectiva, de formar um bloco programático entre os diferentes grupos socialistas, é levantada com frequência por vários setores da esquerda brasileira, mais comumente sob o nome de “Frente de Esquerda Socialista” (FES), que utilizaremos aqui. O PSTU até recentemente sempre chamava por uma frente eleitoral “socialista” com PSOL; o PCB tem como uma das suas propostas centrais a organização de uma frente permanente (não só eleitoral) junto ao PSOL, PSTU e outros grupos; e nos últimos anos, várias organizações fizeram propostas similares de formar uma FES.
Encaramos que a perspectiva da FES, ou qualquer outro nome que seja dado ao mesmo conteúdo, de um bloco programático entre vários grupos que se reivindicam socialistas, é equivocada. Em vez disso, temos insistido na necessidade de construção de uma frente nacional de lutas, que tome a forma de uma Frente Única entre as organizações socialistas, sindicais e movimentos sociais, para resistir aos ataques do grande capital de forma unificada, mas com independência programática dos grupos envolvidos.
Frente Ampla, Frente de Esquerda e Frente Única
O estado de isolamento, oportunismo, sectarismo e fragmentação generalizada entre a esquerda que se reivindica socialista, em paralelo aos ataques brutais contra a classe trabalhadora, colocam na ordem do dia a questão da unidade dos militantes socialistas na luta contra as “reformas”, criando um impulso saudável por unidade das forças da classe trabalhadora. Esse impulso é muitas vezes demagogicamente explorado pelas direções petistas e seus satélites, que buscam pressionar as organizações e os militantes da esquerda a se sujeitar à sua política de colaboração de classes através de uma “Frente Ampla” com organizações da burguesia.
Quando setores socialistas integram uma frente dessas, acabam ajudando (conscientemente ou não) a encobrir a natureza burguesa das políticas do PT e sua posição de agentes da burguesia dentro do movimento operário. Também cumprem o papel de desviar a revolta da classe trabalhadora para ilusões na institucionalidade burguesa (Parlamento, Justiça), com a perspectiva social-liberal de construir um impossível “capitalismo humanizado”. Foi isso que aconteceu em fevereiro do ano passado, com o lançamento do manifesto “Unidade para Reconstruir o Brasil”, um programa burguês social-liberal para “sair da crise”, assinado pelo PT, PCdoB, PSOL, PCB, PDT e PSB. Ou, ainda na época do impeachment, com as Frentes Brasil Popular (hegemonizadas pelo PT e PCdoB) e Povo Sem Medo (um apêndice “à esquerda” da outra).
Essa política de colaboração de classes, quando a burguesia está na ofensiva e a classe trabalhadora desorganizada e acuada, significa, pura e simplesmente, fazer os trabalhadores se sujeitarem aos interesses da burguesia. Nessas circunstâncias, os socialistas revolucionários não podem deixar de intervir no sentido de favorecer a construção de lutas reais contra as “reformas” e demais ataques. É necessário buscar construir uma organização mais ampla, mas que, apesar da ausência de um partido marxista influente, consiga dar expressão à revolta dos trabalhadores e ao decaimento das condições de vida, organizando e coordenando a luta dos diversos setores da classe trabalhadora. A questão é: que tipo de forma organizacional pode cumprir esse papel? Não encaramos que seja uma Frente de Esquerda Socialista.
Uma FES, ao exemplo da FIT argentina (Frente da Esquerda e dos Trabalhadores, organização política que o núcleo de São Paulo vê como modelo de unidade de esquerda na luta), é principalmente um bloco político-programático, ou seja, um bloco entre tendências políticas com programas diferentes. Ela pode até realizar ações práticas conjuntas, tal qual uma Frente Única faria, mas seu foco é a formação de uma organização programática conjunta, com o objetivo de combinar as forças dos grupos envolvidos para construir uma influência artificial para esse programa “unificado” em alguns campos da luta de classes, tipicamente o eleitoral. Devido às inevitáveis diferenças programáticas entre os grupos (se não existissem, seriam todos uma só organização política), tal programa comum tende a ser genérico, confuso e rebaixado, correspondendo mais às posições da ala direita do bloco, quando não é simplesmente imposto por esta. Não à toa, a FIT, com frequência, passa por crises decorrentes das divergências programáticas dos partidos que a compõem.
Existem dois tipos comuns de blocos programáticos no Brasil. Os mais relevantes são os blocos eleitorais construídos ao redor do PSOL, tipicamente envolvendo PCB, PSTU (antes de seu giro isolacionista e ultra-esquerdista na época do impeachment, que acabou gerando a dissidência hoje dentro do PSOL, Resistência) e outras organizações menores. Blocos desse tipo vêm ocorrendo em quase todas as eleições desde sua primeira edição, em 2006. Apesar de serem blocos entre partidos que se dizem socialistas, esses blocos costumam ser, na verdade, efêmeras edições “à esquerda” das “Frentes Amplas” do PT. A força real por trás desses blocos é a direção PSOL, a qual defende um projeto político burguês “progressivo”, cuja finalidade é trabalhar por dentro das instituições burguesas para “melhorar as condições das massas”, de modo a tentar amenizar a luta de classes (uma versão requentada do programa original do PT).
Ao contrário das frentes do PT, as do PSOL não tendem a ter apoio ou laços reais dos trabalhadores e da burguesia (com exceções importantes em algumas eleições municipais). Isso, até agora, salvou o PSOL da experiência pela qual o PT passou, de se condenar frente aos trabalhadores pelo significado real de sua política ao administrar o Estado burguês. Mesmo assim, cada vez mais o partido vem recuando na tentativa de viabilizar candidaturas ao Executivo, especialmente no caso de Marcelo Freixo no Rio de Janeiro (ele cada vez mais tenta se apresentar como “amigo” da PM, chegou a defender a política de UPP antes de ficar evidente que elas só pioraram a vida da população favelada; e chegou até a declarar que não teria problema em cortar ponto de professores públicos em greve). Assim, a participação de grupos socialistas nessas frentes, apoiando candidaturas burguesas “progressistas”, só serve para conferir um verniz avermelhado a elas, iludindo os trabalhadores que confiam em tais grupos e os amarrando a um programa de conciliação de classes.
O outro exemplo são os blocos efêmeros entre pequenos grupos centristas que veem em fusões irresponsáveis e sem base política sólida um meio de inflar seus números, visando alcançar, por algum tempo, alguma relevância entre a vanguarda. Exemplos são os blocos locais de 2017 entre o MAIS, a NOS e algumas outras tendências (que depois o abandonaram), que eventualmente deu origem à Resistência (em especial a “Frente de Esquerda Socialista” no Rio de Janeiro); a antiga Insurgência (PSOL), um bloco de simpatizantes do Secretariado Unificado no PSOL, que acabou explodindo em diferentes grupos nos últimos anos; a antiga Frente Comunista dos Trabalhadores (FCT) e a segunda edição da Luta Pelo Socialismo (LPS) – blocos entre minúsculas tendências autodeclaradas trotskistas, entre inúmeros outros exemplos. (Veja, por exemplo, nosso debate de 2015 com a FCT: https://rr4i.milharal.org/2015/09/13/fct-um-otimo-exemplo-de-como-nao-construir-um-partido/).
O núcleo de São Paulo tende a dar um tom bem combativo ao projeto de FES que defende, comparando-a mesmo a uma Frente Única (vide: http://tinyurl.com/qsfit). Nisso, se diferenciam da maior parte da esquerda – inclusos os membros da própria FIT argentina – que veem uma frente desse tipo não como um organismo para mobilizar, organizar e coordenar lutas, mas prioritariamente como um método de construção partidária, seja visando a fusão de tendências diferentes sem uma clarificação programática prévia, seja para usar a combinação numérica e um programa rebaixado para potencializar sua atuação eleitoral.
Quando nós falamos em Frente Única, falamos da tática concebida pela Internacional Comunista para romper seu isolamento se aproximando das bases da social-democracia através de ações práticas conjuntas e, assim, ter mais oportunidades de disputar tais bases, ao mesmo tempo em que conduz de forma unificada lutas por demandas imediatas dos trabalhadores. Essa tática foi sintetizada por Leon Trotsky na fórmula “bater juntos, marchar separados”, ou seja, unidade de ação e independência de programa – afinal, como disputar a base de outra tendência política “diluindo” sua própria identidade em um amálgama programático? Um exemplo histórico de Frente Única no Brasil foi a Frente Única Antifascista do início dos anos 1930: impulsionada pela Liga Comunista Internacionalista trotskista, a FUA chegou a unir trotskistas, anarquistas, reformistas, sindicalistas de esquerda, e uma ala dissidente do PCB no combate político e físico ao Integralismo. Apesar de coordenarem de forma unificada ações práticas (manifestações e contra-manifestações) e agitações (panfletagens e a publicação do jornal anti-fascista “O Homem Livre”), as várias tendências políticas envolvidas na FUA preservavam seus programas e inclusive polemizavam publicamente sobre qual deles era mais adequado para apresentar uma “solução de fundo” para os problemas do país.
Há outros exemplos mais recentes. É o caso das Frentes Únicas que tomaram forma em cidades como o Rio de Janeiro e Porto Alegre nas lutas contra os aumentos de passagens em 2013, que serviram como polos organizativos de diferentes tendências políticas e organizações sociais durante as “jornadas de junho”. Em uma polêmica sobre “A esquerda ante a crise brasileira” (2016-17, disponível em: http://tinyurl.com/hptadls), explicamos que:
“O Fórum de Lutas do Rio de Janeiro conseguiu reunir, ainda que durante um período curto, todas as organizações de esquerda da cidade, além de vários militantes independentes. Ele organizou protestos de rua, panfletagens conjuntas, organização de autodefesas contra a violência policial, dentre outras ações com o objetivo de expandir e construir o movimento contra o aumento das passagens. No Rio, o movimento organizado pelo Fórum de Lutas, com todos os seus limites e problemas de organização resultantes de lideranças inexperientes, débeis, várias vezes oportunistas, precedeu as jornadas de lutas e foi um importante fator na massificação que elas atingiram em junho e julho de 2013.
“Esse espaço de unidade não significou uma diminuição das polêmicas, mas sua intensificação. É nos momentos agudos que as organizações mostram suas verdadeiras caras, que ficam escondidas embaixo de várias camadas de aparência nos tempos de calmaria. O Fórum de Lutas, que no auge costumava reunir algumas centenas em suas assembleias e que em dada ocasião atraiu mais de um milhar, é de certa forma o que chamamos de “organização de frente única”. Ele estava aberto a todos os setores dispostos a lutar contra o aumento das passagens naquele momento. Inicialmente incluiu até organizações governistas, como PT e PCdoB, mas que foram expulsas quando quebraram a unidade ao usarem de violência contra militantes do Fórum em dada ocasião.
“É importante reconhecer que a experiência do Fórum teve muitas debilidades. Ele […] era mais a soma de pequenas organizações e vários militantes independentes do que algo de fato enraizado e representativo das bases mobilizadas (escolas, universidades, bairros, empresas), tendo sido feitos poucos esforços para que isso mudasse. Dessa forma, apesar da importância das suas ações e debates, ele ficou limitado a uma ‘grande assembleia’, onde a organização que levasse mais gente em dada reunião ganhava nas votações, sem que isso fosse um reflexo de seu peso real no movimento. Ainda assim, essa foi uma experiência razoável de frente única. Pois a frente única é uma unidade na luta de vários setores dos trabalhadores e movimentos sociais em torno de um objetivo concreto (geralmente pontual, pois os trabalhadores em geral ainda não têm plena consciência da necessidade da luta revolucionária).”
A Frente Única que defendemos seria, então, uma organização que articular de forma aberta e democrática a construção de ações para a luta, e não seria uma organização para-partidária nem eleitoral. Seu projeto é oferecer aos trabalhadores um polo de combate real às reformas. Mesmo que no atual cenário de imobilismo oportunista da esquerda brasileira, uma iniciativa dessas inevitavelmente vá consistir, no primeiro momento, de organizações da esquerda com muitas diferenças entre si, mas que defendem a construção de lutas contra as “reformas”, o seu projeto não é de acordos programáticos entre partidos, mas sim de ser um espaço aberto de construção que busque trazer as massas à luta, e necessariamente, à própria organização de FU. Obviamente não se trata daquilo que algumas vezes é apresentado como Frente Única: órgãos de cúpula dos sindicatos e partidos, sem nenhuma enraização nas bases ou democracia nas decisões. Estamos falando de um órgão de mobilização enraizado nas bases, formado por delegados eleitos nos locais de estudo, trabalho e moradia – locais esses que, por sua vez, também devem ter comitês próprios que reúnam os trabalhadores para debaterem e organizarem ações conjuntas.
Como seria, na prática, uma FES no Brasil de hoje?
Façamos um debate mais concreto. A diferença fundamental entre a Frente Única e a FES é o que cada uma pretende ser, ou seja, são projetos bem diferentes. A FES é um projeto de um bloco ou amálgama de programas. Mas os camaradas do núcleo de São Paulo dizem querer uma organização que impulsione a luta das massas. Se na Argentina, onde existe uma esquerda e um movimento socialista mais forte, a FIT conseguiu reunir uma pequena base de massas em torno das candidaturas independentes de seu bloco político, hoje no Brasil não existem as condições para replicar isso. Um bloco programático classista e combativo no Brasil, do tipo da FIT, teria necessariamente que ser um bloco entre tendências radicais minoritárias que não tem expressão entre as massas ou na política nacional.
A unidade que precisamos para ontem frente às “reformas” é a unidade dos setores da classe trabalhadora dispostos a lutar. Em um primeiro momento, isso significaria a unidade da classe trabalhadora organizada – não só militantes socialistas isolados, mas as massas sindicalizadas – ao redor da qual a classe, hoje desorganizada, poderia se reunir. Mas os sindicatos hoje são dirigidos por uma burocracia privilegiada que usa sua posição de intermediária entre uma classe desmobilizada e a burguesia para preservar seus cargos. A própria base dos sindicatos é, muitas vezes, tão oposta à ideia do socialismo quanto a sua direção, mas não são opostos à luta pelos seus próprios interesses. A única tática possível aqui, para mobilizar esses trabalhadores, seria a da Frente Única.
Uma FES, ou seja, um bloco programático, seria o tipo de organização mais inapropriada para construir essa unidade com os militantes da base dos sindicatos e movimentos sociais mais amplos. Primeiro porque as organizações que dominariam seriam organizações submetidas, em maior ou menor grau, à burocracia sindical. Os resultados mais prováveis de uma disputa sobre essa questão no interior de um bloco político-programático com a FES seriam a implosão da frente ou a capitulação à sua ala burocrática, que não tem razões para abandonar suas políticas. Essa já é basicamente a política do PSTU na CONLUTAS com relação às demais centrais sindicais; e também já foi implementada recentemente por vários setores da esquerda em relação à própria burocracia do PT e PCdoB através da Frente Brasil Popular e pela direção do PSOL através da frente Povo Sem Medo. Uma política totalmente equivocada, pois coloca os demais setores a reboque das cúpulas pelegas das centrais.
Um bloco programático não-sólido serve para compensar a fraqueza numérica de seus componentes pela diplomacia política. Ele não consegue unir na luta os trabalhadores organizados e desorganizados, independente de diferenças políticas de fundo, em uma luta unificada contra os ataques da classe dominante. As divergências políticas ou fazem o bloco explodir ou são “jogadas para debaixo do tapete” de forma oportunista, para que o bloco possa existir por mais tempo. Um bloco desse tipo também não é uma organização partidária, com um programa claro, e que graças a isso seria capaz de fazer intervenções na luta de classes com um programa revolucionário; não seria nem sequer uma proposta coerente de discussão programática para no futuro formar um partido revolucionário. É algo que combina elementos dos dois fins de forma inconsistente e não pode realizar bem nenhum dos dois objetivos.
A FES não teria solidez programática para justificar uma disciplina comum num contexto de unidade de ação, pois a sua linha política tem uma grande importância, muito maior do que é necessária numa Frente Única. Como a FES precisa manter uma unidade programática formal, as divergências surgidas do debate interno sobre intervenções práticas precisam sempre ser reconciliadas pela diplomacia – geralmente, para o benefício de sua ala direita. Aí sempre há o perigo duplo: ou da FES se decompor e implodir por suas diferenças internas, o que provavelmente destruiria a própria unidade de ação que ela teria criado; ou da FES atuar como um bloco graças ao silêncio da sua ala esquerda. A dominação da FES pela sua ala mais oportunista, justamente a ala que mais se adaptaria à burocracia sindical e que não tem interesse algum na mobilização militante dos trabalhadores, levaria-a a fracassar nesse propósito.
Os blocos político-programáticos que tem um escopo mais amplo, como organizações para-partidárias, tendem a ser bem mais frágeis do que blocos de propaganda construídos em arenas específicas, como os blocos eleitorais, em que os componentes chegam a acordos prévios antes de iniciar a campanha. Uma FES independente composta pelo PSTU e o PCB, por exemplo, seria incapaz de concordar sobre o caráter do golpe parlamentar contra a Dilma, se iriam se isolar ou apoiar o PSOL, em qual central sindical iriam atuar etc. Ou seja, não seria capaz de atuar conjuntamente em todos os campos sem que alguma ala se sujeite à outra. O bloco político ao redor das candidaturas do PSOL é possível justamente porque é um bloco de caráter federativo, a disciplina comum se aplicando apenas à arena eleitoral, onde todas tem uma concordância geral em torno disso. Seria difícil construir um bloco de propaganda com as maiores organizações da esquerda brasileira, pois defendem políticas muita distintas no turbilhão de confusão, fragmentação e oportunismo que dominou o movimento socialista. Mas todas essas tendências defendem lutar contra as reformas, e poderiam se juntar em uma Frente Única de lutas para impulsionar o combate aos planos imediatos da classe dominante.
Exemplos de FES no Brasil: ala esquerda do petismo
A verdade da questão é que já existe uma forma de “FES” no Brasil: no PSOL. A busca por atalhos para as massas por meio de um bloco programático sistematicamente leva os centristas à capitulação a movimentos de massas realmente existentes ou supostamente existentes. Nas condições concretas brasileiras, faltando uma base de massas socialista, a FES não pode senão tomar a forma da ala esquerda da política burguesa petista, ou, concretamente, tomar sua forma na periferia do PSOL.
Isso pode ser comprovado empiricamente pela própria evolução das tendências socialistas centristas: A Esquerda Marxista em 2015 chamou isolada por uma FES e depois entrou no PSOL. Antes de seu atual isolamento, o PSTU formou diversas frentes de programa com o PSOL, apoiando mesmo suas piores candidaturas, como na Frente de Belém (Vide: http://tinyurl.com/yxzewmzp). Depois que metade do partido girou à ultra-esquerda, a sua antiga ala direita se tornou a nova ala direita do PSOL. Para o PCB, a demanda (permanente, por sinal) por uma FES é praticamente sinônimo com a demanda por um bloco com o PSOL.
O MRT, que vivia falando da FIT argentina e cortejando o PSTU, está há anos já lentamente se aproximando da órbita do PSOL, buscando abertamente atuar como a ala de “extrema-esquerda” lá dentro, buscando cristalizar o núcleo de uma futura FIT. Porém, como em todo bloco desse tipo, a direção do PSOL não pode tolerar uma oposição real, mesmo que centrista, à sua linha política. Desesperados por um caminho que os tire do seu estado de isolamento e putrefação, o MRT agora capitulou abertamente à política burguesa das direções do PSOL e do PT nas últimas eleições.
Uma demanda por uma FES com o PSOL seria a construção (ou fortalecimento) de uma “Frente Ampla” de colaboração de classes (com ou sem a burguesia em si), um bloco que replicasse ou apoiasse “pela esquerda” a linha política demagogicamente “progressiva” e “esquerdista”, mas que no fim das contas prega aos trabalhadores a sua adaptação e confiança nas instituições burguesas e na miragem de uma “burguesia responsável”, que é característica da direção do PSOL.
Não é à toa que casos como o “Bloco de Esquerda” em São Paulo e a homônima “Frente de Esquerda Socialista” no Rio de Janeiro, que poderia ter sido o embrião de uma frente única de luta entre as organizações de esquerda dessas cidades, se degringolaram em debates programáticos intermináveis e sem objetivo concreto. Depois, nas eleições, serviram como bloco político de apoio às candidaturas do PSOL.
Já uma demanda por uma FES sem as correntes do PSOL e sem um acordo com os sindicatos seria incapaz de mobilizar a classe trabalhadora de maneira eficiente. Do ponto de vista político, seria inútil, já que não há nada que unifique de forma programaticamente sólida os vários grupos centristas além de suas capitulações periódicas ou constantes à política burguesa demagogicamente “esquerdista” representada hoje pelo PSOL.
Quando há base para tal unidade programática as correntes devem realizar um debate profundo rumo ao reagrupamento revolucionário, e não conformar blocos que servem precisamente para mascarar suas diferenças. Sem uma coesão programática mínima ou a existência de uma base de massas para justificar a unidade, uma FES seria só um bloco de programa entre tendências completamente diferentes. Não haveria nada para cimenta-la.
A FIT na Argentina
A perspectiva dos camaradas do núcleo de São Paulo não surgiu do nada: por mais que eles tenham rompido com elementos do MRT, sua defesa da FES é uma clara herança da política de agitar por uma “FIT brasileira”. O argumento de que a FIT é “praticamente uma frente única” também não é novidade para nós. Como escrevemos em nossa polêmica sobre “Os vaivéns centristas da Fração Trotskista” (disponível em http://tinyurl.com/yxd5fl65):
“Tivemos muitas conversas com militantes da Fração Trotskista no Brasil (então organizados na LER-QI) sobre esse assunto. Uma resposta que comumente recebemos foi de que a intenção do PTS não era se aproximar dos grupos revisionistas, mas que a FIT era uma ‘frente única’, uma simples colaboração prática, com o objetivo de superar a legislação eleitoral restritiva da Argentina, e concorrer às eleições com uma chapa classista. […] Certamente que não haveria nada de errado com isso, não fossem as afirmações claras do próprio PTS de que a FIT não é isso. Recentemente, a FIT tem passado por uma dura divisão em relação à formação da chapa para as eleições presidenciais. Nesse contexto, aqui está uma resposta da liderança do PTS à afirmação de Altamira (PO), feita no fim do ano passado, de que a FIT era uma ‘frente única’:
‘A FIT é um bloco de agitação de três partidos que se reivindicam trotskistas que defendem um programa de reivindicações transitórias, a independência da classe e propõem um governo dos trabalhadores. Isso não é uma “frente única”, e sim um reagrupamento de formações de esquerda que se reivindicam revolucionárias que ainda não são partidos grandes e seu objetivo é agitar um programa revolucionário em comum nos processos eleitorais. O programa da FIT, mais que o de “frente única”, abre o caminho para o debate da necessidade de um partido revolucionário, proposta que temos feito em várias oportunidades e à qual os nossos aliados lamentavelmente tem se negado sistematicamente.’ — O Partido Obrero no Luna Park e o discurso de Jorge Altamira, 9 de novembro de 2014. (Disponível em: http://tinyurl.com/ofbu7tt)
“Essa declaração da liderança do PTS deixa explícito aquilo que dizíamos, e que alguns militantes da FT sempre negaram: que a atuação do PTS na FIT é buscar a unidade, uma aproximação política, com correntes reconhecidamente oportunistas.”
A FIT argentina existe como um bloco programático independente e classista (apesar de não colocar a perspectiva de revolução socialista de forma consistente) apenas porque na situação específica da Argentina existe acordo suficiente entre as três tendências que a compõem para uma atividade eleitoral conjunta e certa base (restrita) de apoio entre as massas. Porém, mesmo na Argentina, a tática da FES revela sua inadequação e incompatibilidade com uma política marxista. O objetivo do PTS (seção da FT-QI) na FIT é declaradamente trabalhar por uma fusão, como ficou ainda mais claro com a chamada do PTS para consolidar os componentes da FIT em um partido único, algo que eles sabem irrealizável. Como apontou o Partido de la Causa Obrera (PCO) argentino (que não tem relação com o PCO brasileiro) na sua análise do ocorrido (disponível em: https://tinyurl.com/y5kf7smx), esse fato também colocou o último prego no caixão da ideia da FIT como uma frente única:
“Os argumentos do PO (Partido Obrero) e da IS (Izquierda Socialista) para rechaçar a proposta do PTS são corretos: ‘O PO e o PTS lançaram uma lista comum contra o principal dirigente sindical da IS, ‘Pollo’ Sobrero. Já na ATEN, o PTS se lançou em uma lista à parte contra uma lista que incluía o PO e a IS. Alguma linha de princípios comuns para integrar as listas sindicais? Não, puro oportunismo aparatista. Suas intervenções em comum na situação política nacional são uma exceção. Se não existe nenhum esforço para intervir nem nas lutas políticas nem nas lutas sindicais de maneira unificada, porque razão haveria alguma base sólida para um partido unificado?”
A resposta é dada pelo próprio PCO argentino: “Bradando a bandeira da unificação – que todos os outros partidos rechaçam – fica mais fácil atrair a simpatia daqueles que não têm experiência política”.
Para o PTS, a FIT é uma ferramenta para construir um partido centrista que eles podem tentar dominar burocraticamente, que eles esperam que evolua espontaneamente em uma direção revolucionária, sem precisar para isso de uma luta ideológica contra os preconceitos burgueses e adaptações à burocracia que dão base ao centrismo. Como apontamos na nossa polêmica de 2013 com a então LER-QI (Disponível em: http://tinyurl.com/yxd38mwj), a Fração Trotskista tirou essa carta diretamente do baralho do morenismo, que para Moreno tomava o nome de “Frente Única Revolucionária”, ficando ainda mais patente a confusão e incoerência que sustenta a tática. É a crença de que se pode construir um movimento revolucionário sem uma prática revolucionária, apostando simplesmente nos “fatores objetivos” ou no amálgama com correntes centristas ou oportunistas.
Assim sendo, a FES (inclusive tomando a FIT argentina como exemplo) não é um meio “a partir da qual os debates ganharão sentido concreto, buscando ser parte da construção de uma alternativa efetiva para a luta real dos trabalhadores, e não os debates acadêmicos inofensivos que são hoje.” (Da Carta Aberta dos companheiros de São Paulo). Uma Frente Única onde todas as organizações operam publicamente pode ser assim. Mas um bloco de programa que visa atuar publicamente por meio de um amálgama político só se sustenta pela diplomacia organizacional e pela generalidade, o oportunismo e a falta de clareza política de seu programa público. Ela também precisaria manter os debates internos trancados em um ciclo vicioso e sem princípios, porque levar esses debates às suas consequências significaria entender a necessidade de lutar por um partido marxista oposto às adaptações centristas, e não um partido centrista de programa “junto e misturado” (necessariamente oportunista pela falta de clareza).
No processo de construção do partido revolucionário não só é necessário lutar por uma organização que exclua os elementos centristas consolidados, um estrato incapaz de evoluir politicamente em uma direção marxista, como também que tenha a maior clareza política na sua linha, chamando as coisas pelos seus nomes e denunciando as políticas das organizações centristas pelo que elas são — a subordinação, constante ou inconstante, total ou parcial, da classe trabalhadora à ditadura da burguesia. Isentar-se dessa tarefa atrasa a construção do partido marxista.
Incapaz de disputar a vanguarda por não ter uma orientação ou programa corretos, e incapaz de disputar as massas por não ter tamanho, o MRT “tirou as lições” da experiência e abandonou sua postura de partido independente. Juntaram-se abertamente ao rol das organizações centristas na capitulação às políticas do PSOL, apesar de manterem certa aparência radical. Se os camaradas do núcleo de São Paulo ainda forem insistir na FES, podem se encontrar forçados, depois de algum tempo, a apelar ao argumento que antes corretamente desprezaram, de que ela pode ser um instrumento de construção partidária. Podem argumentar, por exemplo, que a Frente pode se colocar como uma alternativa revolucionária à crise da esquerda. Mas mesmo a melhor FES não seria nada mais do que um bloco de tendências centristas, incapazes de oferecer uma liderança consistente na luta pelo socialismo. É necessário ir á raiz da questão, ao modelo e metodologia adotada pelos camaradas.
Uma tendência marxista precisa, claro, analisar a situação da esquerda que se reivindica socialista e analisar se ela tem mais oportunidades de se ligar a setores subjetivamente revolucionários como um grupo de propaganda independente ou como uma fração de oposição marxista consistente em uma organização que tenha uma base aberta ao programa marxista. Da mesma forma, é um dever seu construir pontes para ações práticas comuns que defendam os interesses dos trabalhadores na luta de classes, e isso mesmo “com o Diabo e sua avó” (como dizia Trotsky). Mas é preciso ter uma separação clara entre o que é uma unidade programática na defesa de um projeto revolucionário (e quem o defende de forma consistente) e uma unidade na luta pela defesa de interesses imediatos da classe operária.
Como podemos construir uma Frente Única?
É preciso pressionar primeiro não só a esquerda que se reivindica socialista, mas também os sindicatos, principalmente aqueles com bases mais radicais e que se colocam como “sindicatos de esquerda”, a formarem organizações locais de frente única, compostas por delegados eleitos nas bases – uma frente de lutas. Essas frentes locais, por sua vez, precisam se unificar em uma frente única nacional. Só assim que uma frente alcançaria a massa dos trabalhadores – só assim uma frente os colocaria em movimento, daria a eles uma estrutura organizacional ao redor da qual os trabalhadores se reuniriam e construiriam uma luta real. Ao mesmo tempo, seriam espaços democráticos para que as diferentes organizações políticas apresentassem e colocassem à prova seu programa, em diálogo com as bases e os elementos de vanguarda. Toda grande revolta proletária criou órgãos assim, com variações particulares: comitês de fábrica e empresa que elegiam comitês de cidade; grandes assembleias sindicais regionais que elegiam delegados a um órgão nacional; assembleias de bairro que elegiam um comitê municipal; comitês de escolas e universidades que formavam entidades locais e nacionais etc. Eles obviamente não caíram do céu, foram fruto do acúmulo de exemplos, ainda que pontuais e marginais, impulsionados por organizações revolucionárias e radicais.
Nós temos insistido nessa perspectiva desde os ataques neoliberais de Dilma-Levy e do posterior golpe contra o governo PT, mas boa parte das organizações da esquerda que tem algum peso nos sindicatos e movimentos sociais estão até agora muito passivas, à espera da iniciativa da CUT e CTB para organizarem campanhas de resistência (portanto, indo à reboque da burocracia pelega, que obviamente não vai organizar uma luta de peso). Por conta disso, é necessário que os pequenos grupos combativos se unam desde já e criem comitês de mobilização que sejam um embrião de uma Frente Única maior, realizando ações onde tem presença e também em locais importantes, como assembleias sindicais, terminais de transporte público de grande movimento etc. Esse é um esforço que nós temos feito recentemente e o que propomos que fosse decidido pela assembleia convocada pelo núcleo de São Paulo.
Os obstáculos para a construção de uma verdadeira Frente Única serão certamente inúmeros – primeiro, convencer a própria esquerda que se reivindica socialista. Os sindicalistas burocratas também não vão querer entrar nessas frentes, terão que ser pressionados a entrar e vão tentar tirar suas mãos de lá assim que se queimarem ao dar de cara com a militância e revolta dos trabalhadores. A criação de uma base de apoio dentro dos sindicatos, facilitada com um apoio inicial do aparato sindical e a ligação da frente com os trabalhadores interessados no projeto, permitiria à FU um contato com esses trabalhadores. Tanto esses sindicalistas quanto a esquerda oportunista naturalmente também vão querer desviar a FU para o apoio eleitoral a seus candidatos. Isso só se resolverá na disputa política, como todas as questões. É bem possível que a FU seja destruída pelas lideranças oportunistas. Mas é absolutamente necessário trazer as massas hoje desorganizadas dos trabalhadores à vida política, e colocar esses setores em movimento. E só assim se poderia construir uma forma de resistência às “reformas”, o que seria uma conquista por si só, porque pavimentaria o caminho para futuras mobilizações, futuras vitórias, ligaria setores maiores da classe operária brasileira ao movimento socialista, criaria uma cultura de construção de frentes únicas entre essa vanguarda e, por fim, daria um impulso à regeneração do movimento socialista e à reconstrução de um núcleo marxista.
Conclusões
É necessário defender o projeto de uma FU, buscando oportunidades para apresenta-lo em arenas específicas da luta de classes (a demanda por comitês de luta baseados em locais de trabalho, estudo e moradia) e ao exigir da esquerda socialista a formação, inicialmente municipal, de comitês de mobilização de lutas que coordenem as atividades dos ativistas e militantes em panfletagens e ações conjuntas. Desse ponto de partida seria possível começar o trabalho de mobilizar a vanguarda e setores estratégicos da classe trabalhadora ao redor do projeto da FU, de modo a pressionar, a partir das suas bases, outras organizações e os sindicatos a construírem a FU em conjunto, e expandi-la regionalmente e, por fim, nacionalmente. Nós do RR estamos engajados em diálogos com outras organizações e na propaganda pela formação dos comitês iniciais.
A tática da FES (tal como criticamos) é parte integrante do corpo das tradições políticas do socialismo centrista, assim como as outras concepções oportunistas de construção partidária ou as concepções burocráticas de construção de organismos de luta. É necessário acabar, através de uma luta consciente, com essas concepções dentro da vanguarda marxista, concepções que são uteis à autoconstrução de seitas burocratizadas ou de efêmeros blocos oportunistas, mas não à luta dos trabalhadores.
A luta de classes exige uma perspectiva marxista correta, ou seja, um programa e metodologia que se baseie tanto em um entendimento correto da realidade quanto do exemplo das lutas históricas. Isso exige uma luta consciente contra o revisionismo e a degeneração oportunista do movimento trotskista, do qual Moreno e a FT fazem parte.
É preciso construir um grupo militante desenvolvido através de debates programáticos e metodológicos que levem a um reagrupamento sobre bases revolucionárias das organizações proletárias de militantes revolucionários honestos, e no diálogo com militantes independentes e as bases subjetivamente revolucionárias de organizações centristas. A cristalização de um núcleo desses seria a pré-condição para intervenções consistentemente classistas no movimento operário e para lutar pela construção de um partido de vanguarda, que seja capaz de defender os interesses históricos do proletariado.
O RR é uma organização relativamente jovem, e não somos ultimatistas, não exigimos que os camaradas aceitem nossas posições. Porém, nossas concepções foram desenvolvidas em comum, por camaradas vindos de diversas tradições, a partir não só do estudo das lições das lutas de classe no século XX como na aplicação dessas lições nos anos de crise política brasileira, se cristalizando em um programa marxista-internacionalista que estamos colocando no papel após nosso I Congresso. Isso deve provar que levamos a sério os métodos que dizemos nossos. Convidamos os camaradas do núcleo de SP e os militantes interessados na luta por uma unidade consequente e militante da esquerda a debater essa questão e outras que são tão importantes nesse período, no interesse da clarificação política dentro da vanguarda e do reagrupamento dos revolucionários sob a bandeira do marxismo.