Luta de classes na Argentina sob o governo Milei

É preciso superar o peronismo e a burocracia sindical para salvar o povo trabalhador da ruína

Ícaro Kaleb, fevereiro de 2024

Em fins de 2023, dados econômicos alarmantes da Argentina estamparam todos os jornais. O ciclo final do governo Alberto Fernandez incluiu uma inflação anual que chegou a 143% (outubro de 2023), a terceira maior do mundo. O dólar americano havia saltado a quase 400 pesos argentinos, enquanto em 2018 valia 63. O PIB argentino está com uma estimativa de queda de 2,5% em 2023 (houve queda de 4,9% no segundo trimestre do ano).

O salário mínimo tornou-se o segundo pior da América Latina, decaindo em comparação ao do Brasil por conta da inflação relativa ao dólar. Atualmente, equivale a US$ 132, enquanto no Brasil é US$ 261 (Revista Piauí). O mercado paralelo tem crescido, especialmente para transferência de dólares, já que os bancos só permitem retiradas de 200 dólares mensais por pessoa.

Essa devastação econômica tem atingido prioritariamente a classe trabalhadora, que tem sofrido um empobrecimento a olhos vistos. A pobreza atingiu a faixa de 40% da população (quase 20 milhões de pessoas). Chegou a 42% em 2021 (durante a pandemia), sendo que era já 32% em 2018.

“O problema da insegurança alimentar nos lares com menos recursos afeta inclusive a capital, a cidade mais rica: 7,5% das famílias portenhas correm o risco de passar fome, segundo o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina. Na área metropolitana que cerca a cidade, um dos maiores cordões urbanos de pobreza, o panorama é muito pior e alcança 27,6% das famílias.” (El País)

Quais são as causas da crise?

Para Milei e um vasto espectro da direita neoliberal argentina, os culpados são os subsídios estatais, incluindo aos mais pobres, aos pequenos comerciantes, e os “plano de ajuda” imediatos, considerados eleitoreiros, e que chegam a 2% do PIB. Porém, grande parte da burguesia industrial é também dependente desses subsídios e estima-se que na totalidade, eles não atinjam mais que 7% do PIB argentino (Valor Econômico). Alguns economistas falam de uma cifra maior, até talvez 14% do PIB, mas mesmo isso é muito pouco para justificar a catástrofe econômica.

Para o peronismo kirchnerista, a culpa está no mais recente empréstimo tomado do FMI: um montante de 44 bilhões de dólares por parte do governo Macri em 2018, e a nova dívida que foi reestruturada durante o governo peronista Fernandez-Christina Kirchner. A crise se deveria então ao agravamento da dívida por conta disso, limitando o investimento, e com o qual o governo Fernandez não conseguiu arcar. Mas por que não conseguiu? E além disso, esses 44 bilhões são apenas parte dos 276 bilhões (em US$) totais da dívida argentina.

Para nós, marxistas, o que está evidenciado pela atual catástrofe econômica é a crise do projeto do peronismo “estabilizador” de Nestor (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015), seguidos pelo hiato do direitista Mauricio Macri (2015-2019) e do novo governo kirchnerista de Alberto Fernandez (2019-2023). O peronismo kirchnerista foi a força política dominante depois da grande crise de 2001, das manifestações e ações massivas do povo no “Argentinaço”, decorrente da quebra fiscal e no qual houve trocas sucessivas de governo até a convocação de novas eleições.

O “modelo” kirchnerista foi baseado em subsídios, cooptação social, subordinação ao FMI e outros órgãos internacionais, aceitação da “austeridade” neoliberal, institucionalidade, baixo investimento industrial e dependência da própria burguesia industrial por subsídios. O modelo “funcionou” num ciclo de crescimento relacionado à alta de commodities de exportação (especialmente os cereais) e a um aquecimento dos grandes mercados internacionais compradores.

Como exemplo de que a política kirchnerista não representou nenhum questionamento à política de subordinação ao FMI, basta ver os últimos pagamentos de juros da dívida pelo governo Fernandez ao Fundo, que foram possíveis por tomada de crédito chinês a juros mais baixos: US$ 1.2 bilhão em 6 de outubro, US$ 640 milhões em 12 de outubro, US$ 673 milhões em 31 de outubro. (Poder 360). Com o pagamento feito, as reservas de dólares do Banco Central argentino chegaram ao nível mais baixo desde 2006, com cerca de US$ 22 bilhões.

Ou seja, a atual crise argentina tem como base a inserção subordinada e produção primária do país na divisão internacional produtiva imposta pela dominação imperialista, que a deixa refém de preços das commodities. Bem como da manutenção dos altos juros e pagamento das dívidas ao FMI e suas imposições, que garantem uma “austeridade” constante que impede investimentos produtivos. Não houve “tsunami de investimento estrangeiro” como foi alardeado por Macri em seu governo. O país caiu em “estagflação” da qual não saiu até agora, e que foi agravada durante a pandemia de COVID-19, mas que se manteve depois.

No atual momento, a direita argentina clama por um aumento do potencial repressivo, para dar base a uma redução dos subsídios sociais, que sequer pensa em cortar completamente (só Milei sinalizou nesse sentido, mas já recuou). A classe dominante platina estuda um viés bonapartista, embora não fale abertamente de ditadura (por enquanto). Inclusive Massa se comprometeu com o aumento da segurança interna. Ou seja, a burguesia argentina em todas as suas frações principais não apresenta uma solução de fundo para a verdadeira causa da crise. Nem sequer uma paliativa, como no passado. Sequer esboça a necessidade de romper com o FMI, com as restrições econômicas impostas, ou de redistribuição maciça da riqueza para além dos subsídios.

A crise econômica argentina e a situação degradante do povo trabalhador no nosso país vizinho colocam abertamente a necessidade de superar a classe dominante e o governo Milei para preservar a dignidade e obter igualdade e prosperidade. Isso exige superação do caos econômico e da dependência à dominação imperialista.

As eleições de 2023

Nas eleições se apresentaram Javier Milei, economista ultraconservador, defensor do “livre mercado”, que concorreu pela coalizão La Libertad Avanza (LLA). O seu principal opositor foi Sergio Massa, peronista que voltou ao Partido Justicialista depois de uma ruptura entre 2013-2019. Massa foi candidato da coalizão encabeçada pelos peronistas, Unión por la Patria (UP), a mesma de Alberto Fernandez, que estava no poder. Ele era o ministro da economia de Fernandez desde 2022 e foi amplamente responsabilizado pela crise. Houve também a candidata da direita argentina neoliberal mais tradicional e macrista, Patricia Bullrich, que representou a coalizão Juntos por el Cambio (JxC).

Massa havia deixado o Partido Justicialista (peronista) em 2013 para fundar a Frente Renovadora, concorrendo às eleições de 2015 e colaborando inicialmente com Macri após sua vitória. Regressou depois aos peronistas, mas isso diz muito sobre seu perfil econômico e social. A proposta de Massa era o peronismo assumir um programa econômico conservador e garantir “estabilidade”. Ele é um entusiasta do “direito absoluto de Israel à sua autodefesa” e chegou a apoiar Guaido na sua pretensão de presidente da Venezuela em 2019. Disse no Twitter em fevereiro de 2019 que “A saída para a #Venezuela é mais democracia, não menos. O tempo de Maduro acabou e Guaidó deve ser visto como um líder responsável e paciente que busca a reconciliação e evita conflitos.” Não menos que Milei, portanto, Massa também possuía um claro alinhamento com Washington.

Milei, por sua vez, é uma figura ridícula, que tem como principal cabo eleitoral sua irmã vidente de tarô, e se comunica com seu cachorro morto, Conan, e já fez aparições fantasiado de super-herói “Capitão ANCAP”, para “luta contra os keynesianos e coletivistas que ferram nossas vidas”. Milei se popularizou com o símbolo de motosserra para lutar contra a “casta” política que seria responsável pelo atraso do país, vendendo-se como um “outsider”. Dentre suas propostas de campanha estiveram a extinção do banco central, privatização das empresas estatais; cortes de impostos, subsídios e benefícios sociais; dolarização plena da economia (sem reservas?); demissões em massa do serviço público; extinção de ministérios, rompimento de relações com China e Brasil (!).

Foi apoiado por setores direitistas tradicionais da burguesia por ser contra as políticas chamadas de “populistas” do peronismo, que aqueles consideram demasiado custosas. Mas, se fosse aplicado, o seu programa econômico levaria à liquidação de vastos setores da burguesia e da indústria argentina do dia para a noite. Um mercado livre eliminaria a maior parte do que resiste da indústria, que depende de subsídios diretos ou indiretos extraídos, de uma forma ou de outra, dos setores produtivos mais lucrativos da agroindústria via impostos e políticas estatais. Isso levaria a um aprofundamento sem precedentes da crise, dependência e um recuo econômico brutal em médio prazo, apesar de em curto prazo poder haver aumentos dos lucros do setor do agronegócio devido à queda de impostos.

Milei perdeu o primeiro turno por uma pequena margem para Massa. Mas, devido ao apoio de Bullrich como forte terceira colocada, virou e ganhou o segundo turno por 56% contra 44% de Massa nos votos válidos. O Congresso argentino se renovou parcialmente, mantendo parte dos deputados e senadores eleitos em 2021 e trocando outros. A coalizão de Milei cresceu bastante, mas não conseguiu nem arranhar um número suficiente para conseguir maioria, nem na Câmara dos Deputados, nem no Senado:

Das 257 cadeiras da Câmara dos Deputados da Argentina:

* 105 são do “Unión por la Patria”, coalizão peronista que foi derrotada por Milei;
* 92 são do “Juntos por el cambio”, direita macrista que apoiou Milei no 2º turno;
* 39 são do “La Libertad Avanza”, partido do novo presidente;
* 8 com a “Tercera Vía”;
* 5 com a “Frente de Izquierda y de los Trabajadores”;
* 8 cadeiras estão com outros partidos.

No Senado, os 72 assentos estão distribuídos da seguinte forma:

* 33: Unión por la Patria;
* 24: Juntos por el cambio;
* 7: La Libertad Avanza;
* 3: Tercera Vía;
* 5: Outros.

Ou seja, Milei não poderia ter chance de governar sem o apoio dos setores de direita antiperonista mais tradicional. É um político débil, delirante, apoiado pragmaticamente pelos políticos da direita argentina, tolerado pelo peronismo oficial (veja-se o reconhecimento de sua vitória e o passamento da faixa presidencial). Ele vai tentar avançar o ultraliberalismo destruidor de condições sociais para desonerar de impostos os setores do agronegócio e manter em dia todos os pagamentos ao FMI.

Porém, seu programa real será algo muito mais apropriado aos setores “realistas” do grande capital e longe de seus “radicalismos” mais absurdos, tal qual romper com seus principais parceiros comerciais – Brasil e China – por serem “esquerdistas”. Nisso, não se diferenciará muito do “enquadramento” pelo qual passaram Bolsonaro e Trump. Não conseguirá aprovar nada no Parlamento sem apoio da direita tradicional do Juntos por el Cambio e em parte até de setores do peronismo.

Os primeiros 2 meses do governo Milei

Uma das primeiras ações de Milei foi realizar um “novo entendimento” e empréstimo junto ao FMI. Ao justificar o acordo, o FMI disse ter chegado a um acordo com as autoridades argentinas sobre um “conjunto reforçado de políticas para restaurar a estabilidade macroeconômica do país e colocar o programa [de dívida com o FMI] de volta ao caminho certo”. (G1). Ou seja, recebeu garantias de novos planos de austeridade, abertura e liberalização econômica. Esse órgão dos grandes capitais imperialistas rapidamente prestou todo seu apoio à grotesca figura do novo presidente argentino, enchendo-o de elogios:

“A nova administração já está implementando um ambicioso plano de estabilização, ancorado em uma grande consolidação fiscal inicial, juntamente com ações para reconstruir reservas, corrigir desalinhamentos de preços relativos, fortalecer o balanço do banco central e criar um sistema mais simples”, escreveu o FMI. (G1)

Imediatamente se oficializou um bloco no parlamento e no gabinete presidencial da coalizão LLA de Milei com o Juntos por el Cambio de Bullrich e Macri. Isso não pareceu ser um problema para Milei, apesar do fato de que eles obviamente são figuras da “casta” política que ele disse que ia combater. Seu ministro da economia, Luís Caputo, é um ex-Presidente do Banco Central de Macri.

Houve uma super desvalorização do câmbio, com o dólar passando a valer 800 pesos (e com ainda maior desvalorização desde então). “A ideia, segundo o ministro da Economia, é estimular que setores produtivos tenham incentivos adequados para aumentar sua produção” (Blog Seu Dinheiro). Isso significa um enorme estímulo para o agronegócio exportador, que foi o único setor que não teve exportações nem importações restringidas no plano de controle inflacionário.

Uma semana após o início do governo, em 17 de dezembro, a Casa Rosada anunciou a publicação de um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) com uma série de desregulamentações, privatizações, “liberalização” dos preços e “reformas” laborais que atingem o conjunto dos trabalhadores. O DNU atinge as perspectivas de investimento em praticamente todas as áreas sociais, proíbe aumentos do serviço público num país com uma inflação galopante, liberaliza as taxações para o comércio exterior e proíbe direitos de greve e manifestação. O decreto muda mais de 300 leis em questão laboral-administrativa, embora algumas tenham sido barradas pela Justiça e estão para ser julgadas.

Dentre outras coisas, inclui: processo de privatização das estatais via transformação em empresas de sociedade anônima; liberação do aumento dos alugueis sem controle; libera das exportações sem limites; eliminação do controle de preços de itens básicos; redução e, em alguns casos, eliminação dos subsídios de gás, energia e transporte; ilegalização de greves em uma ampla gama de setores que passam a ser considerados “serviços essenciais”; proibição em geral de piquetes que paralisem o trabalho; aumento do período de experiência no trabalho para até 9 meses (em vez de 3); diminuição da multa das empresas por demissões sem justa causa. O decreto integral pode ser lido em: https://jornalggn.com.br/noticia/a-integra-do-mega-decreto-de-javier-milei/

Trata-se de um ataque direto aos trabalhadores, ao povo e aos que protestam, com Milei ameaçando de cortar o benefício social de qualquer um que fosse a manifestações, inclusive os desempregados que estão nas organizações piqueteiras. Simultaneamente, a recém-empossada Ministra da Segurança, Patrícia Bullrich, anunciou o seu “protocolo” que proíbe os bloqueios de estradas e os bloqueios de piqueteiros, e mesmo de marchar nas ruas. Bullrich afirmou que iria multar essas organizações no equivalente ao custo da cobertura policial. Zombou depois da marcha de 10 mil pessoas no dia do envio do decreto, no qual houve forte repressão. Apesar disso, tem havido “cortes de rua” recorrentes, tornando essa parte do decreto letra morta, embora não tenha sido revogado. Tem havido também panelaços semi-espontâneos em vários bairros e cidades da região da província de Buenos Aires.

Diante da demora judicial em analisar algumas das medidas, o que bloqueou parte do DNU, Milei lançou a “Lei Ônibus”, que buscava alterar ou cancelar cerca de 600 leis, além de conferir poderes autônomos à presidência, para legislar por um ano, de forma praticamente independente do Congresso. Seria um ano de “reinado” para Milei. Mais uma vez, há imensos ataques contra os direitos conquistados dos trabalhadores, inclusive planos de debilitação dos sindicatos, controle maior sobre as aposentadorias pelo Executivo, privatização de empresas como as Aerolineas Argentinas e os Correios. O envio da Lei Ônibus ao Congresso ocorreu ainda no apagar das luzes do ano, em 27 de dezembro de 2023.

Houve inclusive setores do peronismo que apoiaram criticamente a lei, devido à liberdade maior de exportação de produção alimentícia. 3 deputados aliados do governador peronista de Tucumán romperam de última hora com a Unión por la Patria e formaram o pequeno bloco “Independência”, que se somou ao setor do Congresso que “dialoga” com Milei, encabeçado pelo Juntos por el Cambio. Antes já haviam rompido com a UP outros 3 deputados eleitos por Salta para ter liberdade de posicionamento fora do bloco peronista.

A Lei Ônibus chegou a ser aprovada em 3 de fevereiro, após uma sessão parlamentar de três dias marcada por inúmeros protestos do lado de fora. Porém, diante do fato de que ela seria claramente “desidratada” na votação das emendas, que retirariam vários dos itens da Lei, e de haver divergências internas mesmo dentro do La Libertad Avanza de Milei em alguns pontos, estes resolveram retirar a Lei de votação.

O texto aprovado, com menos de 400 dos 664 artigos propostos pelo governo, manteve esses pontos centrais, mas eliminou por inteiro as reformas fiscal e eleitoral, por exemplo. Os trechos excluídos tinham relação com temas como trabalho, imposto de renda, reajuste das aposentadorias, taxas a importações e exportações, energia e pesca. (…)

A lista de empresas que podem ser privatizadas também foi reduzida de 41 para 27 até o momento. a petroleira YPF foi uma das retiradas, enquanto a Aerolíneas Argentinas, os Correios e a Companhia de Água e Saneamento (AYSA) foram mantidas. Outras três (banco, telecomunicações e energia nuclear) só poderão ser privatizadas parcialmente. (Folha de São Paulo).

A retirada da Lei sinaliza novamente e fraqueza deste governo e o enorme “bater de cabeças” da classe dominante argentina diante da crise sem precedentes. Só uma coisa parece unir a classe burguesa argentina: seus representantes estão buscando aumentar o seu arsenal repressivo e chamando o povo e os trabalhadores para um vale-tudo aberto, usando diversas táticas de intimidação e ameaças. Depois, alegarão que se trata de “desordeiros” e “violentos” quando houver reações à sua postura.

A esquerda argentina

A maior força de esquerda da Argentina (quer dizer, à esquerda do peronismo burguês), é a Frente de Izquierda y de los Trabajadores – Unidad (FIT-U), cuja candidata à presidência nas eleições de 2023 foi Myriam Bregman (PTS). A FIT-U é composta por 4 partidos que se reivindicam trotskistas: PTS, PO, IS e MST. Obteve 2,7% dos votos na eleição presidencial. A FIT se formou desde 2011, quando teve suas primeiras coligações. Ampliou sua composição, mas recuou eleitoralmente do melhor resultado geral que obteve, em 2015, quando teve 3,23% dos votos nacionalmente para presidente, que equivalia a 812 mil eleitores. No parlamento, as eleições de 2021 foram a que obteve mais êxito, elegendo 4 deputados.

Programaticamente, a FIT-U se tornou mais difusa, sem propostas claras de como resolver a crise capitalista, embora tenha em comum a denúncia dos principais blocos burgueses. Carece, porém, de um plano de ação e de luta, restringindo-se a uma frente eleitoral. Essa crítica tem sido feita corretamente por algumas correntes de fora da FIT-U e que não a apoiaram eleitoralmente, como a Política Obrera de Jorge Altamira (rompimento do Partido Obrero) e a COR. Atualmente, a FIT-U tem 5 deputados (1 eleito em 2023 e 4 em 2021 – 4 do PTS / organização irmã do MRT / Esquerda Diário no Brasil e 1 do Partido Obrero).

Demonstração da divisão das suas forças foram os posicionamentos no 2º turno entre Milei e Massa. O MST (organização irmã do grupo Revolução Socialista/PSOL) e a IS (irmã da CST do Brasil) chamaram voto em Sergio Massa. Já o PTS e o PO chamaram o voto em branco. Inicialmente, porém, o PTS lançou uma declaração com frases ambíguas, como a que dizia que “desde já chamamos a não votar em Milei”, mas dizia também não dar nenhum apoio a Massa. Um de seus deputados, Nicolás del Caño, esclareceu depois que isso significava o voto em branco.

Tal posicionamento foi curioso, considerando que em situações similares no passado, todos esses partidos ou suas organizações irmãs votaram pelo “menos pior”, cedendo às pressões oportunistas dos setores da esquerda burguesa. Todos eles chamaram voto em Haddad em 2018 e em Lula em 2022 no Brasil, quando concorriam contra Bolsonaro (incluído o MRT/PTS e também Jorge Altamira, ex-dirigente que hoje diz criticar o eleitoralismo do Partido Obrero). No caso desse mesmo Partido Obrero, que foi o que chamou voto nulo de forma mais clara na Argentina de 2023, já apoiou além do PT no Brasil, também Gabriel Boric no Chile e o ex-presidente golpeado do Peru, Pedro Castillo, e também Evo Morales na Bolívia. Ou seja, o PO tem um longo histórico de apoio a candidatos capitalistas “progressistas”.

Os parlamentares da FIT-U têm criticado no Congresso o DNU, a Lei Ônibus e a repressão sofrida pelos piquetes e manifestações dos trabalhadores. Eventualmente, caem em linhas legalistas, ao argumentar que se trata apenas de “protestos pacíficos” e que Milei “desrespeita a Constituição”. Tentaram bloquear as votações da Lei Ônibus apontando que “não se pode ter sessões parlamentares enquanto ocorre repressão”.

A esquerda argentina, especialmente a que tenha ambições revolucionárias, enfrenta um momento de clara intensificação repressiva. Deve resistir! É o país do continente americano com a vanguarda proletária mais numerosa e organizada. Nós, do Brasil, devemos estar atentos a campanhas de solidariedade contra a repressão sofrida e em defesa dos militantes e ativistas nossos irmãos de classe. Haverá oportunidades, mesmo em tal difícil situação. Para isso, é crucial a existência de um autêntico partido revolucionário dos trabalhadores da Argentina, que hoje não existe. Um partido como esse precisa ser forjado superando os vícios políticos que afetam mesmo a esquerda radical argentina. São esses vícios:

1) a expectativa passiva em mobilizações puxadas pelas centrais sindicais dominadas e dependentes do peronismo. Deve-se participar das lutas por elas convocadas, é claro, mas é preciso crescente audácia na organização de mobilizações próprias, de preferência em uma frente única das organizações proletárias combativas (partidos, sindicatos, associações, comitês de bairro). A burocracia sindical não vai organizar um “grande plano de lutas” que possa derrotar Milei. Querem a volta eleitoral do peronismo;

2) o seguidismo à perspectiva parlamentar-judicial. Esperar que os ataques terríveis de Milei e da burguesia contra o povo trabalhador sejam barrados pelos tribunais ou pelo Congresso é um beco sem saída. É claro que algumas das medidas serão barradas – pois não são do interesse da própria classe dominante. Mas pode-se confiar que essas instituições do Estado vão aceitar e tutelar o arrocho contra o povo para “solucionar a crise” (para os ricos e capitalistas). A aprovação da Lei Ônibus no dia 3 pela Câmara (ainda que depois tenha sido retirada) é um testemunho cabal disso;

3) a aposta em um programa de Assembleia Constituinte. Esta foi a consigna principal de todas as correntes da FIT-U na grande crise de 2001 (quando a Frente de Izquierda ainda não existia). Essa demanda é uma reivindicação democrática útil em cenários ditatoriais, mas que deve ser integrada a um programa dos trabalhadores contra o capital e não ser vista como uma consigna para supostamente “resolver a crise” – ela não é capaz disso. A AC é sempre um órgão burguês. Vemos aonde levou no Chile após as grandes manifestações de 2019: um desvio para o Parlamento, enrolação e frustração das lutas, desmobilização e rejeição de todas as reivindicações relevantes da classe trabalhadora. Em vez disso, é necessário um programa de reivindicações transitórias, que mobilize crescentemente o povo para um confronto com o FMI, os banqueiros e a grande burguesia.

(Veja o apêndice no final do texto para ler polêmicas passadas que direcionamos à esquerda que compõe a FIT-U).

O que fazer depois da greve e protestos de janeiro?

No dia 24 de janeiro foi convocado um dia de greve geral pelas maiores centrais sindicais argentinas, por iniciativa da CGT (Confederação Geral do Trabalho) e apoiada pela CTA-A e CTA-T (Central de Trabajadores de la Argentina Autónoma e Central de Trabajadores de la Argentina de los Trabajadores). Houve manifestações de solidariedade em cerca de 10 países, inclusive em 5 cidades no Brasil. Mais de 150 mil manifestantes na província de Buenos Aires e mais 150 mil no restante do país.

Tratou-se de um efetivo “paro nacional”, mas limitado a 12 horas (do meio-dia à meia-noite). Em alguns setores, durou apenas por 6 horas, como nos transportes, que decidiram só paralisar das 19h à meia-noite, para “não causar transtornos”. Isso é sintoma de um sindicalismo rotineiro, atrelado ao peronismo, que pretende aceitar a legalidade do governo Milei e só desgastá-lo. Nisso, age de forma muito similar ao sindicalismo burocrático do Brasil, inclusive e principalmente o da CUT. Claramente era possível ter feito uma greve geral de enfrentamento, Pois existia disposição entre os trabalhadores, se assim ela tivesse sido construída, em torno de uma direção consequente.

Mas a estratégia da CGT e das CTAs é de pressionar os parlamentares peronistas e a “oposição que dialoga” (liberais) com o discurso de “A pátria não se vende” para derrotar a avalanche de medidas neoliberais, e de fazer pressão com esperanças de que a Justiça vai barrar as medidas de Milei. No dia 31 de janeiro, quando entrou em votação novamente a Lei Ônibus, houve novos protestos, mas sequer acompanhados de greves, e os líderes da CGT escolheram convocar sua manifestação em frente ao prédio da Suprema Corte. No dia 24 a Justiça havia bloqueado a constitucionalidade de algumas medidas, mas as demais seguiram para votação no Congresso.

Cabe citar também que a greve de um dia de 24 de janeiro ocorreu quase um mês depois do anúncio da “Lei Ônibus”, em 27 de dezembro. Escolheu-se esperar até a data em que a Lei seria colocada em votação no Parlamento para fazer a greve, atrelando-a inteiramente ao parlamentarismo (dominado pelos que “dialogam” com o governo). Embora a Lei tenha sido depois retirada, a sua aprovação parcial em 3 de fevereiro mostra o fracasso dessa expectativa no Congresso dominado por ladrões. Houve encontros dos sindicatos mais à esquerda na “Plenária do Sindicalismo Combativo”, com representantes críticos à direção da CGT, mas esta não tirou um plano próprio de luta.

A decadência econômica e social da Argentina tem a ver com a condução de um capitalismo periférico no qual a classe dominante de conjunto (incluído o peronismo) aceita tal papel. A burguesia, ao buscar manter seu status contra o povo, assume um indivíduo bizarro como Milei como presidente, para perseguir sua necessidade de tirar do povo o pouco que lhe resta em termos de benefícios, para poder economizar com impostos, direitos trabalhistas e obrigações. A marca dessa classe dominante e das suas instituições é a submissão ao sistema imperialista internacional (via FMI) e que levará o país e os seus trabalhadores a uma ruína ainda maior nos próximos anos se esse plano seguir. O “modelo” peronista também está visivelmente esgotado: aderiu ao consenso de privatizações parciais, da miséria extrativista e agroexportadora e a submissão ao grande capital. Qual é a saída?

Uma solução no interesse dos trabalhadores passa por romper com o modelo produtivo capitalista periférico atual, expandindo a industrialização do país com controle operário e em condições dignas, rompendo a profunda desigualdade, além de sair do foco nas exportações do agronegócio. Essa solução exige o não-pagamento da dívida ao FMI e o necessário suporte e solidariedade dos trabalhadores de outros países a tal rompimento, no que será necessário também o controle centralizado do sistema bancário, que deve ser unificado num Banco único sob controle da classe trabalhadora. Para que os recursos possam sair das mãos dos grandes magnatas e dos interesses imperialistas e estejam nas mãos dos que efetivamente produzem as riquezas. A revolução social não é uma mera opção, mas uma necessidade, visto que o atual regime e sistema social são incapazes dessas medidas.

Por uma frente única entre os partidos de esquerda e setores sindicais e populares combativos, que trace um plano de enfrentamento ao governo Milei!

Por um partido revolucionário da classe trabalhadora! É preciso superar o kirchnerismo/peronismo.

Apêndice: algumas polêmicas passadas com os partidos que integram a FIT-U

Nahuel Moreno e o “morenismo”: uma crítica trotskista (vídeo e áudio, agosto de 2023)

O morenismo e a posição da UIT na Síria (outubro de 2012)

Fração Trotskista e sua ruptura incompleta com o morenismo (maio de 2013)

Debate com a Fração Trotskista: os Rebeldes na Líbia e na Síria (janeiro de 2014)

Os vaivéns centristas da Fração Trotskista (novembro de 2015)

A demanda de Assembleia Constituinte do MRT (maio de 2016)

Partido Obrero e a colaboração de classes com a burguesia (março de 2017)