Como a grande maioria das organizações que se reivindicam socialistas não têm mais a superação do capitalismo como uma perspectiva histórica concreta na sua ação cotidiana, embora afirmem isso em “dias de festa” ou em declarações puramente formais, elas adotam em sua prática a confiança aberta ou velada nas instituições burguesas, capitulando a um ou outro lado da política burguesa, ou às vezes a políticos populares da classe dominante. A expectativa e as ilusões colocadas nas variantes de “socialismo” burguês nas últimas duas décadas são apenas um exemplo disso, mesmo quando tais políticos são claros defensores da exploração assalariada, do domínio imperialista sobre o globo e das estruturas repressivas do Estado burguês.
A adaptação da esquerda ao sistema não se restringe à esquerda burguesa ou socialdemocrata, mas inclui também organizações que contraditoriamente se reivindicam revolucionárias. Décadas de isolamento, reação e derrotas moldaram as organizações existentes. Se durante todo o século 20 tal dinâmica já era recorrente – com ondas repetidas de derrotas que arruinavam organizações e as levavam a se refugiar junto a alguma saída adaptada ao Estado ou ao sistema, desde que vista como mais “realista”, no fim do milênio o cinismo, rotineirismo e mentalidade imediatista se generalizaram.
A defesa de partidos, figuras ou instituições da burguesia assume as mais diferentes formas, de acordo com a conjuntura política e as pressões sofridas por essas organizações, muitas das quais fazem isso enquanto afirmam contraditoriamente se basear nas lições históricas do marxismo revolucionário. Mas o apoio, o encantamento, a promoção ou mesmo dissolução dessas organizações nas esferas de influência desses políticos ou instituições burguesas está em contradição completa com a necessidade de um movimento proletário independente, pressuposto essencial da luta revolucionária. “O movimento proletário é o movimento independente da imensa maioria em proveito da imensa maioria” (Marx e Engels).
Esse fenômeno tem raízes sociais e históricas, e toma forma política na adaptação dos elementos mais conscientes e ativos da classe – sua vanguarda – ao capitalismo. Essa adaptação resulta na adoção, por esses setores da vanguarda, de uma consciência típica de outra classe, a pequena burguesia. Apesar de crítica às pressões e ataques do sistema, a pequena burguesia geralmente espera a melhoria de sua situação apelando para as instâncias do Estado burguês e na aprovação de reformas, recusando a via revolucionária e a transformação da base do modo de produção. A composição social hegemônica da maioria das organizações socialistas – graças tanto às ideias de seus dirigentes quanto ao estado de desorganização e desmoralização do movimento em geral – é também pequeno-burguesa, ou restrita a setores aristocráticos do proletariado, o que torna ainda mais difícil romper com as bases sociais e as fundações ideológicas do regime burguês.
Internamente, muitas organizações passam a reproduzir normas de funcionamento pequeno-burguesas. Em alguns casos, há falta de disciplina militante, desapego à necessidade de organização da classe trabalhadora. Em outros casos, reproduzem uma disciplina de comandismo típica do pequeno patrão, com uma liderança permanente encastelada por anos, que não busca elevar o conjunto da militância à plena participação, nem pelo esforço em uma formação teórica e política mais completa, nem na discussão consequente e democrática das diferenças políticas e metodológicas que surgem. Não é incomum que essas organizações tentem formar os militantes como meros tarefeiros, sem que os treinem para a elaboração e o pensamento político autônomo.
Queremos formar um núcleo marxista consistente e sólido que seja capaz de lutar pela construção de um partido revolucionário. Como a classe trabalhadora não é homogênea politicamente, e a ideologia burguesa cumpre um papel poderosíssimo de incutir na classe o pessimismo, a aceitação do status quo, a apatia, a ilusão em políticos burgueses, e toda uma série de ideias reacionárias, nem todos os trabalhadores devem ser parte do partido revolucionário, pois do contrário ele não seria um partido revolucionário. Defendemos um partido de vanguarda: um partido composto por aquela fração da classe que foi capaz de perceber a necessidade de organização dos trabalhadores para a superação do capitalismo e a construção do socialismo. A vanguarda deve estar ligada ao restante da classe, pressionando constantemente para a ampliação de suas fronteiras e seus círculos de influência.
Uma das tarefas mais importantes no próximo período é a formação de um núcleo internacional de trabalhadores marxistas, que intervenha para catalisar uma regeneração do movimento revolucionário ao reagrupar os elementos e grupos no combate à decadência política, organizacional e mesmo moral que toma forma na hegemonia da ideologia pequeno-burguesa entre os que se reivindicam socialistas e na adaptação das organizações socialistas à burguesia das mais diferentes formas. Esse núcleo buscará intervir como um setor bem definido nos movimentos da classe trabalhadora, realizar fusões com as tendências mais dinâmicas que estejam evoluindo para as ideias revolucionárias e também recrutar trabalhadores individuais que se aproximem de suas visões.
Ele precisa adotar a forma de um grupo militante de propaganda. Isso significa que deve combinar a tarefa de delimitação, discussão e polêmica ideológica com outras correntes, com uma verdadeira formação de militantes revolucionários capazes de pensar por si mesmos, e a construção e fortalecimento no interior das lutas dos trabalhadores e oprimidos. Um núcleo que, quando na liderança de algum movimento, construa lutas exemplares que quebrem o ciclo de derrotas e o fortalecimento do oportunismo, baseado no enfraquecimento do movimento por uma longa série de derrotas. Esse núcleo precisa fazer todos os esforços ao seu alcance, respeitando as proporções de seus números e sua situação conjuntural, para se estabelecer e se construir entre os setores mais estratégicos do proletariado em cada local onde esteja presente.
A formação teórica e política dos militantes é algo fundamental para a construção não só de uma organização democrática e funcional, mas também para dar a um partido marxista uma liderança ideológica e prática para revolução, em vez de meros vendedores de jornais, sindicalistas e setorialistas formados na escola do “possibilismo”.
O centralismo democrático é um princípio político, mas não tem uma aplicação prática atemporal ou independentemente de condições específicas. Em vez de repetir fórmulas de centralismo democrático de 100 anos atrás em condições muito diferentes, é preciso resgatar seus princípios ao reconhecer que uma organização marxista é tanto uma organização de luta, que precisa ter firme unidade de ação quando necessário, quanto uma organização historicamente consciente, onde deve haver abertura para debater as diferenças políticas e para formação temporária de tendências. É um processo que, se conduzido com clareza e lealdade de um lado, e sem métodos burocráticos de exclusão ou silenciamento do debate de outro, resulta tremendamente educativo para os membros da organização.
Uma organização com uma confiança tão frágil em seu próprio programa que se torna incapaz de resolver suas diferenças internas pela disputa política, e que ao invés disso precisa apelar para métodos organizacionais burocráticos, será completamente incapaz de contribuir para a construção de uma sociedade onde a maioria dos trabalhadores participe ativamente das decisões políticas e da administração. Ao mesmo tempo, uma organização onde não haja comprometimento dos militantes em agir conforme as decisões da maioria ou seguindo a direção eleita democraticamente e com autoridade para tal (excluem-se aqui as direções abusivas e burocráticas), não é capaz de dar um passo firme sequer na luta de classes.